A indústria
que arranja casamentos com brasileiras na Europa
Companheiras leais,
dedicadas à família e extraordinariamente sensuais. É essa a promessa que atrai
homens solteiros de países ricos a um mercado internacional recheado de estereótipos que lhes
conecta virtualmente a mulheres brasileiras.
Quase sempre, quem procura o
serviço está disposto a dispensar tradições ou deixar tudo para trás por um
novo relacionamento ou casamento arriscado, às vezes sem nem falar a língua do
parceiro ou pouco conhecê-lo.
O Brasil é um dos focos de
uma indústria cuja alma do negócio está em abrir os caminhos para que mulheres
da América Latina, da Ásia e do Leste Europeu cruzem mares e fronteiras para se
casar. Neste universo, reza a lenda que a mulher brasileira foi agraciada com
uma beleza natural, mantém
constante alegria de viver e sempre estará disposta a cuidar do marido e dos
filhos.
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"Menu" de brasileiras
"As mulheres
brasileiras amam cuidar de um homem que lhe dê atenção e mostra que a ama!
Devido ao forte senso de família e ao seu calor natural, as mulheres
brasileiras são muito leais, orientadas para a família, femininas e
afetuosas", diz em inglês a agência teuto-brasileira de casamentos
Marlu, com sede em Berlim, que afirma atuar desde 1993. "Quer ela trabalhe
ou não, ela contribuirá cuidando da casa e dos filhos."
De um verdadeiro cardápio de
brasileiras, os clientes homens podem escolher quais querem conhecer
pessoalmente, na Alemanha ou no Brasil. A agência afirma fazer a pré-seleção de
candidatas, quase sempre fotografadas ou filmadas de forma hipersexualizada, e
organizar as viagens internacionais.
Só os homens podem se fartar
no "menu", e às mulheres cabe aceitar ou não o convite para
conversar. O pacote mais caro anunciado chega ao equivalente a R$ 8.400.
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Alemães entre os maiores "clientes"
Na outra ponta, estudos
indicam que alguns dos países onde a indústria encontra maior interesse
dos homens incluam a Alemanha, o Reino Unido e os Estados Unidos.
Nos EUA dos anos 1970, o
nicho floresceu para oferecer "noivas por encomenda" para solteiros
americanos insatisfeitos com os novos papeis da mulher num período de
efervescência do movimento feminista.
"O bronzeado sexy é a
autenticação das mulheres do Brasil. O banho de sol é um de seus passatempos
favoritos. Elas ficam deitadas nas praias por horas, virando-se de um lado para
o outro e hidratando o corpo com óleo", diz o site Golden Bride (Noiva
Dourada), que anuncia "noivas brasileiras por encomenda".
Com a expansão da internet,
o mercado pioneiro das agências casamenteiras se capilarizou nas últimas duas
décadas. Hoje um ecossistema de sites de relacionamento fala em casamento ou
flerta com a proposta. Muitas vezes com uma linguagem mais sutil, o nicho ainda
investe nas rotas tradicionais das "noivas por encomenda", com
páginas específicas para brasileiras e latinas.
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Passaporte para uma vida nova
O casamento é vendido para
as mulheres como passaporte para uma nova vida, longe dos desafios sociais e
econômicos que, desproporcionalmente, afetam as mulheres no Brasil e outros
países do Sul Global. Os homens europeus, por sua vez, são apresentados a elas
como sinônimo de fidelidade, planejamento e segurança – supostamente,
ao contrário dos brasileiros.
Enquanto as mulheres esperam
chegar a sociedades com valores e normas mais favoráveis às mulheres,
a indústria frequentemente as trata como produto a ser customizado,
testado e fretado. Chega a ser possível para os homens escolher candidatas
de acordo com nacionalidade, idade, peso, altura e até signo do zodíaco.
"A brasileira é
apresentada como uma extensão do Brasil enquanto um destino paradisíaco, onde o
homem alemão exerceria um direito de fazer a sua escolha", afirma a
antropóloga Thais Tiriba, que pesquisou agências teuto-brasileiras na
Universidade Livre de Berlim, com apoio da Fapesp. "Ela seria mais dócil
em comparação a uma mulher alemã que teria sido arruinada por ideias
feministas."
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"Não era amor, era serviço"
Para Simone (nome fictício),
tudo começou com uma brincadeira despretensiosa. Aos 18 anos, no início da
faculdade de Direito, ela e as amigas criaram perfis no site Brazil Cupid
(Cupido Brasil, em tradução livre) que, apresentando-se como plataforma para
conhecer solteiros no Brasil, hoje oferece catálogos de brasileiras em nove
idiomas falados na Europa.
Na versão em português, o
site dispensa o catálogo, e só em inglês há também uma lista de homens, dos
quais muitos não têm nomes brasileiros. Os casos de sucesso relatados quase
sempre são de homens estrangeiros que se casaram com mulheres
brasileiras.
Da mesma empresa, o Latin
American Cupid (Cupido Latino Americano) tem cardápios de mulheres latinas,
colombianas, brasileiras, dominicanas e peruanas em inglês, alemão, espanhol e
francês, além de retratos de clientes felizardos que acharam uma "mulher
de valores tradicionais" ou "a doce latina" que procuravam.
Entre mensagens que pediam
dinheiro, encorajavam fotos de nudez ou propunham casamento imediato, Simone
conheceu um suíço de férias no Brasil pela plataforma. Depois de dois anos se
encontrando com ele para viagens a passeio dos dois lados do Atlântico, ela
engravidou acidentalmente em 2020, e ele insistiu para que ela se
mudasse para um vilarejo na Suíça.
Atraída pelas promessas de
que ela lá aprenderia o alemão, continuaria a formação acadêmica e construiria
uma família, ela cedeu. Mas, ao chegar, foi proibida de estudar e ter conta
bancária, num lugar onde se sentia discriminada pela
vizinhança e ninguém falava inglês.
"Para ele, mulher era
para ser dona de casa", conta Simone. "Primeiro, eu achava que ele
estava me protegendo num país onde eu não conhecia ninguém. Mas hoje vejo que
era uma forma de me isolar. É como se ele achasse que deveria ser o meu tudo, o
meu deus."
Especialistas e autoridades
constataram há pelo menos três décadas que este modelo de casamento serve de
porta de entrada para cadeias de violências e abuso.
Tradicionalmente, a barreira linguística, a falta de redes de apoio, o
desconhecimento das leis locais e a dificuldade de se inserir no mercado de
trabalho aprofundam a vulnerabilidade das mulheres que caem em relações desiguais
ou dependentes.
Tentando escapar da bolha
imposta pelo companheiro, a brasileira sobreviveu a quase três anos de violências físicas até
conseguir ajuda da polícia, que a encontrou sangrando e machucada depois de uma
tentativa de enforcamento. Simone e o filho foram levados a um abrigo para
mulheres.
"Depois que eu o
conheci pela internet e vi que ele era real, achei que não tinha mais risco.
Mas ele queria alguém para cuidar da casa e do filho sem pagar", ela
conta. "Você se sujeita a vários papeis que você entende como amor e ele,
como serviço."
Depois da separação, ela
aprendeu alemão e agora estuda para ser assistente social na Suíça. Mas não
exatamente por escolha, já que se vê forçada a ficar no país enquanto luta pela
guarda do filho, sem ter o direito de levá-lo ao Brasil. O ex-marido aguarda o
julgamento pelas agressões contra Simone em liberdade.
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Casamento fácil, divórcio difícil
Outros países de origem
de mulheres mais frequentemente anunciadas como "noivas por
encomenda" incluem Filipinas, Tailândia, Rússia e Ucrânia, com
estereótipos diferentes criados para cada um.
Na Alemanha, os casamentos
entre brasileiras, filipinas e tailandesas com alemães dispararam a partir do
fim dos anos 1980, concomitantemente ao crescimento da indústria casamenteira.
Entre 2013 e 2023, os alemães se casaram com 6.300 brasileiras, o maior número
nas Américas, e outros 14,8 mil com filipinas e tailandesas. Não há,
entretanto, dados específicos sobre mulheres que imigraram para se casar.
De tão popularizada, a busca
por este modelo de casamento já vaza das plataformas especializadas e chega a
outros cantos da internet, inclusive a quem nem sabe da existência de um nicho
casamenteiro.
Ângela (nome fictício) nunca
procurou a indústria, mas recebeu uma proposta de casamento de um alemão que
conhecera num site de bate papo na internet, no qual era possível filtrar a
localização do interlocutor. Depois de ter tentado com filipinas, ele passou a
conversar com a brasileira que, dois anos mais tarde, embarcaria para a
Alemanha, com os documentos para o casamento na mala.
O fim de um longo
relacionamento violento e dificuldades financeiras pesaram na decisão. Parecia
uma opção sentimentalmente segura, já que tanto se falava na internet que os
alemães eram sinceros e fiéis para a vida toda.
"Foi como se tivesse
chegado aquele príncipe encantado da Alemanha e, com ele, a possibilidade de
vir para cá. Eu não tinha nada a perder", diz. "Não éramos
extremamente apaixonados, mas formamos uma parceria, e o apego emocional viria
com o tempo."
Ângela viu o projeto de
construir um amor, no entanto, desmantelado pela indisposição do marido em
cultivar uma vida romântica e sexual, dividir as tarefas da casa ou aprender
sobre a sua cultura.
"Ele dizia que as
mulheres alemãs eram muito complicadas e tinham muita frescura", conta.
"O amor dele estava muito relacionado a ter alguém cuidando da casa."
Após o marido ser
diagnosticado com uma doença degenerativa, ela se tornou financeiramente
responsável pela casa. Pela legislação alemã, o casal precisa morar separado ao
longo de um ano antes do divórcio, no qual Ângela ainda seria requerida a
financiar as necessidades básicas do marido.
Só que as contas não fecham,
e eles vivem há dois anos sob o mesmo teto, mas não como casal. "O
relacionamento durou enquanto eu me dispus a fazer dar certo. Quando me tornei
independente e passei a impor minhas necessidades, ele se fechou de vez."
·
Ponto cego da regulação na UE
As histórias de Ângela e
Simone integram um roteiro já conhecido por advogados e especialistas que atuam
na proteção a mulheres das nacionalidades mais visadas pela indústria
casamenteira na Europa.
São múltiplos os obstáculos
que as mulheres migrantes enfrentam ao buscarem a separação, incluindo porque
muitas dependem do casamento para manter seus vistos. A discriminação por autoridades
e a disparidade econômica com os maridos também aumentam o risco de perder a
guarda dos filhos.
A advogada Delaine Kühn, que
atua na Alemanha, ressalta que a mulher brasileira que deseja migrar tem
alternativas para além do casamento: "É importante analisar as
perspectivas de antemão. Não sabemos como a outra pessoa vai reagir quando o
casal vai morar junto. Muitas vezes, aquele príncipe encantado vira um
sapo."
Governos, especialistas e a
Organização das Nações Unidas também já advertiram para a possível associação
das agências e sites internacionais que formam casais ou promovem casamentos ao
risco de tráfico humano.
Entretanto, a indústria
opera num ponto cego regulatório da União Europeia, colocando em xeque
provisões consagradas em matéria de direitos humanos, tal como os
princípios de igualdade e não discriminação. É o que explicam
as pesquisadoras Ingrid Westendorp e Inez Roosen, da Universidade de
Maastricht, na Holanda, que estudaram a indústria das "noivas por
encomenda" na Alemanha, Holanda, Reino Unido e Irlanda.
Para elas, faltam conhecimento
e pesquisa sobre o tema e sistemas de proteção. "Esta indústria
coloca as mulheres em situação subordinada e vulnerável, enquanto os homens são
colocados em posições de poder, sem igualdade entre os dois lados," afirma
Westendorp. "Os Estados têm obrigação de modificar e abolir práticas
nocivas. Mas, para isso, precisam estar cientes de que esta indústria se baseia
nestes estereótipos."
A agência Marlu não quis
comentar sobre os seus serviços, afirmando prezar pela discrição dos clientes.
A empresa já participou de um reality
show na televisão alemã, no qual homens alemães viajavam para
vários países menos ricos, incluindo o Brasil, atrás de "mulheres dos
sonhos."
A Golden Bride disse não
promover ou organizar encontros. Já as plataformas Rose Brides, Brazil Cupid e
Latin American Cupid não responderam a pedidos de comentário.
Em nota, a Embaixada do
Brasil em Berlim disse não ter atendido nos anos recentes casos relacionados a
agências de relacionamentos ou casamentos. Mas o órgão oferece apoio jurídico e
psicológico para as vítimas de violência contra mulheres migrantes e tráfico de
pessoas, além de organizar eventos informativos e publicar cartilhas.
Mulheres vítimas de
violência doméstica na Alemanha podem pedir ajuda em 17 idiomas, inclusive português,
ao telefonarem para a linha de apoio do governo no número 116016.
Fonte: DW Brasil
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