Momento de
liberdade sexual do Carnaval brasileiro vem de uma sociedade rigidamente
repressora, diz pesquisador
No Carnaval de 1964, as
rádios e as ruas brasileiras começaram a tocar sem parar a
marchinha Cabeleira do Zezé, de João Roberto Kelly.
- Será que ele é,
será que ele é?
A resposta para a
pergunta era (e ainda é) entoada em uníssono por foliões Brasil afora:
- Bicha!
Dependendo de quem
gritava, porém, a resposta recebia contornos diferentes, como registrou o
professor e historiador americano James Green em seu livro Além do Carnaval:
a homossexualidade masculina no Brasil do século XX (Editora Unesp).
Embora os
foliões heterossexuais entoassem a
palavra com uma conotação pejorativa, os frequentadores dos bailes gays da
época, especialmente no Rio de Janeiro, gritavam o mesmo, mas como uma
afirmação de sua identidade sexual.
Durante muito
tempo, no Brasil, aqueles quatro dias de folia de Carnaval eram a única
oportunidade de homossexuais e pessoas trans (mesmo que, naquela época, não se
afirmassem dessa forma) demonstrar publicamente algum tipo de transgressão aos
padrões da sociedade.
Não era só nos
bailes fechados com concursos de fantasia — que tinham cobertura garantida nas
principais revistas do país —, mas também em cortejos de homens vestidos de
Carmen Miranda ou em filmes eróticos gays produzidos por estrangeiros que
voltavam do país impressionados com a nossa "liberdade" tropical.
Essas imagens, diz
Green em entrevista à BBC News Brasil, reforçavam "estereótipos sobre o
Brasil, como se fosse um país super aberto, liberal, sem considerar o fato que
é uma cultura muito conservadora em vários sentidos, apesar dessa liberdade que
tem durante os dias do Carnaval".
O Carnaval vendeu,
então, dentro e fora do país, a imagem de uma convivência pacífica da sociedade
brasileira com a homossexualidade e a bissexualidade.
Para Green, que é
professor de história do Brasil na Universidade Brown, uma das mais respeitadas
dos Estados Unidos, isso mostra a complexidade religiosa-festiva que é parte da
sociedade brasileira.
"De um lado,
há essa sociedade católica, evangélica, conservadora, com uma valorização
enorme da família nuclear, e, do outro lado, esses momentos de escape, de
liberdade, em que as pessoas aproveitam para se sentir mais relaxadas numa
sociedade rigidamente hierarquizada e repressora", defende o
brasilianista, também fundador no país do movimento Somos: Grupo de Afirmação
Homossexual, em 1978 e autor de livros sobre a ditadura militar no Brasil.
Além da ironia de
um país conservador abraçar a festa numa dimensão nacional, a permissividade
temporária também escondia uma realidade muito mais dura para pessoas gays e,
especialmente, negras durante o restante do ano, defende o pesquisador.
"Esse momento
de liberdade é muito ligado ao fato de que o Brasil era um Estado baseado na
escravidão", conta Green.
"As pessoas
escravizadas aproveitavam as festas religiosas católicas para poder ter uma
folga, não trabalhar e ter uma certa afirmação da sua cultura, de sua liberdade
relativa", continua.
"Isso é um
elemento apropriado pelos homossexuais (especialmente homens que se
relacionavam com outros homens) também desde o século 19."
Para o professor,
que viveu dezenas de carnavais brasileiros, em 2025 reina uma atitude de mais
tolerância aos homossexuais na sociedade e uma ampliação de espaço no próprio
Carnaval, da Sapucaí a Olinda.
Mas, como escreveu
no próprio livro, "a reação das autoridades e do público tem oscilado
entre a aceitação e a repressão, entre a curiosidade e a repulsa".
Não é raro
encontrar nas redes sociais posts, na maioria em tom de humor, sobre haver
muitos LGBTQIA+ no Carnaval — e de que não haveria mais espaço para os
heterossexuais.
"O movimento criou
uma noção de visibilidade e ocupação dos espaços, mas que incomoda as pessoas
que acham que quem tem direito a ocupar esses espaços são elas", diz.
James Green volta
mais uma vez ao Brasil neste Carnaval, agora para desfilar pela escola de samba
Terceiro Milênio, que traz ao carnaval de São Paulo o enredo "Muito além
do Arco-íris", sobre o movimento pelos direitos LGBTQIA+ no Brasil.
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Leia a seguir os principais trechos da entrevista à BBC News Brasil:
·
No
início do século 20, segundo sua pesquisa, o Carnaval era um momento em que as
pessoas LGBTQIA+, principalmente homens que se relacionavam com outros homens,
podiam ser quem elas eram. Ao mesmo tempo, isso disfarçava um período muito
mais complexo e violento para essa comunidade durante o resto do ano, fora do
período carnavalesco. No Brasil de 2025, esse cenário complexo se mantém?
James Green -
Eu acho que reina hoje entre a maioria da população uma atitude de tolerância,
aceitação e até identificação e abraços a pessoas LGBTQIA+. Um exemplo é a
aceitação da parada LGBTQIA+ em São Paulo e das mais de 300 paradas em todo o
país. Porém, ao mesmo tempo, ainda existe uma violência, uma agressividade.
Isso foi incentivado nos últimos oito anos pela extrema-direita, que mobilizou
parte da sua base no ódio contra as pessoas LGBTQIA+.
Então, de um lado,
há muito mais aceitação, não somente durante o Carnaval, mas ao longo do ano;
ao mesmo tempo, existe essa violência. Infelizmente, isso é um fenômeno
internacional, como foi visto agora, com o presidente [dos EUA] Donald Trump,
que acabou decretar que as pessoas trans são proibidas de existir, não podem
ter identidade, não tem direito à existência. Isso está acontecendo nos Estados
Unidos e no Brasil há pessoas que gostariam de fazer o mesmo.
Então, eu acho que
nada está garantido. Mesmo com essa tal tolerância que eu estou notando, há
grande possibilidade de um recuo ou de perder os avanços que houve nos últimos
40, 50 anos.
·
Mas
o Carnaval, especificamente, segue sendo o momento de pessoas LGBTQIA+ transbordarem
e colocarem para fora aquilo que se é?
Green - Sim.
Eu conheço vários homens que se autodeclaram heterossexuais, mas durante o
carnaval elas beijam outros homens; ou pessoas que se declaram bissexuais, mas
que estão transgredindo muito o padrão de vida que levam durante o resto dos
dias do ano. Então, acho que existe um espaço para as pessoas se liberarem,
ficarem mais à vontade, com novas maneiras de pensar no seu gênero, sua
sexualidade durante o Carnaval, porque, teoricamente, tudo é permitido.
·
Essa
ideia de que tudo é permitido, de transgressão e libertinagem no Carnaval é
algo brasileiro ou a gente importou de outras partes do mundo?
Green - É algo
que existe em qualquer lugar que festeja o Carnaval, como o Caribe, onde a
influência afrodescendente era muito forte e que, combinado com a cultura
hispânica, cria um tipo de Carnaval diferente do Brasil, mas com essa
libertinagem também, essa abertura. Também em Nova Orleans [nos EUA], de outra
maneira, que tem a tradição de Carnaval francesa, mas também com essa
possibilidade de uma libertação durante esses dias.
Então, eu acho que
não é somente o Brasil. Mas, no Brasil, isso vai reforçando estereótipos sobre
o país, como se fosse um país super aberto, liberal, sem considerar o fato que
é uma cultura muito conservadora em vários sentidos, apesar dessa liberdade que
tem durante os dias do Carnaval.
·
No
seu livro Além do Carnaval, o senhor escreve que o Brasil durante muito
tempo passou essa imagem para o exterior de uma convivência pacífica com os
homossexuais, como se fosse quase um paraíso para essa população. O Brasil
ainda passa essa imagem?
Green - Passa.
E as pessoas que vão passar carnaval no Rio ou outro lugar, se não tiverem um
inconveniente, um celular roubado, um assalto ou uma coisa desagradável, voltam
promovendo o Carnaval como a maior festa do mundo. E, realmente, o Carnaval do
Rio é uma das melhores festas do mundo, embora tenha carnavais muito especiais
também em Salvador, Olinda, São Paulo.
·
Como
o senhor mencionou, o Brasil, eleitoralmente, tem se mostrado um país muito
conservador. Ao mesmo tempo, boa parte da população participa do Carnaval,
inclusive muitas pessoas cristãs. O que explica essa tolerância nesses quatro
dias? Ela é forçada?
Green - Eu não
sei dizer, porque não fiz uma pesquisa intensa sobre a opinião de pessoas que
estão olhando os blocos. Eu não acho que os evangélicos estão brincando numa
boa durante o Carnaval. Acho que eles estão em retiros, fazendo outras coisas e
rezando para não serem tentados a um pecado. Acho que esse setor não está
tolerante. Quem é tolerante é a pessoa evangélica que tem um filho ou filha
gay, trans e lésbica. E a família tem que resolver: ou expulsar essa pessoa da
casa, ou aceitar. E muitas vezes aceita.
Mas acho que esse
momento de liberdade é muito ligado ao fato de que o Brasil era um Estado
baseado na escravidão. As pessoas escravizadas aproveitavam as festas
religiosas católicas para poder ter uma folga, não trabalhar e ter uma certa
afirmação da sua cultura, de sua liberdade relativa dentro desse momento,
enquanto no resto do ano trabalhava duro, fosse na cidade ou no campo. Então, o
Carnaval, nesse sentido, foi um alívio para as pessoas mais pobres. O carnaval
do Rio, desde o século 19, era esse momento de fazer coisas que não se podia
fazer durante o resto do ano. Então, acho que isso é um elemento apropriado
pelos homossexuais também desde o século 19, se não antes.
·
Então,
talvez essa nossa libertinagem, entre aspas, no Carnaval vem desse país tão
repressivo para certas populações?
Green - Exatamente.
De um lado, há essa sociedade católica conservadora - hoje em dia, católica,
evangélica, conservadora- com uma valorização enorme da família nuclear, tudo
isso, e do outro lado, esses momentos de escape, de liberdade, em que as
pessoas aproveitam para se sentir mais relaxadas numa sociedade rigidamente
hierarquizada e repressora.
Mas isso também é
complicado. Por exemplo, a maneira que a música de Carnaval valoriza a mulata,
a mulher de várias origens raciais, reflete a mulher escravizada como um objeto
de sexualidade, violada durante o período de escravidão.
A imagem desse tipo
de mulher cria um ícone nacional que, na verdade, no fundo, no fundo,
representa uma série de desejos perversos da época do carnaval, da escravidão.
Então, o Carnaval é muito complexo, não é uma coisa única. Há várias camadas de
sentimentos e sentidos que estão embutidas na festa
·
Antes
da nossa conversa, fiz uma busca nas redes sociais sobre o que as pessoas
estavam falando sobre carnavais e LGBTQIA+ e encontrei vários comentários,
principalmente de mulheres e muitos em tom de humor, reclamando que 'só tem gay
no carnaval'. Como você enxerga esse incômodo, mesmo disfarçado de humor?
Green -É a
noção da heteronormatividade, onde tudo que é considerado normal é hétero.
Então, quem não é e foge dese padrão, é marginalizado.
Acho que, de um
lado, o movimento criou uma noção de visibilidade e ocupação dos espaços, mas
que incomoda as pessoas que acham que quem tem direito a ocupar esses espaços
são elas. Então isso é parte do rechaço que está sendo expressado por essas
pessoas.
Elas querem
reafirmar o seu machismo e domínio do espaço. Nós, que não necessariamente nos
encaixamos nessa realidade, somos incômodos, mesmo durante as brincadeiras de
carnaval.
·
Na
cobertura do Carnaval gay do passado, a gente vê as fotos na imprensa da época
basicamente de homens vestidos de mulher e dos bailes, principalmente para
homens gays. Onde fica o papel das mulheres lésbicas, de homens trans? Não
havia uma cobertura?
Green - Nos
anos 1950, começou a ter bailes de carnaval dirigido ao público LGBTQIA+,
basicamente homens gays. A Manchete, que era a revista mais popular, sempre
mandava os fotógrafos para tirar fotos das pessoas com fantasias, a maioria
sendo homens com fantasias de mulher. E você criava no imaginário nacional a
ideia de que os bailes eram só de travestis, de homens vestidos de mulheres. E
não era a realidade.
Quando eu fiz a
pesquisa para o meu livro, eu tive acesso aos arquivos da Manchete, com fotos
dentro dos bailes no Teatro São Luiz, na Praça Tiradentes. Pelas imagens, 95%
das pessoas dentro do teatro estavam vestidas com roupa masculina, não com
fantasia de mulher. Porém, a imagem que se criava era de que Carnaval era só de
travestis.
Mas para essas
pessoas - homens querem se vestiam de mulher, que hoje em dia talvez a gente
chamasse de trans, mas não tinha necessariamente essa identidade -Carnaval é
fundamental.
É um momento onde
as pessoas podem se montar, mesmo pessoas que não estão com uma fantasia ou que
tinham uma noção de querer manter essa apresentação pública ao longo do ano,
mas que pelo menos queriam brincar com essas mudanças de apresentações de
gênero durante o Carnaval.
Isso existe muito,
tanto para homens querendo vestir-se de mulher, para as trans que se sentem
muito mais à vontade nesse momento sem a repressão, porque tudo é permitido
entre aspas, e as lésbicas que também querem brincar disso.
Como as mulheres
lésbicas eram muito mais marginalizadas, sempre com menos acesso ao espaço
público, o Carnaval é um momento privilegiado para elas organizarem blocos e
brincar com sua companheira, suas amigas.
Mas a visibilidade
gay é muito maior, em parte porque os homens sempre ocuparam o espaço público.
A sua paquera, sua maneira de encontrar com outros, também acontecia no espaço
público, nas ruas da cidade. Então, eles são muito mais acostumados a ocupar
esse espaço, enquanto as mulheres, por todas as restrições sociais, não têm
necessariamente essa abertura de fazê-lo.
·
O
fato de a visibilidade na mídia das pessoas LGBTQIA+ na época estar muito
relacionado ao Carnaval de certa forma atrelou esse grupo apenas à festa e
"libertinagem", atrapalhando o movimento de ser visto como algo
"sério" na busca de direitos?
Green - Acho
que hoje em dia, como estamos em tudo quanto o lugar, cada vez mais visível, o
Carnaval é um momento muito especial para essa celebração, porque, na verdade,
independentemente da sua capacidade de ser assumido para a sua família, todos
os dias você enfrenta agressividade, comentários insensíveis.
Então, o Carnaval
ou a parada são momentos de afirmação, de dizer que "estamos aqui",
pelo menos nesse espaço, com a liberdade que merecemos todos os dias do ano.
Então, é uma afirmação muito forte ainda para as pessoas, mesmo as pessoas como
eu, que estão assumidas para todo mundo há muitos anos. É um espaço especial
onde me sinto muito mais livre, então acho que isso é importante.
Quando surge o
movimento, eu era mais da linha política, aquela que, para fazer uma coisa, tem
que ter uma faixa, com reivindicações claras, palavras de ordem. E eu percebi
que isso não é a maneira que o brasileiro e a brasileira entendem a sua
realidade.
Nossa realidade é
afirmar nossa alegria contra essa violência, essa agressividade, que
enfrentamos todos os dias. [Festejar] é uma maneira de lidar com isso
Então, nossas
paradas, que têm um caráter reivindicativo, também é uma afirmação ao nosso
direito de existir, que é uma reivindicação elementar para qualquer pessoa.
Essa afirmação é super politizada. Claro, não é contra tal lei ou a favor de
tal candidato, mas é para transformar a sociedade, obrigar a sociedade se
transformar com nossa presença, nossa afirmação.
Fonte: BBC News
Brasil
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