terça-feira, 11 de março de 2025

O funcionamento da ciência em áreas cinzentas

O livro Determinado: A ciência da vida sem livre arbítrio,do neurocientista Robert Sapolsky, foi lançado recentemente no Brasil. A publicação se soma às fileiras dos filósofos e cientistas que desacreditam da existência do livre-arbítrio, como Galen Strawson e Skinner.

A publicidade de ideias nem sempre depende de sua veracidade, mas muitas vezes da capacidade de um grupo de pessoas de atrair a balança da opinião pública a seu favor, construindo uma imagem atrativa e/ou configurando um ambiente propício para elas serem aceitas. O Multiverso e algumas variações da Hipótese de Gaia, por exemplo, não são atestações científicas consolidadas, mesmo assim foram ideais que gozaram de certa popularidade como se fossem.1 No caso do livre-arbítrio, afirmações peremptórias de alguns cientistas proeminentes podem esconder um intenso histórico de debates por trás de suas teses. O próprio sr. Sapolsky reveste suas ideias de uma nobre finalidade: livrar o ser humano do fardo pesado da culpa. Intenção que pode ser vista como marketing ou benevolência científica.

A negação moderna do livre-arbítrio se inicia como corolário da mecânica newtoniana. Foi a partir de Newton que pudemos calcular a movimentação de corpos celestes, determinados por um conjunto de variáveis (forças) que agem sobre eles. Se, ao saber de todas as forças que agem sobre um objeto, podemos prever sua movimentação, os objetos e o universo são determinados por um conjunto de eventos anteriores. Os seres humanos, como parte da natureza e de um universo determinísticos, igualmente o são — restaria saber todos os ânimos da natureza que agem sobre nós para prever nossas atitudes.

O empreendido filosófico de Kant, em parte, surge para solucionar a questão. Como pode existir a liberdade humana num mundo mecânico, de movimento determinado por leis objetivas da física, se a natureza humana está submetida a essas leis? À época, os filósofos realmente se perguntavam como humanos como agentes não determinados poderiam existir dentro desse quadro. Kant contornou o problema: o mundo sensorial externo, dominado pelas leis da física, aparece para nós de acordo com a nossa sensibilidade; porém, independente de nossa experiência, existe um mundo das coisas como elas são em si. O mundo numênico é mundo como nós o percebemos, já o mundo fenomênico é o mundo da realidade como ela é em si. A liberdade humana e a razão prática, como objetos em si mesmos, não fazem parte do quadro determinístico pois não podem ser apreendidas.2

Em outras palavras, o mundo das leis da física como o vemos não pode dizer nada sobre nós e nossa liberdade. Assim, o debate filosófico acerca da possibilidade de arbítrio humano livre se estendeu por séculos e hoje, apesar do avanço científico, não está num estágio muito diferente do anterior.3

Primeiro, como em qualquer trabalho científico, deve-se conceituar o que se entende por “livre-arbítrio”. Os significados são variados. Porém, quando os deterministas radicais dizem que não há livre-arbítrio, eles estão falando que não existe nenhuma forma de arbítrio, nenhum escopo de liberdade de tomar decisões. Segundo eles, não somos autores de nossas próprias escolhas e não devemos ser moralmente responsabilizados por elas.

É o que diz o Argumento Básico de Galen Strawson, em seu artigo chamado The Impossibility of Moral Responsibility, posição que se repete dentre todos os deterministas: “Há um argumento, que chamarei de Argumento Básico, que parece provar que não podemos ser verdadeira ou, em última análise, moralmente responsáveis por nossas ações. De acordo com o Argumento Básico, não faz diferença se o determinismo é verdadeiro ou falso. Não podemos ser verdadeira ou, em última análise, moralmente responsáveis por nossas ações em nenhum dos casos.

O Argumento Básico tem várias expressões na literatura do livre-arbítrio, e sua ideia central pode ser rapidamente transmitida.

(1) Nada pode ser causa sui – nada pode ser a causa de si mesmo.

(2) Para ser verdadeiramente moralmente responsável por suas ações, alguém teria que ser causa sui, pelo menos em certos aspectos mentais cruciais.

(3) Portanto, nada pode ser verdadeiramente moralmente responsável.”

Na mesma linha, Robert Sapolsky chegou a afirmar que “somos a soma do que não podemos controlar”, ou seja, “somos nada mais nada menos que a soma da biologia e do meio ambiente”. Porém, entender o comportamento como o resultado objetivo e determinado de uma soma de fatores (ambientais, sociais e biológicos) não faz sentido, uma vez que os fatores externos não agem sobre uma câmara vazia meramente responsiva, como um autômato, mas sobre a sensibilidade interior de um órgão com natureza cognitiva. A própria biologia humana, que Sapolsky inclui no cálculo, nos fornece uma capacidade de tomar decisões, elaborar raciocínios, direcionar os próprios pensamentos e viver a realidade através de sentimentos. Dentro da ciência cognitiva, essas capacidades humanas são uma realidade. Os nossos pensamentos não necessariamente são racionais o tempo todo ou na maioria das vezes. Porém, de qualquer forma, a própria possibilidade de elaborar pensamentos racionais abre margem para certo escopo de liberdade e tomada de decisões conscientes.

Os deterministas radicais contornam o fato dizendo, como Galen Strawson, que até os pensamentos racionais e as decisões conscientes são determinadas, por serem causados e existirem dentro de uma sequência de eventos anteriores. Assim, uma outra leva de filósofos, desde David Hume, contornaram o imbróglio por meio do compatibilismo, afirmando que não há conflito entre determinismo e livre-arbítrio.

Isso nos leva para a outra questão. As opiniões de cientistas de grandes universidades, expressas em livros, não necessariamente são atestações científicas consolidadas, mas sim especulações teóricas que ainda residem em um campo fora da verificação. Dizer isso para o público geral é grande coisa, pois muitas ideias são vendidas como a posição científica verdadeira e não como uma posição científica dentro de um amplo debate que ainda não encontrou consenso razoável.4

Para um grande cientista que defende determinada tese em áreas cinzentas e sem consenso, há outro grande renomado cientista que defende outra. Chomsky, linguista e cientista cognitivo, por exemplo, ao contrário de Sapolsky, defende a existência do livre-arbítrio, assim como uma infinidade de outros intelectuais. No campo da filosofia, a saber, se existiram filósofos deterministas como Espinosa, outros nomes como Descartes, Kant e Hegel defendiam a liberdade como uma possibilidade.5

As discussões sobre o livre-arbítrio remontam a debates filosóficos milenares e atualmente se encontram no escopo da filosofia da mente. Na verdade, a ciência ainda não alcançou o estágio de conseguir explicar como a consciência existe – ou seja, como a matéria (cérebro) consegue gerar consciência. Quais elementos químicos compõem a mente e a consciência? Não sabemos e muito menos temos propriedade técnica ou intelectual para dizer. Vemos que não há consenso e sequer um entendimento razoável sobre o assunto. Então, como poderemos dizer algo de forma definitiva sobre fenômenos correlatos à mente como o livre-arbítrio?6

Infelizmente, debates públicos ou científicos nem sempre são encabeçados com cuidado. O efeito Dunning-Kruger explica que indivíduos com meias verdades/informações podem sentir que possuem uma compreensão do todo. Não que seja o caso de Sapolsky, ele até apresenta boas razões para pensar que somos determinados. Mas, de fato, há campos na ciência que beiram mais à incerteza…

Com a física quântica, por exemplo, o que entendíamos sobre o comportamento e a natureza da matéria se tornou insuficiente, o que levou a ciência a buscar novos modelos explicativos da realidade (vide os escritos de Werner Heisenberg).7 Em direção semelhante, Roger Penrose, matemático laureado com o Prêmio Nobel, chegou a dizer que elementos da nossa realidade não funcionam de acordo com nenhuma teoria física atual.

De certa forma, voltamos ao numênico e ao fenomênico. Não é à toa que, dando razão a Kant, Heisenberg chega a afirmar que nos “resta acrescentar que a ciência da natureza não lida com a própria natureza, mas de fato com a ciência da natureza, tal como o homem a considera e descreve”.8

O que eu quero dizer com isso é que a consciência e o arbítrio (livre ou influenciado) são fenômenos da natureza que o atual estágio da ciência não consegue explicar, mas nem por isso devem ser excluídos do nosso quadro de compreensão da realidade como inexistentes. Segundo Noam Chomsky, “seria absurdo duvidar de algo que compreendemos intimamente e experimentamos dentro de nós mesmos, meramente porque é por sua natureza incompreensível para nós. Conceitos de determinação e aleatoriedade estão dentro de nossa compreensão intelectual. Mas pode acontecer que as decisões humanas não possam ser acomodadas nesses termos, incluindo o aspecto criativo da linguagem e do pensamento”.

É no mínimo curioso que o establishment confira atributos humanos à inteligência artificial — como a consciência, a capacidade de entendimento e de tomar decisões —, enquanto subtrai esses aspectos da natureza humana, uma vez que somos vistos como autômatos determinados pela soma de forças externas e internas.  No novo quadro de entendimento que andam pintando da realidade, a máquina vira gente e a gente vira máquina.9

 

Fonte: Por Gabriel Dantas Romano, em A Terra é Redonda 

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