segunda-feira, 10 de março de 2025

O cozinheiro de pais chineses que está na origem da cidadania por nascimento nos EUA que Trump quer eliminar

"Nós, o povo dos Estados Unidos..." Assim começa a primeira linha da Constituição americana.

Mas quem constitui esse povo? Esta é uma questão que se arrasta quase desde a fundação do país, no final do século 18.

Os questionamentos persistem até os dias de hoje, como demonstra a ordem executiva assinada pelo presidente Donald Trump, que pretendia pôr fim à cidadania por nascimento, vigente no país há mais de um século.

Como parte da sua ofensiva contra a imigração irregular, Trump pretende fazer com que os filhos de estrangeiros sem autorização de residência nos Estados Unidos, nascidos no país, não recebam automaticamente a cidadania americana, como ocorre atualmente.

Trump rejeita a cidadania por nascimento por considerá-la algo "ridículo", que concede o "privilégio" da cidadania americana a "pessoas não qualificadas".

Mas a Justiça suspendeu a ordem de Trump. Um juiz federal do Estado americano de Washington considerou a medida "claramente inconstitucional".

Na verdade, Trump e o movimento conservador americano tentam reabrir uma questão definida pela Justiça do país há muito tempo – mais precisamente, em 1898. Naquele ano, a Suprema Corte emitiu decisão favorável a um humilde cozinheiro de origem chinesa, na sua batalha judicial contra o governo dos Estados Unidos.

Seu nome era Wong Kim Ark. E esta é a sua história.

<><> Quem era ele?

Wong Kim Ark nasceu em São Francisco, no Estado americano da Califórnia. O humilde cozinheiro vinha de uma família de imigrantes chineses.

Muitas pessoas se mudaram da China para os Estados Unidos na segunda metade do século 19, fugindo da pobreza no seu país. Eles saíram em busca dos empregos criados pela construção da estrada de ferro, que ligaria o Oeste dos Estados Unidos ao restante do país, e pela abolição da escravatura, após a Guerra Civil americana (1861-1865).

Bairros chineses se formaram em cidades americanas, como São Francisco, onde viria a nascer Wong Kim Ark.

A professora de ciências políticas Carol Nackenoff, do Swarthmore College, nos Estados Unidos, é a autora do livro American by Birth: Wong Kim Ark and the Battle for Citizenship ("Americano por nascimento: Wong Kim Ark e a batalha pela cidadania", em tradução livre).

Ela declarou à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) que "não sabemos exatamente quando, mas seus pais haviam chegado ao país perto de 1860 e seu pai se estabeleceu como comerciante".

Algumas fontes afirmam que ele nasceu em 1870, outras em 1873. De qualquer forma, Wong veio ao mundo após a ratificação da 14ª Emenda à Constituição Americana, que estabeleceu a cidadania por nascimento em 1868.

Esta emenda procurava pôr fim à discriminação que os cidadãos afro-americanos continuavam sofrendo em muitos Estados do sul, que negavam sua condição de cidadãos, mesmo após a abolição da escravatura.

Até então, em grande parte do país, muitos negros eram excluídos do que a Constituição chama de "o povo dos Estados Unidos". O mesmo ocorreu com os povos originários americanos por décadas.

A 14ª Emenda declarou que "todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas à sua jurisdição são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde residem". A medida também proibiu que os Estados aprovassem leis que restringissem os direitos desses cidadãos.

Com esta medida, o pequeno Wong Kim Ark e os demais descendentes de imigrantes chineses nascidos nos Estados Unidos deveriam ser considerados cidadãos americanos, de pleno direito.

Mas nem todos no país estavam de acordo com esta decisão. E nem mesmo o governo federal, que levou o caso de Wong para a mais alta instância judicial americana, tentando negar sua cidadania.

<><> Xenofobia contra os chineses

Naquela época, os imigrantes chineses e seus descendentes sofriam hostilidade cada vez maior nos Estados Unidos. Grupos locais responsabilizavam os imigrantes por ocuparem postos de trabalho no país por salários mais baixos.

Textos da época apresentavam os imigrantes chineses como "inassimiláveis". Eles eram acusados de serem dependentes de ópio, incentivar a prostituição e de continuar sendo súditos do imperador da China, mesmo morando nos Estados Unidos.

Surgia uma retórica anti-China cada vez maior. Os Estados americanos da Califórnia e de Oregon aprovaram leis que excluíam os imigrantes chineses de certos trabalhos e espaços sociais e os impediam de adquirir bens imóveis.

A pressão dos sindicatos de trabalhadores brancos da Califórnia fez com que o Congresso americano aprovasse, em 1882, a Lei de Exclusão dos Chineses. Ela determinava a deportação de todos os imigrantes chineses nos Estados Unidos, negando a eles qualquer possibilidade de nacionalização.

O objetivo declarado da lei era "proteger os brancos dos Estados do Pacífico" contra "a associação degradante e destrutiva com uma raça inferior que, agora, ameaça invadi-los".

Antes mesmo da legislação, o clima de hostilidade já havia gerado ataques violentos contra os imigrantes chineses na Califórnia. Estes ataques, provavelmente, sacudiram a comunidade fechada onde crescia o bebê Wong.

Um dos incidentes mais sangrentos ocorreu em outubro de 1871. Uma multidão de brancos arrasou o bairro chinês de Los Angeles, na Califórnia, matando 18 pessoas a facadas, tiros ou enforcadas.

Amanda Frost, da Faculdade de Direito da Universidade Americana de Washington, pesquisou o caso de Wong.

"Sabemos que Wong Kim Ark se mudou com sua família, talvez em resposta aos ataques e à ação dos grupos terroristas brancos", contou ela à BBC.

O pequeno Wong se mudou dali, mas voltaria pouco depois, com apenas 11 anos de idade. O trabalho infantil era comum naquela época e ele começaria a procurar emprego como cozinheiro.

A partir de então, sua vida transcorreu entre as poucas quadras do bairro chinês de São Francisco. Ali, a comunidade de origem chinesa vivia quase sem ter contato com os brancos americanos e mesmo com a China.

Mas Wong viajou para a China em várias ocasiões. Lá, ele criou uma família que manteve à distância por anos, como era comum entre os imigrantes chineses nos Estados Unidos na segunda metade do século 19.

"Naquela época, quase não havia mulheres chinesas nos Estados Unidos e o casamento com uma mulher branca era inconcebível", explica Nackenoff. "Por isso, se ele quisesse encontrar uma esposa, teria que ser na China."

Wong Kim Ark viajou várias vezes para a China, amparado pela condição de cidadão reconhecida pela 14ª Emenda. Mas, sempre que desembarcava dos navios, depois de atravessar o Pacífico, ele precisava responder aos cansativos questionários dos agentes de imigração. E, muitas vezes, eles relutavam a acreditar na palavra e nos documentos de uma pessoa com traços orientais.

Wong Kim Ark provavelmente estava acostumado com todo este processo. E, como outros, ele havia aprendido a superar os obstáculos.

Mas, em agosto de 1895, quando regressou da China a bordo do navio SS Coptic, Wong não imaginava que, desta vez, seu trâmite migratório seria mais longo e difícil do que nunca.

<><> A criação do precedente

As autoridades impediram a entrada de Wong nos Estados Unidos. Ele foi obrigado a permanecer no navio que o havia trazido da China.

Quando chegou a hora do navio partir, Wong foi transferido para outra embarcação. E depois para outra. E assim se passaram meses.

Frost explica que "o governo continuava negando a condição de americano aos filhos de chineses e procurava há tempos um caso para questionar a jurisprudência sobre a cidadania por nascimento perante a Suprema Corte".

Wong Kim Ark foi o escolhido.

Mas a comunidade chinesa já havia criado grupos coletivos de apoio para se defender da hostilidade social e institucional nos Estados Unidos. Foi assim que surgiram as chamadas "Seis Companhias Chinesas" – organizações que começaram a defender publicamente os direitos dos imigrantes da China no país.

Após a aprovação da Lei de Exclusão dos Chineses, as "Seis Companhias" começaram a recorrer judicialmente de inúmeras detenções e ordens de deportação contra pessoas de origem chinesa.

Seus responsáveis aparentemente compreenderam a importância do que estava em jogo no caso de Wong. Afinal, se a Suprema Corte decidisse contra ele, a 14ª Emenda e a cidadania de milhares de filhos de imigrantes ficariam em risco.

Por isso, as Seis Companhias forneceram a Wong uma equipe de advogados de primeira linha que, provavelmente, ele não teria conseguido pagar sozinho.

Entre eles, figuravam juristas brancos de prestígio, como o professor J. Hubley Ashton (1836-1907), da Universidade de Georgetown, e Maxwell Evarts (1862-1913), que chegaria a ser deputado no Estado de Vermont.

Evarts também era consultor das empresas construtoras da estrada de ferro na costa oeste americana. Elas estavam interessadas em manter a oferta de mão de obra chinesa e esta foi mais uma razão para que Wong Kim Ark, mesmo com seu baixo salário, fosse tão bem representado perante a Suprema Corte.

<><> Os argumentos

A audiência na Suprema Corte só começaria um ano e meio depois.

Encabeçando os representantes do governo, estava o procurador-geral americano Holmes Conrad (1840-1915), veterano de guerra que havia combatido nas fileiras dos confederados durante a Guerra Civil. Ele tentou convencer os juízes que a 14ª Emenda não amparava os descendentes de imigrantes chineses, por mais que houvessem nascido nos Estados Unidos.

O governo afirmava que, ao se referir aos nascidos nos Estados Unidos e "sujeitos à sua jurisdição", a emenda excluía os chineses que, ainda que nascidos no país, tivessem se mantido súditos do imperador da China, formando uma "mancha asquerosa e degradante" para a república.

Os advogados de Wong defenderam que, já no debate da Emenda no Congresso, havia ficado estabelecido que a alusão à jurisdição excluía da cidadania apenas os filhos de diplomatas estrangeiros, invasores hostis e tribos indígenas.

Eles também ressaltaram que negar a cidadania por nascimento prejudicaria os antigos escravizados, que eram claramente o grupo que se pretendia proteger com a criação da Emenda. Mas Wong tinha um argumento talvez ainda mais convincente a seu favor.

"Os advogados de Wong Kim Ark sabiam que a Suprema Corte era muito racista naquela época. Por isso, eles fizeram ver aos juízes que adotar a tese do governo faria com que os descendentes de ingleses, irlandeses, alemães e outros europeus brancos, que sempre haviam sido considerados cidadãos, perderiam sua cidadania."

A decisão foi finalmente anunciada em 28 de março de 1898. Wong foi o vencedor.

Ele passou a ser indiscutivelmente cidadão dos Estados Unidos, como todos os nascidos em território americano, independentemente da origem dos seus pais ou da cor da sua pele.

<><> O que aconteceu com Wong Kim Ark

Frost indica que, "depois do triunfo de Wong Kim Ark, os agentes federais de imigração não se deram por vencidos e o governo tentou estabelecer outras restrições de facto à cidadania por nascimento".

Para serem admitidos nos Estados Unidos, os americanos filhos de imigrantes chineses precisavam frequentemente apresentar alguma testemunha. Ambos eram submetidos a entrevistas separadas e precisavam responder, sem contradições, a perguntas como quantos degraus tinha a escadaria da sua casa na China, ou para qual lado ficava a frente do edifício da escola da sua aldeia natal.

Eles também eram frequentemente detidos dentro do território, simplesmente pelos seus traços orientais. E eram ainda submetidos a exames físicos, durante os quais ficavam completamente nus e suas partes íntimas eram exploradas.

Tudo isso fazia parte de uma tentativa de encontrar algum pretexto para negar sua permanência no país.

Frost explica que "muitos imigrantes chineses aprenderam como responder nas entrevistas, fornecer os documentos ou até apresentar casos falsos para enganar as autoridades de imigração".

De fato, muitos anos depois, em 1960, um dos supostos filhos de Wong, Han Juen, admitiu ter mentido no processo para obter autorização de residência permanente nos Estados Unidos. Na verdade, não havia nenhum parentesco entre eles.

Mas como Wong atravessou todo o seu processo judicial? A rejeição do país onde nasceu o afetou?

"Não temos evidências diretas, mas sabemos que, quando tinha cerca de 60 anos e não conseguia mais trabalho como cozinheiro, ele decidiu deixar os Estados Unidos", conta Nackenoff.

Wong partiu em 1931 e nunca mais voltou. Seu caso continua sendo o muro de proteção da cidadania por nascimento nos Estados Unidos contra as medidas de Donald Trump para tentar eliminá-la.

Mas as ações do presidente americano demonstram que o debate sobre quem realmente forma "o povo dos Estados Unidos" ainda não terminou.

 

Fonte: BBC News Mundo

 

 

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