A geopolítica de Meloni começa a se
desintegrar
O ano começou com um estrondo: políticas de
imigração racistas, agitação econômica, ataques do governo ao judiciário e
repressão a ativistas. Mas esta não é os EUA de Donald Trump — é a Itália de
Giorgia Meloni.
Não muito mais do que dois anos desde que sua coalizão
de extrema direita chegou ao poder, o governo de Meloni é o mais duradouro da
Itália em uma década. Para o horror da esquerda, ela inicialmente parecia ser a
mulher forte e eficaz que a direita reacionária esperava. A economia parecia
estável, apoiada pelos gastos pós-pandemia da União Europeia (UE), e ela
conseguiu limpar a imagem de seu regime de fronteira xenófobo, vendendo-o como
uma política de “senso comum” para um establishment da UE desesperado por
estabilidade.
A chave para sua estratégia tem sido o Plano Mattei, uma manobra
geopolítica para garantir novas fontes de energia em países africanos,
enriquecer o capital italiano e fechar as rotas de migração. Particularmente no
contexto de anos de flutuações no preço da energia devido à guerra na Ucrânia,
o plano pareceu preencher todos os requisitos. Enquanto governos anteriores
liderados por direitistas às vezes mancharam a aparência da Itália em um
cenário global (por meio da intimidação grosseira de Matteo Salvini, por
exemplo), Meloni se posicionou como uma parceira mais razoável para o
establishment, consolidando laços com os conservadores da Europa enquanto
forjava laços diplomáticos com líderes de muitos países africanos.
O plano evoca o nome de Enrico Mattei — o executivo
anticolonial do petróleo que fechou acordos com países recém-independentes como
a Argélia na década de 1960, antes de ser assassinado pela
Máfia e
pelo cartel do petróleo anglo-estadunidense. Mas o plano de Meloni tem mais
semelhança com os acordos obscuros de figuras como Bettino Craxi e Silvio Berlusconi, cujas carreiras
são lembradas mais por escândalos do que por estadismo.
Onde Mattei buscou parcerias enraizadas na
solidariedade pós-colonial, a abordagem de Meloni é construída em pactos de
bastidores com ditadores sangrentos para controlar a migração em nome da
Europa. Depois que pogroms racistas na
Tunísia forçaram
milhares de negros a fugir do país norte-africano, a Itália ajudou a negociar
um acordo bilionário do Fundo Monetário Internacional em troca de um
controle violento de fronteiras no mar. A visita de Ursula von der Leyen à ilha
de Lampedusa, no sul da Itália, no ano passado demonstrou a aprovação tácita do
bloco, enquanto sessões de fotos sorridentes com Rishi Sunak e o
subsequente premiê britânico Keir Starmer pareciam
mostrar que o amor pelo controle de fronteiras pode superar divisões políticas.
Agora, essa estratégia está se desintegrando, e o
governo de Meloni se recupera de uma série de escândalos interligados — de
contribuir com criminosos de guerra a espionar de jornalistas e ativistas —
enquanto a economia despenca.
·
Um jato particular para um senhor da guerra
Embora não esteja formalmente no Plano
Mattei, são as negociações da Itália com a Líbia que se tornaram um ponto
crítico. Desde a derrubada de Muammar Gaddafi apoiada pela OTAN em 2011,
sucessivos governos italianos têm dado seu apoio ao instável governo de unidade
da Líbia. As relações privilegiadas da Itália com a Líbia — que, em última
análise, repousam em uma longa e violenta
dominação colonial que
só terminou com a derrota do fascismo — são úteis para uma elite europeia que
prefere ficar longe da luta entre facções militarizadas que reinou por mais de
uma década, mas está ansiosa para alistar o país do Norte da África como
agentes de fronteira terceirizados. De fato, a agência de fronteira europeia,
Frontex, se gaba da “história de sucesso” italiana nos últimos anos, com a chegada de
migrantes por mar caindo em mais de 50%, graças aos acordos com os governos da
Tunísia e da Líbia. Até mesmo o ex-ministro do Interior, de centro-esquerda,
Marco Minniti — que negociou os
acordos iniciais com os senhores da guerra líbios em 2016 — elogiou as
políticas internacionais de Meloni.
Apoiar o governo de unidade líbio consequentemente
também significa apoiar seu braço armado, as Forças Especiais de Dissuasão
(SDF), um grupo que supostamente se envolveu em tudo, desde tortura e tráfico
de pessoas até a supressão violenta de uma conferência de quadrinhos. Entre os líderes das
SDF está Osama Al-Masri, um homem que é acusado de uma longa lista de atos
horríveis de violência e extorsão, mas que, no entanto, está foragido.
“O tribunal de Haia abriu uma
investigação sobre potenciais consequências criminais das ações do governo italiano.”
Muito acostumado a viagens de negócios e passeios, em 6
de janeiro, Al-Masri voou de Trípoli para Londres. Após paradas na Alemanha e
em Bruxelas, ele chegou a Turim para assistir a uma partida de futebol da
Juventus. Em 18 de janeiro, no entanto, após uma verificação de rotina na
fronteira, o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu um mandado de
prisão para
Al-Masri, acusando-o de crimes de guerra, assassinato, escravidão e crimes
contra a humanidade. A polícia italiana o prendeu no dia seguinte — mas a
vitória durou pouco. Apenas três dias depois, o governo o libertou aparentemente
por um detalhe técnico, alegando que a Interpol não havia notificado o
Ministério da Justiça. Al-Masri não só foi libertado, como o governo italiano
providenciou um jato do serviço secreto para levá-lo de volta a Trípoli, onde
ele foi recebido por seus apoiadores como um herói.
O escândalo desencadeou uma tempestade política. O
Ministro do Interior Matteo Piantedosi tentou fazer tudo passar como uma
deportação de rotina de um imigrante ilegal perigoso, mas acusações criminais
foram apresentadas contra Meloni e o Ministro da Justiça Carlo Nordio por seu
papel na libertação de Al-Masri, e os partidos de oposição acabaram pedindo um
voto de desconfiança.
O Parlamento foi suspenso extraoficialmente por vários
dias enquanto a União Europeia condenava a Itália por violar o mandado do TPI.
Enquanto isso, ativistas que
sobreviveram aos centros de detenção da Líbia se
apresentaram com depoimentos angustiantes, implicando diretamente a
administração de Meloni no apoio a um torturador conhecido. O tribunal em
Haia também abriu uma
investigação sobre
potenciais consequências criminais das ações do governo italiano. Papagaio de
Trump, o partido de Meloni atacou os “juízes vermelhos” na Itália e em Haia que
estariam perseguindo-a.
·
Empresas de tecnologia, espionagem e resgate de
migrantes
Enquanto o escândalo Al-Masri ainda se
desenrolava, foi revelado que, há meses, dezenas de jornalistas e ativistas
foram contatados por plataformas de tecnologia, alertando-os de que seus
telefones foram infectados com um spyware de uso militar da Paragon. Uma empresa de
tecnologia israelense-estadunidense que também foi exposta no ano passado por
ter um contrato com a ICE, o spyware da
Paragon permite acesso total ao dispositivo de um alvo em tempo real.
O primeiro a falar foi Husam El Gomati, um ativista líbio que vive na Suécia e há
muito critica o papel da Itália na Líbia e o atual governo do país africano.
Logo depois. Francesco Cancellato — o editor do Fanpage.it que ganhou destaque
no ano passado após uma investigação sobre fascistas na ala
jovem do
próprio partido de Meloni — afirmou que também havia sido espionado. Em
seguida, vieram os membros do navio de resgate da ONG Mediterranea, alguns dos
maiores críticos das políticas da Itália na Líbia, que até foram alvejados pela
Guarda Costeira da Líbia (financiada pela Itália) enquanto
conduziam operações de resgate de migrantes. Luca Casarini, um membro do Mediterranea e ativista de longa data
nos movimentos sociais da Itália, descobriu que seu telefone foi infiltrado pela
primeira vez no início de 2024. David Yambio também expôs
seu caso — o mesmo ativista e refugiado sudanês que acusou pessoalmente
Al-Masri de tortura. Foi revelado que o capelão do navio também foi
espionado por mais de um ano, com questões levantadas sobre se o Papa ficou a
salvo da espionagem do governo. A Mediterranea oficializou
uma notificação de um crime aos promotores públicos, assim como o sindicato dos
jornalistas, defendendo Cancellato.
A Paragon anunciou
que rescindiu o contrato com a Itália por causa de uma violação nos termos
de serviço — o que significa que a Itália usou o software
ilegalmente para
espionar ativistas e jornalistas. O equivalente italiano da CIA, embora negasse
que espionou ativistas e jornalistas, na verdade admitiu usar o spyware. Luca
Ciriani, que é líder da Fratelli
d’Italia no Senado, foi ainda mais longe, não apenas alegando
que o contrato ainda está ativo e que o governo não espionou jornalistas, mas
também ameaçando tomar medidas legais contra qualquer um que dissesse isso — o
que, em termos de liberdades democráticas, é indiscutivelmente tão ruim quanto.
“Esses escândalos não são apenas
crises internas ou deslizes burocráticos — eles expõem a profunda cumplicidade
entre o capital italiano e os piores aspectos do poder imperial.”
Membros do governo — notavelmente o vice-premiê Salvini
—se esforçam para construir uma narrativa diferente, transferindo a culpa
para uma disputa de poder
dentro dos serviços secretos italianos, mas instituições que vão dos tribunais à
polícia prisional podem estar igualmente envolvidas. Na semana passada, Meloni
se recusou a ser questionada no parlamento sobre o assunto, citando a lei de
segredos de Estado — mesmo quando Nordio rompeu as fileiras, fornecendo suas
próprias respostas em uma tentativa de eximir seu Ministério da Justiça das
acusações.
·
Iniciando uma guerra comercial sem proteção
alguma
Esses escândalos não são apenas crises
internas ou deslizes burocráticos — eles expõem a profunda cumplicidade entre o
capital italiano e os piores aspectos do poder imperial. Para a classe
trabalhadora internacional — particularmente para os migrantes que enfrentaram
os brutais centros de detenção da Líbia — essas são questões de vida ou morte.
Embora os parceiros europeus de Meloni possam ficar
felizes em apoiar a posição da Itália como guarda de fronteira do Mediterrâneo,
isso deve prosseguir sem que qualquer cumplicidade em crimes de guerra venha à
tona. A chefe da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, tenta manter um pacto
difícil entre os liberais e a direita no novo parlamento europeu diante do
desrespeito descarado de
Trump pelo direito internacional e pela diplomacia. O apoio da Itália
a Trump em seus ataques ao Tribunal Penal Internacional agora parece embaraçoso
e egoísta, dado que o próprio governo de Meloni está sendo investigado.
Além disso, a crise interna atinge o cerne da política
fundamental de Meloni precisamente no momento em que a economia italiana se
mostra menos robusta do que parecia inicialmente. Após um período inicial de
crescimento do PIB, os últimos seis meses registraram crescimento quase zero,
com 2024 fechando em 0,5% — e as projeções oficiais do governo para o próximo
ano são apenas um pouco melhores (0,9%). Estatísticas muito
alardeadas sobre
a queda do desemprego estão se mostrando otimistas demais, encobrindo uma
realidade de pobreza e precariedade. Se o emprego aumentou ligeiramente para
62%, com alguns pequenos incrementos no salário médio, isso não foi suficiente
para afastar os efeitos da inflação: os salários reais
caíram 5%
em média desde que o governo de Meloni chegou ao poder.
A má gestão crônica na administração pública tem
frustrado as esperanças de que os fundos de
estímulo europeus pós-COVID-19 possam dar um impulso ao consumo. E
apesar dos objetivos de longo prazo de facilitar os preços do gás por meio das
manobras geopolíticas descritas acima, os preços da energia
estão realmente em alta, com um efeito cascata na já sofrida indústria
italiana, especialmente a
indústria automobilística. Mais importante ainda, salários reais
deprimidos e manufatura instável são as piores circunstâncias para começar uma guerra
comercial com
os Estados Unidos, quando o consumo interno pode muito bem se tornar a chave
para criar demanda e incentivar o investimento interno.
Meloni tentou se posicionar como uma “ponte” entre o
establishment europeu e o radicalismo de extrema direita de Trump. No entanto,
isso também abre uma nova série de problemas, não apenas sobre a guerra na
Ucrânia, mas também para as próximas eleições na Albânia — outro
ator-chave na jogada geopolítica de Meloni, mas onde o círculo de Trump
parece apoiar o candidato rival. De qualquer forma, a capacidade da Itália
de se mover independentemente da Europa durante uma guerra comercial com os
Estados Unidos é extremamente limitada: as opções são liderar o bloco europeu
ou ficar para trás. Ainda veremos até que ponto a classe capitalista europeia
estará disposta a fechar os olhos para auxiliar criminosos de guerra e espionar
refugiados e grupos da sociedade civil ainda. Se o governo de Meloni não
consegue nem garantir o crescimento econômico, pode ser que uma brecha esteja
aparecendo na armadura dos pós-fascistas.
Fonte:
Por Richard Braude – Tradução de Pedro Silva, em Jacobin Brasil
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