Catarina
Mina, de escravizada a empreendedora de sucesso
Quando a africana liberta
Catarina Mina caminhava pelas ruas de São Luís do Maranhão colonial, a cidade
parecia estremecer. Caminhava altiva, sempre sorrindo. Atrás dela, o cortejo de
outras africanas, vestidas de renda, ouro no pescoço, nos pulsos, nas orelhas.
"Lá vem Catarina Mina com as suas escravas para a festa da
padroeira", escreveu um jornalista da época.
Catarina Rosa Pereira de
Jesus chegou ao Brasil como escrava da Costa da Mina, região do golfo da Guiné
(daí o nome "Mina"). Foi quituteira, comerciante: de escrava de ganho
a "mulher de negócios". Comprou sua alforria e fez fortuna com o
dinheiro do próprio trabalho, e, segundo dizem, dos favores prestados a
comerciantes portugueses da Praia Grande (algo que a historiografia nunca
provou).
"Quando encontrei o
inventário da Catarina Mina, fiquei surpresa. Essa mulher era riquíssima! O
inventário, e depois o testamento, foram os documentos que mais me emocionaram
durante as pesquisas sobre a vida dela", contou à DW Brasil a historiadora
Iraneide Soares da Silva, que estuda a vida da africana. Embora seja difícil
precisar o valor dos seus bens, sabe-se que tinha muito – e o mistério sobre
como ela alcançou tal feito intriga estudiosos até hoje.
·
Testamento generoso
Datado de 1887 e hoje
preservado no arquivo público do Tribunal de Justiça do Maranhão, o testamento
da ex-escrava revela uma generosidade incomum entre os ricos da época. Mina
distribuiu sobrados, casas, vilas e lotes entre comadres, figuras influentes do
judiciário e do meio eclesiástico. Mas, acima de tudo, libertou seus escravos e
lhes assegurou riqueza – algo raro, pois em geral esses eram repassados como
bens.
Os documentos mostram que
Catarina Mina acumulou riqueza e criou uma rede de socialização e cooperação
entre mulheres libertas durante a escravidão, explica a Iraineide Soares. Nos
jornais da época há muitos a anúncios de fugas de mulheres que contavam com
redes de apoio, pois, para fugir, precisavam de colaboração externa.
De fato, até hoje circulam
em São Luís histórias sobre a vida de Catarina Mina. Elas falam de uma personagem
de caráter heroico, que comprava escravos para os libertar. Mas as pesquisas
historiográficas revelam que ela também manteve escravos durante a vida.
Quando eles saíam com ela às
ruas, andavam bem ornados, mas sempre descalços, explica a historiadora. "Há
sempre essa pergunta: 'Como assim? Catarina Mina viveu a escravidão e
escravizou?' Minha compreensão é a que, quando existe um escravo numa condição
de vida miserável, e você o traz para perto de si para ser tratado com mais
humanidade, há um pouco a lógica de trazer para perto para poder libertar de
algum modo."
A documentação sobre Mina
revela que foi uma das mulheres mais ricas do período, com pecúlios e riqueza,
mas que não teve o título de 'senhora dona', um importante símbolo de distinção
para mulheres de posse.
·
"Beco Catarina Mina"
Catarina Mina não teve o
reconhecimento oficial para a época, mas fez história. Seu nome ficou em ruas,
músicas, marcas de roupas e nas cozinhas da capital maranhense. O assim chamado
"Beco Catarina Mina" era o local onde vendia peixes e farinha, e nele
se encontra um restaurante que também leva o nome da benfeitora.
Maria de Lourdes, a dona do
estabelecimento, ri ao dizer que trabalha muito, mas não tem a liberdade que
Catarina Mina conquistou. Para ela, a história de Mina – marcada pela
solidariedade e uma mudança incomum de condição social para a época – entrelaça
passado e presente, inspirando sua própria vida.
"Quando eu coloquei o
nome do restaurante ‘Catarina Mina', comecei uma grande pesquisa. Antes de eu
vir para esse beco, ninguém falava sobre ela. Eu já trabalhei muito essa
história e divulgo sempre que posso."
Maria de Lourdes tem o
restaurante desde 1990. Por muitos anos preservou o testamento de Catarina
Mina, mas o entregou para conservação. Segundo ela, a ex-escrava teria falecido
por volta dos 35 anos. Ao longo de sua vida, além de comprar a própria
alforria, comprava outros escravos e os libertava, incluindo a própria mãe.
A pesquisa revela que Mina
teve um único filho, chamado Alexandre (embora haja controvérsias se foi
realmente filho, afilhado ou se faleceu ao nascer). A africana também teria se
casado e, num gesto significativo de ascensão social, adquirido para seu esposo
uma patente de alferes, um posto de oficial subalterno do Exército,
intermediário entre tenente e aspirante a oficial.
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Como Mina enriqueceu?
Uma das questões mais
intrigantes sobre a história dessa personagem é por que Catarina conseguiu
enriquecer e outros escravos, não? Segundo historiadores, havia uma diferença
entre a escravidão urbana (contexto em que Mina viveu) e a rural, em que era
muito mais difícil qualquer ascensão social, pois escravos raramente tinham
alguma remuneração.
No Brasil colonial e no
Império, escravos de ganho, como Mina, trabalhavam nas ruas sob ordens de seus
senhores, devendo entregar uma quantia diária estipulada. Essa prática surgiu
no século 17, mas só no Império passou a ser mais controlada pelo Estado. Esse
trabalho lhes permitia, em algumas circunstâncias, acumular algum valor
excedente, que poderia ser guardado para negociar a compra da alforria e
acumular algum recurso.
Diferentemente dos
escravizados nas fazendas, os escravos de ganho desempenhavam atividades
urbanas remuneradas, como carregadores, doceiras ou faziam pequenos reparos. As
mulheres trabalhavam dentro das casas e podiam sair para vender. E as pesquisas
mostram que Catarina foi além, ao construir, à sua própria maneira, negócios
que lhe permitiram acumular muitos bens.
O caráter de Catarina Mina
chama atenção nos documentos seu respeito, explica a historiadora Iraneide
Soares. Como quituteira, estabeleceu sua rede de sociabilidade que manteve até
a ascensão social. Foi uma personagem bem relacionada naquele contexto
histórico, o que explicaria, em grande parte, o seu mérito.
Também o historiador Manolo
Florentino, um dos maiores nomes nas pesquisas sobre os escravos de ganho no
Brasil, mostrou, com estudos principalmente sobre o Rio de Janeiro, que os
escravizados eram vítimas, mas também tinham ação, relevância e protagonismo
como sujeitos humanos.
Florentino explicou numa
entrevista em 2012: "Sobretudo em países como o Brasil, estratégias que
levavam à formação de famílias e à adoção do trabalho por tarefas foram
fundamentais para a acumulação de pecúlio e a obtenção da alforria [...].
Sabemos terem sido altas as taxas anuais de alforrias, sobretudo nas cidades,
com amplo predomínio de manumissões [ato de libertar um escravizado]."
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Outras histórias de ascensão social
Mas Catarina Mina não foi a
única ex-escrava bem-sucedida no Brasil colônia, embora essa não fosse a
realidade mais comum em todo contexto da escravidão. Cem histórias semelhantes
de mulheres negras escravizadas com trajetórias excepcionais para o período
estão no livro Dicionário biográfico: Histórias entrelaçadas de
mulheres afrodiaspóricas (Editora Malê, 2024).
Adelina, a Charuteira, filha
de uma escravizada e de um senhor empobrecido, tornou-se vendedora de charutos
em São Luís. Frequentando o Largo do Carmo, entrou em contato com estudantes
abolicionistas e passou a atuar como informante, alertando sobre investidas
policiais e auxiliando na fuga de escravizados, contribuindo para o movimento
abolicionista.
Para além do Maranhão, no
Piauí do século 18, Esperança Garcia não se tornou advogada formalmente, mas é
reconhecida simbolicamente pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) como
primeira advogada do país. Mulher negra e escravizada, ela ficou conhecida por
escrever uma carta-petição ao governador da capitania do Piauí, em 1770,
denunciando os maus-tratos que sofria e pedindo melhores condições para si e
outras escravizadas.
Esse documento foi
considerado por juristas e historiadores um dos primeiros registros de petição
por direitos no Brasil. Em reconhecimento a seu ato pioneiro na luta por
justiça, a OAB do Piauí concedeu-lhe, em 2017, o título honorário de primeira
advogada do estado.
Segundo a pesquisadora
Iraneide Soares, a ausência de histórias como essas nos livros escolares
implica que "a historiografia brasileira tem muito a avançar nas pesquisas
sobre essas personagens que aparecem como sujeitos ativos e dinâmicas de vida
diferentes, na história da escravidão".
Fonte: DW Brasil
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