O que é a
Quarta-Feira de Cinzas?
A Quarta-Feira de
Cinzas é, tradicionalmente, a data que marca o fim da folia e o início de um
tempo de recolhimento — como se fosse necessária uma fronteira entre a festa da carne e o período
de penitência chamado de quaresma.
Para católicos
praticantes,
é uma celebração rica em significado e necessária para a preparação rumo
à Páscoa, 40 dias mais
tarde. Na prática, não se trata de um feriado nacional. Em muitas capitais, há
ponto facultatativo para o funcionalismo público pela manhã. Os bancos
retomam na maioria dos casos às 13h.
Nas missas, há um
momento em que o padre e seus ministros abençoam cada um colocando um pouquinho
de cinzas sobre a cabeça ou fazendo uma cruz na testa. Há duas possibilidades
de frase a serem ditas neste momento, cabendo ao sacerdote decidir.
“Convertei-vos e crede no Evangelho” é um lembrete da
necessidade cristã de mudança de vida, de abrir mão dos prazeres em prol de uma
experiência mais próxima de Deus; “Das cinzas vieste, às cinzas retornarás”
recorda a brevidade da vida.
“As duas
possibilidades são válidas porque esses são os dois sentidos principais das
cinzas”, afirma à BBC News Brasil o vaticanista Filipe Domingues, vice-diretor
do Lay Centre, em Roma, e professor na Pontifícia Universidade Gregoriana,
também em Roma.
“Esse dia nasceu como uma manifestação de
devoção popular entre os séculos 3º e 4º. Os cristãos, nesse dia, para se
prepararem para a quaresma, impunham sobre si as cinzas em sinal de penitência
pública”, explica à reportagem a vaticanista e historiadora Mirticeli Medeiros,
pesquisadora de História do Cristianismo na Pontifícia Universidade Gregoriana.
Para o historiador,
teólogo e filósofo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade
Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, a celebração surgiu “nas comunidades
cristãs primitivas” como referência ao início do período de preparação para a
Páscoa.
“Nasce junto com
esse costume de se guardar os 40 dias do que chamamos de quaresma”, diz ele, à
BBC News Brasil. “É um período que marca momentos de reflexão, de
arrependimento, de renovação espiritual.”
O rito foi
oficializado na liturgia pelo para Gregório Magno (540-604), na virada do
século 7º. “Foi chamada por ele de ‘capite ieiunii’, ou seja, o dia em que se
começava o jejum”, pontua Medeiros.
A pesquisadora
conta que, conforme relatos antigos, no início a cerimônia era realizada em
Roma sempre “em silêncio” e pessoalmente pelo papa, “que organizava uma
procissão nos arredores da Basílica de Santa Anastácia e Santa Sabina”.
·
Referências
bíblicas
“As cinzas carregam duas simbologias. A
primeira é a ideia da efemeridade da vida, do fato de que quando Deus disse [no
Antigo Testamento] de que das cinzas viemos e às cinzas voltaremos, era para
lembrar que o ser humano é pequeno diante da grandeza de Deus”, contextualiza
Domingues.
“A segunda questão
é a do arrependimento, da penitência. Aí é uma leitura cristã, já do Novo
Testamento, porque Cristo, segundo os evangelhos canônicos questionou algumas
tradições do mundo judaico […], o legalismo de alguns doutores da lei. [Nesse
contexto], no período da quaresma ele começa com essa reflexão interna da
importância do arrependimento, da penitência, de reformular o que nós somos e
como estamos vivendo”, afirma Domingues.
Assessor da
Comissão dos Movimentos Eclesiais da Diocese de Itabira, em Minas Gerais, o
padre Eugênio Ferreira de Lima lembra à BBC News Brasil que inúmeras
referências bíblicas baseiam esse costume litúrgico. “Nelas, o uso das cinzas
aparece tanto para a purificação e a penitência quanto para lembrar a
relatividade da vida”, interpreta ele.
No livro do Gênesis,
o primeiro do Antigo Testamento, há a reprodução de um diálogo que Deus teria
tido com Adão explicando a ele como seria a vida fora do Éden. “No suor do teu
rosto comerás o pão, até voltares ao solo, pois dele foste tirado. Sim, és pó e
ao pó voltarás”, diz o versículo.
Mais adiante, no
mesmo livro, há uma passagem em que Abraão afirma “vou ousar falar ao meu
Senhor, eu que não passo de pó e cinza”.
Já no livro de Jó,
um versículo orienta “repetis à exaustão máximas de cinza, torres de argila são
vossas defesas”. No segundo livro de Samuel, diz-se que “Tamar tomou cinza e
derramou sobre a cabeça, rasgou sua túnica de princesa, pôs as mãos na cabeça e
afastou-se gritando”.
“Ele se agarra à
cinza, seu coração enganado o desvia: ele não se verá libertado”, lê-se em
Isaías.
“E também como
sinal de arrependimento, em [no livro de] Jonas, o povo se veste de cinzas,
cobre a cabeça de cinzas em sinal de arrependimento e penitência”, comenta o
padre Lima. “Eles proclamaram um jejum e se vestiram de sacos, desde os grandes
até os pequenos […]. Ele se levantou do trono, tirou o manto real, cobriu-se de
saco e sentou-se sobre a cinza”, diz o trecho bíblico.
No livro dos
Números, está escrito que “para este homem impuro, tomar-se à cinza do
brasileiro do sacrifício pelo pecado”.
O sacerdote explica
que, no Novo Testamento, há relatos que associam passagens de Jesus à
simbologia das cinzas. Quando ele lamenta sobre as cidades da Galileia que não
se renderam à sua palavra, diz que “cobertas de saco e cinza, elas se teriam
convertido”, segundo narração do Evangelho de Mateus.
Na carta aos
Hebreus, diz-se que “a cinza de novilha esparzida sobre os seres maculados os
santificam, purificando-lhe os corpos”.
“Ou seja, as cinzas
são o convite que a Igreja faz para refletirmos sobre a brevidade e a
relatividade de nossa vida aqui na Terra, dizendo o que realmente somos:
humanos que vamos morrer”, pontua o padre. “Somos chamamos a entrar nesse tempo
da quaresma dedicando mais tempo para a palavra da Deus e para abrir o coração
e perceber a presença do Cristo no meio de nós: o Cristo que passa fome, que é
torturado, que é injustiçado, que tem necessidade de roupa, de casa, de
comida.”
“É uma simbologia
muito bonita”, comenta o teólogo Moraes. “Marca o início de um período que conclama
ao autoexame, à autorreflexão, à busca por uma renovação espiritual.”
·
Do
que são feitas
Segundo a tradição
católica, as cinzas utilizadas nessa missa de Quarta-Feira que marca o início
da quaresma são obtidas a partir da queima de um produto de outra missa,
realizada no ano anterior. “Pela práxis oficial, as cinzas provém das folhas do
domingo de Ramos, celebrado no ano precedente. Acrescentam a elas agua benta e
incenso”, diz a historiadora Medeiros.
Domingues vê também
simbologia nessa origem do material. “Eles queimam os ramos usados na liturgia
do ano passado e essas cinzas são guardadas para o ano seguinte. Isso mostra o
ciclo da liturgia e da vida cristã, que nunca acaba, fecha um ciclo e começa
outro”, acrescenta ele.
Padre Lima conta
que funciona assim: “uma quantidade razoável daqueles ramos bentos no Domingo
de Ramos é guardada, conservada e queimada para se transformar nas cinzas que,
depois, são abençoadas na missa e, no momento certo do ritual da Quarta de
Cinzas, todos os fiéis são convidados a se apresentarem para serem assinalados
com elas”.
Ele enfatiza que o
momento não é de ânimo negativo. “Não é tristeza. É penitência, é conversão, é
mudança de vida. É preciso lembrar isso”, comenta.
·
Outras
igrejas cristãs
De acordo com o
teólogo e professor Moraes, a tradição da Quarta-Feira de Cinzas não foi
incorporada pelas igrejas protestantes e evangélicas.
“As igrejas do
protestantismo histórico, algumas são mais litúrgicas, outras menos. Todas
reconhecem o período da Páscoa e, portanto, o período que a antecede, esses 40
dias da quaresma. Mas varia de intensidade [conforme a denominação religiosa].
Numa igreja litúrgica, às vezes o pastor cita que iniciamos o período da
quaresma, algumas igrejas usam cores específicas”, conta.
“Já as evangélicas pentecostais
e neopentecostais geralmente são muito pouco litúrgicas, é um espontaneísmo
muito grande então dificilmente você vai encontrar uma valorização desse
período de tempo em relação à observância da quaresma”, acrescenta ele.
Moraes afirma que,
em geral, os cristãos não católicos não têm nenhum ritual próprio para a
Quarta-Feira de Cinzas.
Fonte: BBC News
Brasil
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