Como
vítimas de abuso infantil lidam com a parentalidade?
"Experiências traumáticas podem ser transmitidas
para a próxima geração, mas não é inevitável", diz autora de relatório
sobre abuso sexual infantil na Alemanha a favor de políticas públicas para
sobreviventes.
"Muitas sobreviventes
realmente se preocupam se terão ou não filhos, porque têm muito medo: E se isso
acontecer com meus filhos também? E se eu não conseguir proteger meus filhos o
suficiente?", diz Ava Anna Johannson, uma das sobreviventes envolvidas num
estudo divulgado na primeira semana de março pela Comissão Independente para
Investigação de Abuso Sexual Infantil da Alemanha.
Johannson cresceu perto de
Bremen, no norte do país, tendo sofrido abuso sexual pelo avô e por outros
membros da família desde os três anos de idade. Depois de uma juventude
difícil, com passagens por clínicas psiquiátricas, terminou a escola, foi para
a universidade, casou-se e teve filhos.
A experiência de dar à luz
seu primeiro filho fez voltar à tona o trauma do abuso passado.
"Fiquei totalmente chocada", relata. "Tive uma sensação muito
forte de estar sendo tratada como um objeto, de que aquilo não dizia respeito a mim
e a minhas necessidades, de que estavam falando de mim, não comigo."
·
Falta conscientização sobre trauma nos meios
médicos
Johannson revela que viveu
no parto o mesmo sentimento de impotência de quando era abusada na infância.
Ela relata ter sido submetida a uma episiotomia – corte do períneo para
ampliar o canal do parto – sem seu consentimento.
"Fui cortada para
forçar a saída do bebê sem sequer ser avisada. Acho que há um forte paralelo
com o abuso. Seu papel é só ficar feliz por o bebê estar saudável e se
derreter de alegria por ele."
As autoras do estudo
avaliaram mais de 600 sobreviventes de abuso sexual na infância e na
adolescência, entre 20 e 70 anos de idade, sendo 84% mulheres. Elas
escrevem que a violência e o desrespeito durante o parto são um problema social
recorrente, de saúde e de política para as mulheres. Treinamento direcionado e
sensível a traumas, e estabelecimento de serviços abrangentes de apoio
profissional são imprescindíveis para enfrentar o problema, reivindicam.
·
Mais redes de apoio para as sobreviventes
Do estudo consta uma série
de recomendações para formuladores de políticas públicas e profissionais de saúde, como parteiras, na esperança de que as
sobreviventes possam receber um apoio cuidadoso no planejamento familiar e na
vida cotidiana como mães. Isso inclui suporte especializado para crianças em
jardins de infância e escolas.
"As experiências
traumáticas podem ser transmitidas para a próxima geração, mas isso não é
inevitável. O perigo não está no fato de os pais terem sofrido violência, mas
sim de eles não receberem apoio suficiente e serem deixados
sozinhos", afirma a socióloga Barbara Kavemann, uma das autoras do estudo.
Outra questão levantada
pelos participantes do estudo, especialmente os homens, foi o medo de se
tornarem agressores – o que não apenas os impede de ter filhos, mas também de
buscar o apoio tão necessário. "Eles têm medo de pedir apoio de aconselhamento,
assistência social para jovens e outras agências, pois podem ser estigmatizados
como vítimas de violência e escutar que não podem cuidar de seus filhos",
explica Kavemann.
A maioria dos casos de abuso
sexual contra crianças ocorre dentro da família, e quase um quarto dos pais
pesquisados relatou a dificuldade de evitar que seus filhos tenham contato com
o agressor. Uma das recomendações é que sejam criadas redes de apoio melhores
para quem perdeu o apoio familiar, seja porque terem se isolado,
ou por se distanciaram ativamente devido ao fato de a família não querer romper
laços com o agressor.
"Os grupos de autoajuda
também desempenham um papel muito importante", explica Kavemann,
acrescentando que a equipe dos centros de planejamento familiar e
aconselhamento não sabe "praticamente nada" sobre o assunto.
Também é importante que os
pais expliquem aos filhos, quando atingirem a idade apropriada, o que aconteceu
no passado, e que sejam capazes de responder a perguntas. Isso ajuda a aliviar
o fardo tanto dos pais quanto dos filhos, de acordo com Kavemann: "As
crianças podem lidar com essas coisas, desde que saibam e vejam que elas e seus
pais têm o direito de receber apoio e, acima de tudo, que a culpa não é delas.
Isso é muito importante."
Johansson concorda que muita
coisa mudou para ela quando finalmente pôde conversar com seus filhos sobre o
que havia acontecido quando ela era criança. "Começou quando eu lhes disse
que estava me sentindo bem, que havia um motivo para isso e que eu estava
procurando apoio. Isso sempre foi o mais importante para mim, que meus filhos
não precisassem se preocupar comigo, que não se sentissem culpados e que eu
recebesse ajuda."
·
Reconhecimento
Estabelecida em 2016 pelo
Bundestag (câmara baixa do parlamento alemão), a Comissão Independente de
Investigação sobre Abuso Sexual Infantil vem investigando a extensão, natureza
e consequências da violência sexual contra crianças e jovens na República
Federal da Alemanha (RFA) e na antiga República Democrática Alemã (RDA), a "Alemanha
Oriental". A comissão realiza entrevistas e publica relatórios com
recomendações para prevenção e para fornecer aos sobreviventes o devido
reconhecimento.
Não há informações precisas
sobre a dimensão do problema na
Alemanha devido à falta de dados. O país levou por isso uma advertência da
Organização Mundial da Saúde (OMS), que pediu mais transparência sobre o
assunto. As estatísticas mais recentes do Departamento Federal de Investigações
(BKA) demonstram que diariamente 54 crianças e adolescentes são vítimas de
abuso sexual no país.
Kavemann considera que um
grande problema é a pouca atenção dada ao abuso sexual infantil dentro das
famílias, em comparação com os casos que ocorrem em instituições como a Igreja
Católica.
Uma das ideias discutidas no
relatório é a criação de um memorial em reconhecimento às vítimas de abuso
sexual infantil que decidem não ter filhos em decorrência de suas experiências,
ou que não podem tê-los devido aos danos físicos causados por seus abusadores.
Johannson apoia a ideia.
"Tive um começo de vida difícil, mas tirei o melhor disso, e acho que
fiz um bom trabalho ao criar meus filhos. Simplesmente não há onde eu possa ir
para obter algum tipo de reconhecimento oficial pelo que aconteceu comigo, ou
obter qualquer tipo de compensação. É um remédio amargo de engolir."
Fonte: DW Brasil
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