O cozinheiro de pais
chineses que está na origem da cidadania por nascimento nos EUA que Trump quer
eliminar
"Nós, o povo
dos Estados Unidos..." Assim
começa a primeira linha da Constituição americana.
Mas quem constitui
esse povo? Esta é uma questão que se arrasta quase desde a fundação do país, no
final do século 18.
Os questionamentos
persistem até os dias de hoje, como demonstra a ordem executiva assinada pelo
presidente Donald Trump, que
pretendia pôr fim à cidadania
por nascimento,
vigente no país há mais de um século.
Como parte da sua
ofensiva contra a imigração irregular, Trump pretende fazer com que os filhos
de estrangeiros sem autorização de residência nos Estados Unidos, nascidos no
país, não recebam automaticamente a cidadania americana, como ocorre
atualmente.
Trump rejeita a
cidadania por nascimento por considerá-la algo "ridículo", que
concede o "privilégio" da cidadania americana a "pessoas não
qualificadas".
Mas a Justiça suspendeu a
ordem de Trump.
Um juiz federal do Estado americano de Washington considerou a medida
"claramente inconstitucional".
Na verdade, Trump e
o movimento conservador americano tentam reabrir uma questão definida pela
Justiça do país há muito tempo – mais precisamente, em 1898. Naquele ano, a
Suprema Corte emitiu decisão favorável a um humilde cozinheiro de origem
chinesa, na sua batalha judicial contra o governo dos Estados Unidos.
Seu nome era Wong
Kim Ark. E esta é a sua história.
<><> Quem
era ele?
Wong Kim Ark nasceu
em São Francisco, no Estado americano da Califórnia. O humilde cozinheiro vinha
de uma família de imigrantes chineses.
Muitas pessoas se
mudaram da China para os
Estados Unidos na
segunda metade do século 19, fugindo da pobreza no seu país. Eles saíram em
busca dos empregos criados pela construção da estrada de ferro, que ligaria o
Oeste dos Estados Unidos ao restante do país, e pela abolição da escravatura,
após a Guerra Civil americana (1861-1865).
Bairros chineses se
formaram em cidades americanas, como São Francisco, onde viria a nascer Wong
Kim Ark.
A professora de
ciências políticas Carol Nackenoff, do Swarthmore College, nos Estados Unidos,
é a autora do livro American by Birth: Wong Kim Ark and the Battle for
Citizenship ("Americano por nascimento: Wong Kim Ark e a batalha pela
cidadania", em tradução livre).
Ela declarou à BBC
News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) que "não sabemos exatamente
quando, mas seus pais haviam chegado ao país perto de 1860 e seu pai se
estabeleceu como comerciante".
Algumas fontes
afirmam que ele nasceu em 1870, outras em 1873. De qualquer forma, Wong veio ao
mundo após a ratificação da 14ª Emenda à Constituição Americana, que
estabeleceu a cidadania por nascimento em 1868.
Esta emenda
procurava pôr fim à discriminação que os cidadãos afro-americanos continuavam
sofrendo em muitos Estados do sul, que negavam sua condição de cidadãos, mesmo
após a abolição da escravatura.
Até então, em
grande parte do país, muitos negros eram excluídos do que a Constituição chama
de "o povo dos Estados Unidos". O mesmo ocorreu com os povos
originários americanos por décadas.
A 14ª Emenda
declarou que "todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados
Unidos e sujeitas à sua jurisdição são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado
onde residem". A medida também proibiu que os Estados aprovassem leis que
restringissem os direitos desses cidadãos.
Com esta medida, o
pequeno Wong Kim Ark e os demais descendentes de imigrantes chineses nascidos
nos Estados Unidos deveriam ser considerados cidadãos americanos, de pleno
direito.
Mas nem todos no
país estavam de acordo com esta decisão. E nem mesmo o governo federal, que
levou o caso de Wong para a mais alta instância judicial americana, tentando
negar sua cidadania.
<><> Xenofobia
contra os chineses
Naquela época, os
imigrantes chineses e seus descendentes sofriam hostilidade cada
vez maior nos Estados Unidos. Grupos locais responsabilizavam os
imigrantes por ocuparem postos de trabalho no país por salários mais baixos.
Textos da época
apresentavam os imigrantes chineses como "inassimiláveis". Eles eram
acusados de serem dependentes de ópio, incentivar a prostituição e de continuar
sendo súditos do imperador da China, mesmo morando nos
Estados Unidos.
Surgia uma retórica
anti-China cada vez maior. Os Estados americanos da Califórnia e de Oregon
aprovaram leis que excluíam os imigrantes chineses de certos trabalhos e
espaços sociais e os impediam de adquirir bens imóveis.
A pressão dos
sindicatos de trabalhadores brancos da Califórnia fez com que o Congresso
americano aprovasse, em 1882, a Lei de Exclusão dos Chineses. Ela determinava a
deportação de todos os imigrantes chineses nos Estados Unidos, negando a eles
qualquer possibilidade de nacionalização.
O objetivo
declarado da lei era "proteger os brancos dos Estados do Pacífico"
contra "a associação degradante e destrutiva com uma raça inferior que,
agora, ameaça invadi-los".
Antes mesmo da
legislação, o clima de hostilidade já havia gerado ataques violentos contra os
imigrantes chineses na Califórnia. Estes ataques, provavelmente, sacudiram a
comunidade fechada onde crescia o bebê Wong.
Um dos incidentes
mais sangrentos ocorreu em outubro de 1871. Uma multidão de brancos arrasou o
bairro chinês de Los Angeles, na Califórnia, matando 18 pessoas a facadas,
tiros ou enforcadas.
Amanda Frost, da
Faculdade de Direito da Universidade Americana de Washington, pesquisou o caso
de Wong.
"Sabemos que
Wong Kim Ark se mudou com sua família, talvez em resposta aos ataques e à ação
dos grupos terroristas brancos", contou ela à BBC.
O pequeno Wong se
mudou dali, mas voltaria pouco depois, com apenas 11 anos de idade. O trabalho
infantil era comum naquela época e ele começaria a procurar emprego como
cozinheiro.
A partir de então,
sua vida transcorreu entre as poucas quadras do bairro chinês de São Francisco.
Ali, a comunidade de origem chinesa vivia quase sem ter contato com os brancos
americanos e mesmo com a China.
Mas Wong viajou para
a China em várias ocasiões. Lá, ele criou uma família que manteve à distância
por anos, como era comum entre os imigrantes chineses nos Estados Unidos na
segunda metade do século 19.
"Naquela
época, quase não havia mulheres chinesas nos Estados Unidos e o casamento com
uma mulher branca era inconcebível", explica Nackenoff. "Por isso, se
ele quisesse encontrar uma esposa, teria que ser na China."
Wong Kim Ark viajou
várias vezes para a China, amparado pela condição de cidadão reconhecida pela
14ª Emenda. Mas, sempre que desembarcava dos navios, depois de atravessar o
Pacífico, ele precisava responder aos cansativos questionários dos agentes de
imigração. E, muitas vezes, eles relutavam a acreditar na palavra e nos
documentos de uma pessoa com traços orientais.
Wong Kim Ark
provavelmente estava acostumado com todo este processo. E, como outros, ele
havia aprendido a superar os obstáculos.
Mas, em agosto de
1895, quando regressou da China a bordo do navio SS Coptic, Wong não imaginava
que, desta vez, seu trâmite migratório seria mais longo e difícil do que nunca.
<><> A
criação do precedente
As autoridades
impediram a entrada de Wong nos Estados Unidos. Ele foi obrigado a permanecer
no navio que o havia trazido da China.
Quando chegou a
hora do navio partir, Wong foi transferido para outra embarcação. E depois para
outra. E assim se passaram meses.
Frost explica que
"o governo continuava negando a condição de americano aos filhos de
chineses e procurava há tempos um caso para questionar a jurisprudência sobre a
cidadania por nascimento perante a Suprema Corte".
Wong Kim Ark foi o
escolhido.
Mas a comunidade
chinesa já havia criado grupos coletivos de apoio para se defender da
hostilidade social e institucional nos Estados Unidos. Foi assim que surgiram
as chamadas "Seis Companhias Chinesas" – organizações que começaram a
defender publicamente os direitos dos imigrantes da China no país.
Após a aprovação da
Lei de Exclusão dos Chineses, as "Seis Companhias" começaram a
recorrer judicialmente de inúmeras detenções e ordens de deportação contra
pessoas de origem chinesa.
Seus responsáveis
aparentemente compreenderam a importância do que estava em jogo no caso de
Wong. Afinal, se a Suprema Corte decidisse contra ele, a 14ª Emenda e a
cidadania de milhares de filhos de imigrantes ficariam em risco.
Por isso, as Seis
Companhias forneceram a Wong uma equipe de advogados de primeira linha que,
provavelmente, ele não teria conseguido pagar sozinho.
Entre eles,
figuravam juristas brancos de prestígio, como o professor J. Hubley Ashton
(1836-1907), da Universidade de Georgetown, e Maxwell Evarts (1862-1913), que
chegaria a ser deputado no Estado de Vermont.
Evarts também era
consultor das empresas construtoras da estrada de ferro na costa oeste
americana. Elas estavam interessadas em manter a oferta de mão de obra chinesa
e esta foi mais uma razão para que Wong Kim Ark, mesmo com seu baixo salário,
fosse tão bem representado perante a Suprema Corte.
<><> Os
argumentos
A audiência na
Suprema Corte só começaria um ano e meio depois.
Encabeçando os
representantes do governo, estava o procurador-geral americano Holmes Conrad
(1840-1915), veterano de guerra que havia combatido nas fileiras dos
confederados durante a Guerra Civil. Ele tentou convencer os juízes que a 14ª
Emenda não amparava os descendentes de imigrantes chineses, por mais que
houvessem nascido nos Estados Unidos.
O governo afirmava
que, ao se referir aos nascidos nos Estados Unidos e "sujeitos à sua
jurisdição", a emenda excluía os chineses que, ainda que nascidos no país,
tivessem se mantido súditos do imperador da China, formando uma "mancha
asquerosa e degradante" para a república.
Os advogados de
Wong defenderam que, já no debate da Emenda no Congresso, havia ficado
estabelecido que a alusão à jurisdição excluía da cidadania apenas os filhos de
diplomatas estrangeiros, invasores hostis e tribos indígenas.
Eles também
ressaltaram que negar a cidadania por nascimento prejudicaria os antigos
escravizados, que eram claramente o grupo que se pretendia proteger com a criação
da Emenda. Mas Wong tinha um argumento talvez ainda mais convincente a seu
favor.
"Os advogados
de Wong Kim Ark sabiam que a Suprema Corte era muito racista naquela época. Por
isso, eles fizeram ver aos juízes que adotar a tese do governo faria com que os
descendentes de ingleses, irlandeses, alemães e outros europeus brancos, que
sempre haviam sido considerados cidadãos, perderiam sua cidadania."
A decisão foi
finalmente anunciada em 28 de março de 1898. Wong foi o vencedor.
Ele passou a ser
indiscutivelmente cidadão dos Estados Unidos, como todos os nascidos em
território americano, independentemente da origem dos seus pais ou da cor da
sua pele.
<><> O
que aconteceu com Wong Kim Ark
Frost indica que,
"depois do triunfo de Wong Kim Ark, os agentes federais de imigração não
se deram por vencidos e o governo tentou estabelecer outras restrições de facto
à cidadania por nascimento".
Para serem
admitidos nos Estados Unidos, os americanos filhos de imigrantes chineses
precisavam frequentemente apresentar alguma testemunha. Ambos eram submetidos a
entrevistas separadas e precisavam responder, sem contradições, a perguntas
como quantos degraus tinha a escadaria da sua casa na China, ou para qual lado
ficava a frente do edifício da escola da sua aldeia natal.
Eles também eram
frequentemente detidos dentro do território, simplesmente pelos seus traços
orientais. E eram ainda submetidos a exames físicos, durante os quais ficavam
completamente nus e suas partes íntimas eram exploradas.
Tudo isso fazia
parte de uma tentativa de encontrar algum pretexto para negar sua permanência
no país.
Frost explica que
"muitos imigrantes chineses aprenderam como responder nas entrevistas,
fornecer os documentos ou até apresentar casos falsos para enganar as
autoridades de imigração".
De fato, muitos
anos depois, em 1960, um dos supostos filhos de Wong, Han Juen, admitiu ter
mentido no processo para obter autorização de residência permanente nos Estados
Unidos. Na verdade, não havia nenhum parentesco entre eles.
Mas como Wong
atravessou todo o seu processo judicial? A rejeição do país onde nasceu o
afetou?
"Não temos
evidências diretas, mas sabemos que, quando tinha cerca de 60 anos e não
conseguia mais trabalho como cozinheiro, ele decidiu deixar os Estados
Unidos", conta Nackenoff.
Wong partiu em 1931
e nunca mais voltou. Seu caso continua sendo o muro de proteção da cidadania
por nascimento nos Estados Unidos contra as medidas de Donald Trump para tentar
eliminá-la.
Mas as ações do
presidente americano demonstram que o debate sobre quem realmente forma "o
povo dos Estados Unidos" ainda não terminou.
Fonte: BBC News
Mundo
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