Mulheres
têm papel crescente na teologia cristã do Brasil
Deus, no cristianismo, é uma
figura referida no masculino. Jesus é homem. Os apóstolos e todos os que
ocuparam e ocupam posições hierárquicas de destaque, assim como a maioria dos
pensadores cristãos, também o são. Para a freira agostiniana Ivone Gebara,
filósofa e teóloga, historicamente na Igreja "eles precisam das mulheres
apenas para estar onde estão, para afirmarem seu poder sobre elas e sobre o
mundo".
Autora de As incômodas filhas de Eva na Igreja da América Latina e Vida religiosa: Da teologia
patriarcal à teologia feminista, entre outros
livros, Gebara é uma das principais expoentes de um grupo crescente no Brasil,
o das teólogas feministas. São mulheres que questionam o patriarcalismo,
o machismo e a
misoginia construídos historicamente pela tradição cristã. Promovem uma
interpretação mais inclusiva dos textos bíblicos, lutam por direitos igualitários e
cobram uma participação em postos ainda hoje restritos aos homens, como o
sacerdócio no catolicismo.
"Acredito que as
mulheres são capacitadas para desempenhar todas as funções eclesiásticas, mas
cabe a cada instituição a decisão final sobre a distribuição dos cargos
oficiais. Não vejo na Bíblia nenhuma base que justifique a diferença de gêneros
dentro das instituições religiosas", comenta a antropóloga e historiadora
Lidice Meyer Pinto Ribeiro, professora na Universidade Lusófona, em Portugal, e
autora de Cristianismo no feminino: A
presença da mulher na vida da Igreja.
"O rosto da Igreja é
todo ele masculino, sobretudo na hierarquia. Mas as mulheres estamos chegando
lá, sobretudo no campo da teologia", afirma a professora na Pontifícia Universidade
Católica do Rio (PUC-Rio) Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga e autora
de O lugar da mulher, entre outros.
·
Papa Francisco tem papel marcante
Esse movimento teológico
feminino e feminista encontra um anteparo institucional nos últimos anos graças
a uma ainda tímida, mas já notável, inclusão de mulheres em cargos
institucionais importantes, sobretudo na tradicional Igreja Católica Apostólica
Romana. Líder do catolicismo desde 2013, papa Francisco nomeou
mulheres para postos na hierarquia do Vaticano outrora somente ocupados por
homens.
"No contexto de
narrativas androcêntricas dominantes surge a voz profética do papa Francisco
que tem promovido participação ativa das mulheres", diz a teóloga e
pedagoga Andreia Cristina de Morais, freira da Congregação das Pequenas
Missionárias de Maria Imaculada e professora na Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais (PUC-MG).
Ela enumera os casos mais
ilustres: Barbara Jatta dirige os Museus Vaticanos desde 2017, Nathalie
Becquart é subsecretária do Sínodo dos Bispos desde 2021, Nuria Calduch Benages
tornou-se a primeira secretária da Pontifícia Comissão Bíblica em 2021, Maria
Lia Zervino passou a integrar o Dicastério para os Bispos em 2022.
Em 2025, Simona Brambilla
foi nomeada primeira prefeita do Dicastério para os Institutos de Vida
Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, e Raffaella Petrini se tornou a
primeira presidente tanto da Pontifícia Comissão para o Estado da Cidade do
Vaticano como da Governadoria, respectivamente os órgãos legislativo e
executivo da cidade-Estado.
"Representam um sinal
de esperança de que a Igreja está refletindo e se abrindo para a importância e
valorização efetiva da mulher no âmbito das lideranças eclesiais, de decisões
institucionais e da reflexão acadêmica teológica. O papa está abrindo portas,
porém para uma verdadeira inclusão das mulheres na Igreja católica, temos ainda
um longo caminho a percorrer, para isso será preciso uma real conscientização e
um reconhecimento institucional da importância da igualdade de gênero."
No Brasil, foi criada em
2023 a Rede Brasileira de Teólogas, grupo que se dedica a reunir essas
pensadoras, produzir e divulgar o "fazer teológico na perspectiva
feminista". "Até então, não havia um grupo específico", comenta
a teóloga, filósofa e biblista Zuleica Aparecida Silvano, freira da Congregação
das Filhas de São Paulo, professora na Faculdade Jesuíta de Filosofia e
Teologia e integrante da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica.
Ela conta, por exemplo, que
recentemente lançou-se no país uma nova tradução da Bíblia com o trabalho de
cinco tradutoras – o que envolveu muita reflexão "sobre as atitudes
misóginas que encontramos". "Eu, por exemplo, fui a primeira a traduzir
textos do Novo Testamento em português do Brasil. Em pleno 2022. É maravilhoso,
mas também um absurdo, pois já havia muitas biblistas antes de mim."
·
Feminina ou feminista?
Há uma diferença entre
teologia feminina e teologia feminista, lembram as pensadoras cristãs. "A
teologia feminina é livre de posicionamentos ideológicos. É apenas a leitura do
texto bíblico aos olhos femininos, ou seja, uma teologia feita pela mulher.
Visto dessa forma, toda teóloga pratica uma teologia feminina, embora nem toda
teóloga abrace a teologia feminista", esclarece Ribeiro.
De acordo com Gebara,
passou-se a falar de teologia feminina "quando mulheres de diferentes
denominações começaram a pensar a teologia masculina e fazer leituras bíblicas
publicamente, embora sempre conservando a referência patriarcal". O
movimento feminista veio "em meados do século 20", quando algumas
mulheres "ousaram" e deram "um passo qualitativamente
novo".
"Ao usarem a expressão
feminista, queriam marcar que se tratava de algo diferente e que uma revolução
de certos conteúdos estava sendo preparada, acompanhando, de certa forma, os
movimentos sociais e políticos de emancipação das mulheres."
A diferença, portanto, não
estaria apenas nas diferentes abordagens, explica Gebara: "Para as
teologias feministas há uma consideração diferente da tradição cristã. Tenta-se
buscar os traços ocultos da presença feminina nela presentes, denunciando as
muitas formas de violência contra as mulheres, explícitas e implícitas,
presentes nos textos bíblicos e teológicos."
"No século passado,
tivemos algumas mulheres que sentiram isso mais claramente e começaram a
observar esse domínio masculino nas igrejas cristãs, e a combatê-lo",
explica a teóloga Tereza Maria Pompeia Cavalcanti, professora aposentada da
PUC-Rio. "Então começaram a fazer uma releitura das fontes do cristianismo
a partir de uma ótica das próprias mulheres, revelando o quanto a visão
masculina e patriarcal influiu nos textos da Bíblia, e o quanto isso era
incompatível com uma visão justa de Deus."
"Essa produção
intelectual começo a chamar a atenção dos biblistas e teólogos. por exemplo, se
Deus é um espírito, portanto não tem corpo, por que chamá-lo sempre no
masculino? A leitura bíblica feita por mulheres revelou o quanto a imagem de
Deus é sempre apresentada no masculino e o quanto isto acentua a posição
subalterna da mulher", conclui ela.
·
Teólogas desde os primórdios do cristianismo
A antropóloga Ribeiro lembra
que teólogas mulheres existem desde o princípio do cristianismo – entre os
nomes históricos mais notáveis citem-se Hildegard von Bingen (1098-1179),
Catarina de Sena (1347-1380) e Teresa d’Ávila (1515-1582) – mas reconhece que
atualmente "há uma visibilidade maior da produção e da atuação
feminina".
A teologia feminista teria
surgido com a publicação, em 1895, de The
Woman's Bible, pela ativista americana Elizabeth Cady Stanton
(1815-1902) com uma comissão de mulheres. "É o início de uma nova
perspectiva de interpretação bíblica. A teologia feminista difere do pensamento
hegemônico, na medida em que busca defender a igualdade entre os gêneros,
desmistificando qualquer noção de superioridade masculina, seja espiritual,
social ou física."
Na esteira do próprio desenvolvimento
do feminismo ao longo do século 20, essa teologia também cresceu.
"Atualmente, a teologia feminista tem também se dedicado a questões como
aborto, violência sexual e defesa de minorias", conta Ribeiro.
A teóloga Bingemer lembra de
outro marco: Beyond God the Father: Toward a
philosophy of women’s liberation (Para além
do Deus Pai: Por uma filosofia da liberação feminina), publicado em 1973 pela
filósofa e teóloga americana Mary Daly (1928-2010). "Foi ali que se
compreendeu uma escola de teologia, a teologia feminista, uma nova corrente.
Ela questiona toda a linguagem de Deus, que é [tradicionalmente]
masculina."
Mas principalmente no
catolicismo, o espaço maior para as mulheres é resultado do Concílio Vaticano
2º, concluído em 1965 — e, evidentemente, que isto também influenciou outras
igrejas cristãs. "Apenas a partir dele foi permitido às mulheres
ingressarem na área acadêmica teológica [do catolicismo]", explica a
pedagoga Andreia Cristina de Morais.
"Na Igreja, em
2 mil anos de história, faz somente 60 anos que as mulheres puderam ter
acesso oficial aos estudos teológicos. Isto reflete uma visão histórica
androcêntrica de Igreja, mas também uma abertura, mesmo que tardia, para a
mulher participar das reflexões teológicas da fé e da doutrina."
São os primeiros passos, mas
ainda falta muito para haver igualdade de gênero: "Apesar do crescimento
das teologias femininas e feministas, o quadro docente das instituições
católicas de teologia segue predominantemente masculino", ressalta Morais.
Cerca de 80% dos professores deste segmento no Brasil são homens, na maioria
sacerdotes.
"As mulheres, leigas ou
religiosas, são a minoria nesses ambientes, e muitas vezes encontram
dificuldades em ingressar ou permanecer, por serem pouco reconhecidas como
sujeito capaz de contribuir para a construção do saber teológico."
Fonte: DW Brasil
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