Poderá a tecnologia tornar a América
Latina mais periférica?
Na atual divisão internacional do trabalho, dentro da
qual países do centro capitalista estão desenvolvendo, por meio de
financiamento público e privado, pesquisas e tecnologias como as de
inteligência artificial, Big Data e computação em nuvem, e com China e Estados
Unidos assumindo relevância industrial e tecnológica nas cadeias globais de
valor, as economias periféricas sofrem de maneira desigual os efeitos da
integração econômica.
Ainda que países subdesenvolvidos, exportadores de
commodities e de bens de baixo valor agregado, insiram-se de forma passiva na
divisão internacional do trabalho, países e regiões desenvolvidas, centros
dinâmicos da economia, estão experimentando processo de “periferização do
mundo” (Cantierri, 2020), com aumento expressivo das desigualdades sociais e
ausência do desenvolvimento econômico.
·
Regiões periféricas e
distintas infraestruturas digitais: a hipótese do subimperialismo
Com distintas capacidades em infraestrutura digital e
científica-tecnológica, a partir de experiências bem-sucedidas de políticas
públicas de investimento em setores-chave, abandonadas pelas políticas
neoliberais, países subdesenvolvidos diferenciam-se entre si com relação à
integração na economia capitalista mundial.
Rui Mauro Marini, um dos principais expoentes da teoria
marxista da dependência (TMD), analisou os conceitos de imperialismo e
subimperialismo, na relação entre economias no capitalismo mundial. Além de
identificar o imperialismo, tal como o fez Lenin, como um processo de expansão
do capital financeiro e monopolista, no século XX, ao redor do mundo associado
às potências ocidentais, o autor criou o conceito de subimperialismo, que
visava explicar a expansão da acumulação de capital na periferia do sistema
capitalista, como foi o caso do Brasil, na América Latina. Segundo este
conceito, o Brasil buscou uma estratégia geopolítica de liderança econômica na
região, através uma “cooperação antagônica” com os Estados Unidos, dentro
portanto de uma integração geopolítica, tecnológica e financeira com o império
norte-americano e seus respectivos conglomerados empresariais. Isso se fez
possível com investimento nacional em setores estratégicos, e o que fez
“colaborando ativamente com a expansão imperialista, assumindo nela país e
posição-chave” (p.127).
Na atualidade, algumas plataformas, como IFood adquirem
posição dominante em seus respectivos campos de atuação, contando com grande
mercado consumidor e estratégias empresarial e tecnológica próprias, com
relativa autonomia (Rikap, Slipak, 2020) na América Latina, com cerca de 39.2%
de participação de mercado, 250 mil trabalhadores e presente em 1700 municípios
(Seto). O surgimento de plataformas regionais na América Latina, com alto valor
de mercado (Statista, 2024)i, se dá a partir da
integração econômica entre investimentos e tecnologia do centro para a
periferia, com poder de dominação das chamadas Big Techs no setor de
tecnologia.
A relação dialética e combinada entre um polo e outro,
centro e periferia, na integração econômica, através de dados, de plataformas e
de fluxos de capital, pode estar criando centros de subimperialismo poderosos
em várias partes do mundo, como Índia e Brasil (Seto, 2019; Rikap, 2020),
países que contam com data centers e suas próprias plataformas digitais. No
entanto, pode-se questionar se o enfraquecimento do Estado pelo neoliberalismo
não estaria minando a estratégia implementação do subimperialismo de dados,
defendida por Seto, em vista da monopolização científica-tecnológica, pelos
Estados Unidos e pela China, com escasso ou nenhum espaço de participação aos
países da periferia, tendência esta defendida pelo próprio Marini.
Os oligopólios de tecnologia estão passando
transformações no processo de trabalho – indo desde a precarização e
automatização do trabalho intelectual, na área de ciência de dados e
programação, até a formalização de seus próprios programas de formação e
treinamento de trabalhadores, para reduzir a escassez de trabalhadores
especializados.
De acordo com o relatório de inteligência artificial de
2024ii, os Estados Unidos
lideraram a produção de patentes e de modelos de linguagem de aprendizagem de
máquina, com 61 modelos por este registrados e 15 modelos pela China, e o
restante dos registros na Europa e partes da Ásia, a maioria delas
desenvolvidas no setor industrial ou em cooperação com universidades. De acordo
com o plano de desenvolvimento para IA, até 2030 a China os investimentos
governamentais atingirão mais de 140 bilhões enquanto os privados superarão 10
trilhões de yuan. Em 2017, Google e Microsoft declararam sua estratégia de
desenvolvimento e liderança em IA.
A precarização do trabalho está associada não apenas às
transformações tecnológicas, com automatização, digitalização da economia, mas
tem, entre suas principais causas, a crise econômica em que se encontra o
capitalismo mundial, na sua fase de desaceleração econômica, retomando a ideia
de Michael Roberts (2009), segundo à qual o capitalismo possui ciclos longos de
desenvolvimento e acumulação e ciclos de recessão econômica. Dentre os trabalhadores
mediados por tecnologia digital, como trabalhadores por aplicativos,
entregadores de comida e de transporte, os chamados “trabalhadores invisíveis”,
responsáveis pelo treinamento de sistemas de inteligência artificial, os quais
sem nenhuma garantia trabalhista e baixos salários, consistem numa categoria de
trabalhadores precários, os quais, assim como aqueles, caracterizam-se pela
ausência de regulação e leis trabalhistas.
A digitalização e plataformização do trabalho criou uma
divisão do trabalho entre trabalhadores intelectuais – treinamento de sistemas
de inteligência artificial, em sites como Amazon American Turkiii – e
trabalhadores de aplicativos, ambos caracterizados por processos de
precarização e desvalorização, – baixos salários, ausência de direitos
trabalhistas, automação e controle dos processos de trabalho.
A precarização estende-se às categorias de
trabalhadores intelectuais especializados também na área de cientistas de dados
e programadores de algoritmos, em vista do controle pela automatização
referente aos processos de trabalho. Essas novas funções e categorias de
trabalhadores, surgidas pelo capitalismo de dados e de plataforma, são
caracterizadas pelo monopólio de empresas estrangeiras, e suas tecnologias.
·
Colonialismo de dados e
dependência
A teoria marxista da dependência surgiu para estudar a
especificidade das economias subdesenvolvidas, especialmente as sociedades
latino-americanas, que conseguiram desenvolver suas forças produtivas e
industrializa-se. Mais do que entender o binômio entre países desenvolvidos e
subdesenvolvidos, como estágios históricos, a teoria da dependência entende o processo
dialético e interdependente entre economia desenvolvida e periférica, dentro
das relações de produção globais. Mesmo partir de um desenvolvimento desigual e
combinado, os países periféricos latino-americanas conseguiram modernizar suas
economias, importando tecnologias e desenvolvendo setores produtivos
importantes, sem, no entanto, romper com a dependência do capital estrangeiro,
tecnológica e política com relação aos países do norte global.
Ao contrário do que propõe a teoria do colonialismo de
dados, proposta por Couldry e Mejias, 2019, segundo a qual a apropriação e a
exploração de dados caracterizam uma servidão moderna entre países, a teoria
marxista da dependência compreende a condição do subdesenvolvimento como
reflexo da integração econômica entre países. Assim, a superexploração do
trabalho e a intensificação da jornada de trabalho, a deterioração dos meios de
troca – pela exportação de produtos primários e importação de bens
industrializados e bens de capital, desajustando a balança de pagamentos – e o
papel da tecnologia, à qual libera força de trabalho, num mercado abundante em
força de trabalho, ao invés da realização do aumento de produtividade, através
da redução do valor unitário do produto, são consequências determinadas, à
economia dependente, pela relação centro-periferia.
Desse modo, diferente do conceito de colonialismo de
dados, a teoria marxista da dependência defende que não há transformação
qualitativa nas relações de produção entre centro-periferia, mas um processo de
aprofundamento da dependência, nos marcos de uma relação econômica desigual e
interdependente; de um lado, desenvolveu-se uma robusta indústria tecnológica
no Leste asiático e nos Estados Unidos, de outro lado, reforça-se, nas regiões
periféricas como a América Latina, a reprimarização da economia, com exportação
de materiais essenciais para esta indústria tecnológica e a dominação de
plataformas e tecnologias estrangeiras.
Além da precarização do trabalho, que caracteriza essa
reconfiguração produtiva, a questão relativa à apropriação de dados por essas
empresas torna-se uma questão importante à soberania nacional, especialmente no
que se refere à dados estatísticos oficiais por parte do Estado brasileiro
(d´Alva e Paraná, 2024); dados que podem ser apropriados por empresas privadas,
reforçando a condição de subordinação econômica e tecnológica.
·
Precarização do trabalho e
algumas conclusões sobre a divisão internacional do trabalho na periferia do
sistema capitalista
Ainda que trabalhadores na área de análise de dados
seja essencial, suas atividades estão sendo automatizadas e substituídas – o
que não quer dizer que não haverá mais trabalhadores, mas sim que a redução de
escassez de trabalho implicará em mais perda salarial e controle sobre os
processos de trabalho pelas empresas, – através da materialização do
conhecimento dos trabalhadores em algoritmos (Steinhoff, 2019) e pela
terceirização e informalidade. A atividade de treinamento de sistemas de
inteligência artificial ainda é bastante dependente de trabalho humano,
atividade essa realizada no mundo todo, sobretudo em economias abundantes em
mão de obra. O processo de fragmentação e automação do controle do trabalho
intelectual e de análise de dados, em muitos componentes automatizáveis e não,
através de aprendizagem de máquina torna possível a terceirização do trabalho
via plataformas digitais, acentuando a demanda e a terceirização dos chamados
trabalhadores invisíveis e explorando o trabalho de seus prestadores de
serviços, numa relação de trabalho na qual não há nem mesmo pagamento em
dinheiro, pois a remuneração da prestação de serviço pelos trabalhadores é
feita através de feito “gifts”, como na plataforma da Amazon, gerando uma
subclasse de precarizados (Moreschi, Pereira, Cozman, 2020, p. 61).
Assim, é preciso ainda refletir sobre o papel da
revolução científica-tecnológica nessa quadra histórica e suas consequências e
implicações às economias periféricas, ao desenvolvimento econômico, à
superexploração do trabalho e à dependência financeira e tecnológica no século
XXI. Nesse cenário, quais seriam suas consequências? A reprimarização da
economia, com uma acentuada deterioração dos termos e troca e, ao mesmo tempo,
a intensificação da superexploração do trabalho, que se dá por segmentos de
trabalho digitais, caracterizados pela precariedade e pela informalidade.
Assim, a dependência tecnológica legitima e aprofunda, na reconfiguração
produtiva, a condição de subdesenvolvimento, que assume novos contornos, como
visto pela exploração do trabalho de plataforma e pela apropriação dos fluxos
de dados dos países situados no Sul global.
A teoria marxista da dependência, ao discutir e
unificar numa abordagem teórica conceitos como imperialismo, subimperialismo e
sistema-mundo, revelou grande precisão histórica. A teoria marxista da
dependência diversificou suas temáticas, incorporando, em seu modelo teórico, a
teoria do sistema-mundo, os ciclos de Kondratiev, e as transformações trazidas
pela globalização neoliberal e pela multipolaridade nas relações
internacionais, com seus novos centros de poder e diplomacia entre os países
subdesenvolvidos. Assim, ela desdobrou-se para a questão geopolítica
interpretando as polarizações mundiais, os desenhos da integração regional, a
articulação do Sul global (Martins). Ela torna-se importante instrumental
teórico-analítico para a compreensão do capitalismo na sua histórica atual, de
datificação e de plataformização da economia, no qual se mantêm as relações de
produção entre países. É preciso promover as forças políticas e diplomáticas
entre o Sul global, especificamente os Brics, não apenas nas áreas de saúde,
saneamento, emprego, mas, tão urgente quanto isso, nas áreas de cooperação
tecnológica e infraestrutura digital, subordinadas à soberania digital.
¨ Great
Firewall chinês: lições para o Brasil. por Isis Paris Maia
No último dia 24 de fevereiro de 2025, durante uma aula
na Universidade de São Paulo, o ministro Alexandre de Moraes alertou mais uma
vez sobre os riscos representados pelas Big Techs estadunidenses.
Segundo ele, essas empresas, movidas por interesses econômicos e políticos, não
respeitam a soberania dos países e colocam em risco até mesmo a estabilidade
democrática. Cabe lembrar a eleição de Donald Trump em 2016, quando a Cambridge
Analytica,
empresa responsável por sua campanha digital, utilizou um aplicativo para
coletar dados privados de 87 milhões de usuários sem seu consentimento,
direcionando a propaganda política para o Republicano. No caso do Brasil, está
claro que o uso intensivo de fake news e robôs
virtuais foram determinantes para a ascensão do bolsonarismo.
Além de um risco à democracia, as FAANGs (Facebook,
Amazon, Apple, Netflix e Google) tem desrespeitado a soberania nacional, como
no caso em que o X (antigo Twitter) teve de ser retirado do ar no Brasil por
determinação do Supremo Tribunal Federal, após se recusar a cumprir a
legislação nacional e indicar um representante legal no país. Mas é no campo
econômico que se institui, como destacou Márcio Pochmann em seu livro Declínio
da vida em sociedade e o Brasil do início do século XXI, a assimetria
internacional, uma vez que os países periféricos se tornam importadores de bens
e serviços digitais em troca do fornecimento de dados brutos. O poder e o lucro
das Big Techs ocidentais é tamanho que sete das dez
maiores empresas listadas na Bolsa de Valores dos EUA são Big
Techs.
Olhando em perspectiva histórica, podemos ter outro
entendimento sobre o que, na década de 1990, o Ocidente chamava de Great
Firewall chinês.
Segundo os críticos, o modelo chinês de gestão da Internet seria baseado em
censura e controle, bloqueando sites estrangeiros (como Google, Facebook,
Twitter e YouTube) e restringindo a liberdade de expressão. Com efeito, segundo
eles, o isolamento da Internet chinesa ainda seria prejudicial ao seu
desenvolvimento de tecnologias digitais.
A realidade, contudo, tem sido implacável com essa
narrativa: o país asiático está construindo um ecossistema digital complexo. Esse
ecossistema é composto, em primeiro lugar, por uma infraestrutura digital
avançada, que inclui redes de banda larga (fibra óptica, 5G e satélites), data
centers para suportar nuvens, armazenamento e processamento de dados. Em
segundo lugar, soma-se a isso um conjunto de empresas de plataformas que atuam
em todos os setores, desde as gigantes BATX (Baidu, Alibaba, Tencent e Xiaomi)
até empresas menores que operam em diversas fronteiras tecnológicas, como e-commerce, fintechs e serviços
que vão do entretenimento à indústria. Em terceiro lugar, destacam-se
empresas-chave na produção de aparelhos e insumos para o setor digital, como
fabricantes de smartphones e computadores (Huawei, Xiaomi, Oppo, Vivo, Lenovo),
drones (DJI), componentes eletrônicos e semicondutores (SMIC, BOE Technology) e
baterias (CATL e BYD). Em resumo, a China adentrou a fronteira tecnológica com
empresas e inovações nacionais, mobilizando a economia de dados para a
digitalização da sociedade de acordo com seus objetivos estratégicos.
Além de desenvolver um setor digital nacional, essa
política regulatória soberana permitiu evitar manipulação de opiniões, impedir
a propagação de terrorismo, pornografia e discursos de ódio. Entre as políticas
regulatórias, destacam-se a Lei de Cibersegurança da China de 2017, a Lei de
Proteção de Dados Pessoais (2021) e o Regulamento de Recomendação Algorítmica
(2022). Assim, o país conseguiu ordenar minimamente as mídias sociais, evitando
a erosão do espaço público digital por conta da atuação de plataformas
digitais, como tem ocorrido no Ocidente.
Dessa forma, o que era visto como medida reativa se
tratava de estratégia nacional. Atuando como uma espécie de protecionismo e
reserva de mercado que permitiu à China construir seu ecossistema e romper a
dependência de tecnologias estrangeiras. Tais tecnologias têm servido à
governança digital e à elevação do planejamento e de suas políticas públicas a
novos patamares na construção de seu projeto de socialismo.
Mais do que isso, agora, progressivamente, a China tem
passado a competir nessa fronteira de inovação. O desenvolvimento no setor
digital e seu ecossistema tecnológico avançam em conjunto com a Belt
and Road,
uma espécie de projeto de globalização liderado pela China, como destacou Diego
Pautasso no livro A China e a Nova Rota da Seda. Nesse contexto, a
chamada Rota da Seda Digital evidencia a estratégia de Pequim em promover um
processo de integração e desenvolvimento que inclua sua expertise e tecnologias
digitais, colocando-se em crescente e direta concorrência com o oligopólio
ocidental.
Se extrair lições do sistema de inovação da China é
imperativo, fomentar parcerias e cooperação com o país asiático pode ser chave.
Afinal, enfrentamos a urgente necessidade de retomar o desenvolvimento e
impulsionar a inovação em tecnologias digitais. Trata-se de desenvolver
capacidades nacionais a fim de garantir a soberania digital e aproveitar o
potencial da economia de dados em benefício do desenvolvimento brasileiro.
Nessa direção, cabe sublinhar o Plano Brasileiro de
Inteligência Artificial recém-lançado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e
Inovação, cujos investimentos previstos são mais de 23 bilhões de reais até
2028. Estruturado em eixos como infraestrutura e desenvolvimento de IA, com
dados nacionais e linguagem adequada às nossas realidades, o Plano prevê ainda
a atualização do supercomputador Santos Dummont do
Laboratório Nacional de Computação Científica, de modo a torná-lo um dos cinco
computadores com maior capacidade de processamento do mundo nesse período.
O fato é que precisamos retomar o desenvolvimento e
superar a posição passiva em que nos encontramos diante da Era Digital. Um
projeto nacional deve promover a inserção do Brasil nesse cenário tecnológico,
não apenas como mero exportador de dados, mas como protagonista na exploração
de suas múltiplas fronteiras de inovação, em sintonia com a reindustrialização.
Ademais, esse é um imperativo democrático determinante para a organização da
esfera pública. Em suma, o avanço das tecnologias digitais hoje desempenha um
papel semelhante ao da siderurgia para o Brasil nos anos 1940: um portal
essencial para adentrarmos um novo momento histórico.
Fonte: Por Vinicius Aleixo Gerbasi, em Outras Palavras
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