A
rotina e os desafios das mulheres no mercado financeiro
Em agosto de 2021,
uma foto despretensiosa da equipe da Ável Investimentos, publicada na rede
social do escritório de assessores, viralizou. No terraço do escritório, no Rio
Grande do Sul, cerca de 100 funcionários se reuniram e posaram para uma foto de
equipe. Um
ponto, no entanto, chamou a atenção: a ausência de diversidade. Dentre uma centena de assessores, gestores e analistas havia
somente 10 mulheres. A falta de contraste de gênero vinha acompanhada também da
falta de equidade racial. Igualdade, só de faixa etária: todos jovens. Em uma simples imagem, ficaram expostas as entranhas do mercado
financeiro. Há um predomínio absoluto de homens brancos, que dominam de ponta a
ponta a operação e a tomada de decisão no setor. Anos depois da
polêmica — que rendeu até processo e acordos judiciais —, a composição da
equipe da Ável mudou, mas não tanto assim. Procurada
pelo g1, a empresa
disse que a participação feminina na empresa cresceu impressionantes 650% de
2021 a março de 2024. Em números absolutos, no entanto, a marca é menos
vistosa: eram
10 na época da foto e, no ano passado, 75 mulheres. Em proporção,
a fatia feminina era de 15%
de todo o quadro de colaboradores, que conta com 489
funcionários.
Patrícia Kaefer, chefe de recrutamento e seleção da
Ável, diz que a empresa entende que a representação feminina no setor ainda não
reflete um avanço proporcional ao total de profissionais da empresa, mas está
comprometida em "desvendar as nuances dessa realidade e em empreender
esforços para fomentar o crescimento profissional das colaboradoras".
Apesar de ser um exemplo cristalino, a situação da
Ável não é uma particularidade da empresa. É apenas o reflexo de um problema
crônico de um setor que deixou crescer (e tem dificuldades sérias para
combater) uma cultura predominantemente masculina. No último ano, o g1 mergulhou no problema para entender suas causas, consequências e
suas possíveis soluções. O que se observou do relato de mulheres que fizeram
carreira no mercado financeiro é que não são raros os momentos em que é preciso
enfrentar casos de assédios sexual e moral, que impactam a autoestima, o
comportamento e o desempenho no ambiente de trabalho — fora os salários
significativamente menores. Foram ouvidos também especialistas em carreira,
comportamento, história e realidade socioeconômica, para entender o que contribui
para a perpetuação dessa cultura. Também, as principais instituições
financeiras do país foram convidadas a apresentarem suas propostas de melhorias
para a falta de diversidade e planos afirmativos para a carreira de mulheres,
mas apenas três delas responderam.
·
Onde estão e o que fazem as mulheres
A economista e empresária Francine Mendes, criadora
da plataforma Elas Que Lucrem, cansou de ver a desigualdade de gênero dominar o
quadro de funcionários das instituições financeiras em que trabalhou. Ela passou
por quatro das mais tradicionais empresas do segmento em 21 anos de mercado
financeiro, antes de começar a empreender. "Em minha experiência, sempre
houve uma função ocupada 100% por mulheres: recepcionista. É constrangedor ver
a forma como garotas belas são usadas como iscas para agradar e adular os
homens de alta renda", comenta. Além do atendimento, não é incomum que
mulheres do mercado financeiro estejam em posições de recursos humanos e
comunicação. Mesmo se estiverem nos serviços financeiros, estão em cargos
ligados aos primeiros atendimentos ao cliente, como caixas em bancos e gerentes
de contas. Se o primeiro diagnóstico é que mulheres estão distantes do processo
de decisão, é preciso mostrar essa discrepância em números. O g1 pediu, então, às principais instituições que fornecem
certificações para analistas e gestores do mercado financeiro que levantassem o
número de homens e mulheres na área.
Entre os assessores de investimentos, que auxiliam
os clientes a tomar a melhor decisão na hora de investir, com base em cada
perfil e objetivos, as mulheres eram apenas 21% de um total de 28.757
assessores credenciados pela Associação Nacional das
Corretoras de Valores (Ancord) até 2024. Já entre os planejadores financeiros,
que são aqueles que ajudam o cliente com a organização das contas e a
administração dos recursos, a participação feminina era de 36% no ano passado,
segundo a Planejar. A única certificação que conta com mais mulheres do que
homens é a CPA-10, da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados
Financeiro e de Capitais (Anbima), com
55% de mulheres em um total de 24.413 certificados em 2023, com
base nos dados mais atualizados. Com essa certificação, o profissional fica
habilitado somente a distribuir produtos financeiros. Na prática, é o
profissional que entra em contato com os clientes da instituição em que
trabalha, geralmente os de menor renda, para sugerir os produtos financeiros
recomendados pelos analistas e especialistas com certificações de níveis
superiores. Ainda entre as certificações da Anbima, quanto maior o nível da
certificação, menor o número de mulheres certificadas.
Entre os profissionais CEA, por exemplo, que podem
oferecer consultoria de investimentos, somente 36% eram mulheres,
de um total de 7.755 certificados em 2023. Já entre os profissionais CGA, que
podem gerenciar os recursos de outras pessoas, 9% foram as mulheres certificadas, de
753. O número fica ainda menor ao olhar para os gestores de
fundos de investimento, que são responsáveis por analisar os produtos e definir
as estratégias sobre a aplicação dos recursos captados pelo fundo, a fim de
obter os melhores resultados possíveis. Um levantamento da Quantum Finance com
os fundos ativos brasileiros mostrou que, de 1.052 gestores de fundos em
atividade no país até setembro de 2023, somente 50 eram mulheres, o que
representa 4,75% do total.
Caroline Gobbi tem até um nome para o fenômeno
observado com esses dados. Formada em administração, ela trabalha no mercado
financeiro desde o início da carreira, há mais de 10 anos, e percebeu que as
mulheres são, muitas vezes, colocadas para trabalhar na "linha de
guerra". "Mulheres estão sempre à frente para receber as reclamações,
para resolver os problemas do dia a dia, problema com o cartão, problema de
saque. Enfim, todas essas banalidades quando a gente olha o mercado financeiro
como um todo", pontua Caroline. Colocadas em posições de menor
importância, é de se esperar que os salários de mulheres no setor sejam menores
que os de homens, na média. Pois o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) não só demonstrou isso em números, como mostrou
que a discrepância salarial nesse setor é a maior dentre as áreas investigadas
por uma pesquisa publicada em junho de 2024.
O levantamento foi feito com base no Cadastro
Central de Empresas (CEMPRE) de 2022, que reúne dados de empresas e seus
empregados, inclusive salários, excluindo apenas os empresários enquadrados
como Microempreendedor Individual - MEI. Embora as mulheres fossem a maioria na área de atividades financeiras,
de seguro e serviços relacionados — 663.091 profissionais contra 498.611 homens
—, elas ganhavam salários, em média,
68,7% menores que eles. Enquanto
o salário médio de uma mulher do setor é de R$ 6.205,02, o de
homens chega a R$ 10.469,21.
É a maior diferença entre 20 setores.
Jefferson Mariano, analista do IBGE e professor de
realidade socioeconômica brasileira, explica que a causa dessa disparidade
salarial pode ser explicada, sobretudo, pela ocupação desigual de cargos dentro do
mercado financeiro. O analista lembra que o último Censo da
Educação, do INEP, mostra que as mulheres são maioria nos cursos de graduação
que formam profissionais do setor. Em 2022, para a área de Negócios,
Administração e Direito, as mulheres eram 56,6% dos formandos, contra 43,4% homens.
"O que pode explicar é realmente a questão de progressão na carreira, a
questão hierárquica. Ou seja, a gente tem poucas mulheres ocupando cargos mais
altos nesse segmento", aponta. Mariano conta que um comentário comum entre
as mulheres do mercado financeiro entrevistadas para a pesquisa era "a grande dificuldade em
crescer na carreira por mérito próprio", devida a uma tendência
de os gestores priorizarem homens em seleções para cargos altos. Outra
reclamação das entrevistadas era a forte presença do "coleguismo",
que é a promoção de funcionários mais íntimos dos chefes.
De acordo com Waleska Jardim, líder de contratação e
carreira da BFSH, uma consultoria de recursos humanos para o ecossistema
financeiro, muitas mulheres de empresas tradicionais do mercado, como bancos e
corretoras, a procuram justamente para migrar de área porque não enxergam
possibilidade de crescimento onde estão. E a situação piora depois que se
tornam mães. "O ritmo e o ambiente de trabalho se tornam incompatíveis com
a vida delas. É um setor que demanda uma certa agressividade, sem a
oportunidade de crescer ou de ganhar o mesmo que um homem na mesma função",
comenta Waleska. Em geral, a opção que essas mulheres encontram é de
desenvolver um trabalho semelhante fora do coração do mercado financeiro — como
companhias de varejo ou empresas de tecnologia com serviços financeiros
(fintechs), por exemplo — que têm uma cultura organizacional diferente.
·
O contexto de relações de poder
Com tamanha diferença de participação percentual
entre homens e mulheres nos espaços de liderança, não é incomum que se forme
uma dinâmica de poder masculino. Mariana Bettega Braunert, professora e doutora
em sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), explica que espaços
profissionais que são historicamente dominados por homens trazem uma sensação
de liberdade para eles. "Em ambientes em que predomina a presença e liderança
masculina, as mulheres ficam mais vulneráveis porque assédios são mais comuns e
ocorrem sem punição — seja por homens silenciando as denúncias, ou excluindo as
mulheres de determinados espaços, até coisas mais graves", pontua Mariana.
Outro ponto de incômodo de um ambiente majoritariamente masculino é que as
mulheres têm a impressão de que não há a quem recorrer para relatar condutas
inapropriadas. No mercado financeiro, agrava a situação o fato de que o trato
com clientes endinheirados é o coração do negócio. Por vezes, as rodas de
negócios são dominadas por homens, o que traz um elemento a mais de pressão
para situações delicadas.
·
As vivências de mulheres da área
Tatiana Berenguer fez carreira como designer de
joias, até se apaixonar pelo mercado financeiro. Há sete anos, decidiu atuar na
área de relacionamento com investidores. A mudança a fez notar a diferença
entre eventos do setor de moda para o ambiente que encontrou no mercado
financeiro. "No mercado financeiro, de uma forma geral, são muitos homens
e são ambientes em que os homens estão em situação de poder. E toda vez que
você está vulnerável, seja pelo seu cargo, seja para fechar um negócio, a
situação se torna delicada. Tem que ter muito jogo de cintura", comenta
Tatiana. O que Tatiana chama de
"jogo de cintura" é sair de uma situação de assédio sem
perder o cliente. Ela relembra situações em que reuniões de
negócios se transformaram em tentativas de encontros românticos. Até propostas
indevidas de relações sexuais, em pessoa ou por mensagem de texto, já
aconteceram. Em um dos piores exemplos, Tatiana relata um abuso que sofreu
durante uma reunião em um restaurante. "O amigo do cliente se aproveitou de uma situação para passar a mão
em mim e passar a mão em uma colega de trabalho". Tatiana
comenta que, apesar de sempre tentar levar situações desagradáveis de "uma
maneira leve", já cansou de perder negócios por situações em que clientes
passaram muito dos limites. "Se a prioridade do cliente for ganhar
dinheiro, então ele vai fazer negócio. Mas se o cliente quer, na verdade, ter
um envolvimento sexual com você, então 'tchau'. Óbvio que nisso você perde
negócios. Com certeza, já perdi várias oportunidades. Mas eu mantive a minha
credibilidade, meus princípios, minha moral", diz Tatiana.
Caroline Gobbi tem relatos semelhantes de situações
com clientes, mas também de superiores dentro de empresas em que já trabalhou.
Em uma delas, sugeriam que as funcionárias fossem trabalhar com roupa decotada,
saias curtas e tentassem seduzir os clientes para fechar negócios. É um caso
clássico em que uma cobrança que deveria ser profissional passa o limite do
tratamento ético entre colegas de trabalho. Não bastasse, a pressão chega
também do outro lado do balcão. "Quando alguém indicava cliente e era
final do mês, a gente nem pensava duas vezes, porque as metas de abertura de
contas eram muito agressivas. Mas, depois de algumas situações desagradáveis,
as mulheres da área começaram a compartilhar a localização", afirma
Caroline. "Era 'olha, eu
estou indo a um cliente homem de uma indicação. Se em 40 minutos eu não mandar
mensagem, você me liga'. A gente começou a adotar esse tipo de postura, de
precaução."
Em meio a todos os relatos ao g1, foram poucas as histórias que tiveram um desfecho satisfatório ao
olhar para a atitude da empresa frente aos problemas. Embora algumas companhias
tenham programas de acolhimento e ouvidorias atuantes e independentes, a
maioria dos casos contados pelas entrevistadas não foram levados adiante pelas empresas.
Por vezes, as mulheres nem reportaram os ocorridos, por conta dessa cultura
organizacional em que o assédio é muito comum. São poucas instituições que têm
programas adequados de suporte e uma política mais rígida de enfrentamento ao
assédio, deixando as trabalhadoras vulneráveis a situações constrangedoras.
Ana Leoni tem mais de 30 anos de carreira no
mercado financeiro e já passou por grandes instituições. Mesmo com uma carreira
bem-sucedida, lembra de inúmeras situações de negócios e de networking do setor
em ambientes absolutamente inadequados, em que as mulheres ou não são
bem-vindas ou não se sentem confortáveis — de partidas de golf a casas de
striptease. "Sem dúvida nenhuma eu já perdi muitas oportunidades. Eu me
lembro das vezes em que a gente tinha eventos do mercado e havia os
'pós-eventos', em ambientes em que eu não gostaria de estar", afirma Ana.
Isabela Teixeira, psicóloga especializada em
terapias cognitivas e comportamentais, explica que o comportamento e desempenho
profissional das mulheres é prejudicado em situações como essas, pois elas
precisam alterar seu jeito de agir por conta do ambiente inóspito. Além disso,
muitas das profissionais sequer têm a oportunidade de estar nesses espaços em
que novas oportunidades podem surgir. "Ela passa a evitar situações que
possam desencadear o assédio, ela passa a ter uma postura mais defensiva,
evitando o contato com os colegas homens, restringindo as suas expressões no
ambiente de trabalho, deixando de participar, de expressar sua opinião", explica
Isabela.
·
Maternidade limita ainda mais as possibilidades
Se sem filhos o cenário já é repleto de desafios,
quando a mulher se torna mãe as coisas ficam ainda mais difíceis. E essa é uma
realidade no mercado de trabalho como um todo: pelo menos 40% das mulheres deixam a vida profissional por conta
da maternidade e podem levar até cinco ano para conseguirem
uma recolocação. E quanto mais masculino é o ambiente de trabalho, menor é o
apoio e as oportunidades de crescimento. Afinal, "não dá para explicar um
latido para quem não sabe o que é um cachorro", diz Caroline Gobbi,
falando sobre a dificuldade dos homens em entenderem as demandas das mulheres
após a maternidade.
Ela e Francine Mendes, da Elas Que Lucrem,
compartilham uma lembrança em comum. As duas foram contratadas por instituições
financeiras para desenvolverem suas carteiras de clientes. Quando engravidaram
e precisaram sair de licença-maternidade, sofreram com a ameaça de perder o
trabalho que construíram. No caso de Francine, os clientes foram repassados
para outros profissionais, obrigando-a a recomeçar sua carteira do zero quando
voltou. Com Caroline, o desfecho foi melhor: ela tinha uma liderança feminina,
que segurou a carteira até sua volta.
A psicóloga Isabela Teixeira afirma que o medo das
consequências de ser mãe na vida profissional começa mesmo antes de uma
gravidez. "A primeira fonte de insegurança é quando a mulher toma a
decisão de ser mãe. A mulher já teme que a maternidade seja vista como uma
limitação na dedicação ao trabalho", explica a psicóloga. Pelo contrário:
um estudo realizado pela Microsoft com 2 mil mulheres e 500 empregadores em
2014 concluiu que, ao tornarem-se mães, as mulheres aprimoram habilidades
essenciais no local de trabalho, como a capacidade de focar em multitarefas e a
melhor organização do tempo. Apesar disso, a maternidade contribui, historicamente,
com a disparidade salarial e de oportunidades entre homens e mulheres (o
famoso "gender gap", como o termo foi cunhado em inglês). Essa foi
uma conclusão das pesquisas desenvolvidas por Claudia Goldin, pesquisadora que venceu o Prêmio Nobel de Economia em 2023, por seus estudos sobre mulheres no mercado de trabalho.
A economista analisou dados sobre a presença de
mulheres no mercado de trabalho nos EUA e outros países nos últimos 200 anos, e
percebeu que o gender gap fica muito mais evidente quando as mulheres precisam
decidir se e quando querem ter filhos. "Historicamente, grande parte da
disparidade salarial entre homens e mulheres poderia ser explicada por
diferenças na educação e nas escolhas profissionais. Contudo, Goldin demonstrou
que a maior parte desta diferença de rendimento ocorre agora entre mulheres que
exercem a mesma profissão, mas que surgem em grande parte com o nascimento do
primeiro filho", explicou a academia que concede as premiações. Não à toa,
a maior ascensão na presença de mulheres no mercado de trabalho após o período
da Revolução Industrial aconteceu após a invenção das pílulas contraceptivas. E
um fenômeno parecido ocorreu com o congelamento de óvulos, uma opção que
mulheres que querem crescer e chegar a cargos de liderança encontraram realizar
o sonho profissional sem perder a chance de se tornarem mães. Só no Brasil, o número de óvulos congelados
aumentou 96,5% em três anos, passando de 56.710 em 2020 para
111.413 em 2023. Sem surpresa, a situação é pior em ambientes com
uma cultura corporativa predominantemente masculina, como mostra a pesquisa
"Fazendo uma carreira em um campo dominado por homens: o significado do
trabalho para mulheres empregadas do mercado financeiro", de 2017.
As pesquisadoras Julianna Gripp Spinelli-de-Sá, Ana
Heloisa da Costa Lemos e Flávia de Souza Costa Neves Cavazote entrevistaram
funcionárias de seis grandes instituições do mercado financeiro para esmiuçar a
questão em detalhes. As personagens relataram o ambiente de trabalho exige comportamentos
considerados masculinos — como agressividade e uma postura workaholic —, que
interferem em sua rotina com a maternidade. Elas mencionaram sentir que não
conseguem dar conta do cuidado com os filhos ou que estão exaustas devido à
dupla jornada.
Uma das entrevistadas, gerente de projetos em um
banco, disse que seu principal dilema é "saber que o filho está sendo
educado por uma babá e que não faz parte do dia a dia". "Ele me
pergunta: 'Que horas você vai chegar em casa?' Esse jogo é sempre um dilema.
Trabalhar em um banco com a carga de trabalho que temos é realmente um desafio
para as mulheres". Por isso virou rotina que muitas mulheres deixem de
avançar na carreira ou, para tentar cargos melhores, adiam a decisão de se
tornarem mães.
A história de Mariella Gontijo comprova isso. Ela
tem mais de 30 anos de experiência no mercado financeiro e uma carreira de
sucesso, com passagem pela liderança da área de private de um dos maiores
bancos brasileiros e de um grupo financeiro suíço, ocupando cargos de alta
liderança. Mesmo já bem-sucedida, ela temia os impactos que a maternidade
poderia trazer para sua vida, com uma possível redução nas oportunidades. Só quis ser mãe chegando aos 40 anos,
"porque o médico falou 'olha, ou você tem filho agora ou não tem
mais'".
·
O caminho até a liderança
Em 2024, a Associação Brasileira de Bancos promoveu
a primeira edição do "Selo Mais
Mulheres na Liderança", um reconhecimento de instituições
financeiras que possuem, no mínimo, duas mulheres em cargos de diretoria. Entre as 120 instituições associadas à
ABBC, somente 26 receberam o selo, ou 22% das empresas — um
número que representa bem a realidade. É difícil encontrar as mulheres que
chegaram "lá" no mercado financeiro. A Mariella Gontijo foi uma
delas. Começou em posições mais baixas, ainda em agências pequenas de cidades
de Minas Gerais, onde nasceu, até que se mudou para São Paulo e passou a
enxergar com mais clareza que o ambiente não era tão receptivo com mulheres,
mesmo crescendo profissionalmente. "Eu fui chegando e eu fui tomando mais
consciência dessa questão do que é ser mulher no mercado financeiro quando eu
cheguei em São Paulo, porque aí sim você chega na matriz, onde as decisões mais
estratégicas são tomadas", conta Mariella. "E é nesse momento que
você consegue perceber primeiro que tem poucas (mulheres no mercado financeiro)
— você tem muitos pares homens ao seu lado — e menos ainda em cargos de
liderança".
Apesar das dificuldades, das coisas que abriu mão
ou deixou para depois, Mariella chegou a cargos de liderança e comenta
que buscou promover ambientes mais
acolhedores entre as equipes que geriu. No trajeto, percebeu que
a falta de diversidade no mercado afeta diretamente o comportamento daqueles
que são a minoria. Ela lembra de uma ocasião em que um dos funcionários a
procurou para contar que estava prestes a se casar com outro homem, e que havia
um constrangimento em assumir para os colegas sua orientação sexual. "Eu
nunca imaginei que, na empresa em que eu estava, alguém se sentiria assim,
porque não era o ambiente que era criado, pelo menos não na minha cabeça. Isso
me marcou muito e eu pensei 'poxa, como que uma pessoa precisa mudar, se
esconder para poder estar confortável no ambiente de trabalho?'", diz. Guiada
por essas percepções que adquiriu durante as três décadas de mercado
financeiro, Mariella abriu sua própria empresa, a Vos Investimentos, e fez da
busca pela igualdade de gênero uma das prioridades do negócio. Com a
consultoria, Mariella propõe aos clientes que seus investimentos possam
"promover algum bem para o mundo" — que seja investindo em um fundo
com mulheres na gestão ou em ativos com algum impacto positivo para o meio
ambiente, por exemplo. Mas o desejo é também promover essa visão diferente
dentro de casa, com os próprios funcionários da empresa. Por isso, a ideia já
nasceu com um grande compromisso: que, pelo menos, 55% de sua equipe e gestão sejam compostas por
minorias, com diversidade de gênero, raça, orientação sexual e outras questões.
Além disso, Mariella diz que qualquer funcionária, ao engravidar, continuará
apta a receber o mesmo bônus que qualquer outro dentro da empresa, sem impacto
pelo tempo de licença-maternidade — para que nenhuma outra mulher ali precise
sofrer com o dilema de ser mãe ou não.
·
O que pode mudar o mercado?
A participação de mais mulheres em mais espaços no
mercado financeiro também é a chave para a mudança da cultura organizacional
marcada por casos de assédio e dificuldade de crescimento na carreira. É isso
que indica a pesquisa "Desigualdade de gênero no mercado financeiro: uma
verdade inconveniente", elaborada por Bianca Quirantes Checon, Laura
Mendonça Penido Sampaio Gomes e Claudia Yoshinaga, e publicada em 2023 pela
FGV. A pesquisa
entrevistou 214 funcionários de empresas do mercado financeiro e,
além de extrair dados de diferenças hierárquicas e salariais entre os gêneros,
também mapeou seis frentes de atuação para a diminuição da desigualdade:
1. Estímulo à formação de mulheres na área de finanças;
2. Oferta de vagas especificamente a mulheres;
3. Políticas de promoção e de remuneração transparentes;
4. Promoção de canais institucionais anônimos e eficazes para denúncias de
assédio moral e sexual;
5. Condições de trabalho adequadas;
6. Divulgação dos dados de cargos e remuneração por gênero nas empresas.
As pesquisadoras acreditam que a mudança começa na
base, apresentando às garotas e jovens mulheres as possibilidades de trabalho
na área, o que pode aumentar o interesse e o encorajamento para se inscreverem
em boas vagas do setor. Além disso, a pesquisa destaca a necessidade de
diversidade no processo seletivo e de critérios que eliminem "crenças
limitantes" — como a ideia de que homens são melhores em exatas. As
pesquisadoras sugerem que, pelo menos, duas mulheres sejam consideradas para
cada nova vaga ou promoção antes de a empresa tomar uma decisão. Também,
"o uso de entrevistas estruturadas, com critérios previamente definidos
para medir o desempenho dos candidatos, pode ajudar a minimizar o impacto de
vieses inconscientes no processo de decisão." E, para manter as mulheres
que já estão no mercado, a transparência salarial e frentes eficientes de
acolhimento de denúncias de assédio são pontos relevantes para que as mulheres
se sintam seguras e possam batalhar com base no mérito, e não no coleguismo.
As entrevistadas desta reportagem também consideram
que o mercado de consumidores de produtos financeiros tem um papel importante
em colocar mais mulheres em melhores posições. Questionada sobre o espaço que
suas ideias têm no mercado financeiro atual, Mariella Gontijo é enfática ao
dizer que "são os consumidores que mudam o mercado", e não aqueles
que já estão nas cadeiras da gestão. "Não dá para menosprezar a economia
feminina. As mulheres têm prestigiado outras mulheres, e a sociedade também. Se
cada consumidora prestigia um filme da Barbie, uma Taylor Swift, uma Beyoncé,
isso é um empoderamento coletivo muito forte, e é daí que a gente enxerga que
tem uma oportunidade", diz Mariella Gontijo. Esse apreço das mulheres pelo
trabalho de outras mulheres, segundo Mariella, também ajuda. Ela lembra de uma
cliente — uma senhora idosa com patrimônio relevante, obtido pela venda de uma
empresa que fundou — que relatou não se sentir confortável para falar sobre seu
próprio dinheiro com os profissionais que a assessoravam.
Francine Mendes, do Elas Que Lucrem, também
enxergou essa brecha no mercado e lançou produtos financeiros voltados para as
mulheres. Esses produtos foram pensados com base em suas próprias experiências
de vida, em situações em que sentiu falta de suporte financeiro — sobretudo
quando criava os dois filhos sozinha.
Francine Mendes, do Elas Que Lucrem, também
percebeu essa brecha e lançou produtos financeiros específicos para as
mulheres, desenvolvidos com base em suas próprias experiências de vida —
especialmente em situações em que sentiu falta de suporte financeiro, sobretudo
quando criava os dois filhos sozinha. "Na época que eu ficava sozinha com
as crianças, eu tinha medo de morrer todos os dias. O meu medo era sair de casa
e não voltar no final do dia. Isso fez com que eu criasse um seguro para isso,
porque eu quero que nenhuma mulher nesse mundo passe por isso", diz. "Se
eu pudesse tirar essa dor a sociedade inteira eu tiraria, porque foi uma dor
muito forte e eu a atravessei."
Para as duas empresárias, o espaço para criar
produtos e trabalhos para as mulheres no mercado financeiro só está no começo e
deve crescer cada vez mais nos próximos anos, puxado pelo próprio interesse
feminino em suas finanças pessoais e investimentos. "Quanto mais mulheres
vierem para o mercado financeiro, quanto mais mulheres falarem sobre dinheiro,
mais vai despertar essa curiosidade nas outras mulheres, nas outras meninas que
estão vindo por aí, para que elas consigam mesmo entrar nesse ramo e fazer
acontecer", conclui Francine. "Com mais mulheres no mercado
financeiro terão mais produtos financeiros voltados para as mulheres, com taxas
diferenciadas ou com metodologias diferenciadas, porque só quem está vivendo no
dia a dia tem essa dor."
Fonte: g1
Nenhum comentário:
Postar um comentário