terça-feira, 11 de março de 2025

Como vítimas de abuso infantil lidam com a parentalidade?

"Experiências traumáticas podem ser transmitidas para a próxima geração, mas não é inevitável", diz autora de relatório sobre abuso sexual infantil na Alemanha a favor de políticas públicas para sobreviventes.

"Muitas sobreviventes realmente se preocupam se terão ou não filhos, porque têm muito medo: E se isso acontecer com meus filhos também? E se eu não conseguir proteger meus filhos o suficiente?", diz Ava Anna Johannson, uma das sobreviventes envolvidas num estudo divulgado na primeira semana de março pela Comissão Independente para Investigação de Abuso Sexual Infantil da Alemanha.

Johannson cresceu perto de Bremen, no norte do país, tendo sofrido abuso sexual pelo avô e por outros membros da família desde os três anos de idade. Depois de uma juventude difícil, com passagens por clínicas psiquiátricas, terminou a escola, foi para a universidade, casou-se e teve filhos.

A experiência de dar à luz seu primeiro filho fez voltar à tona o trauma do abuso passado. "Fiquei totalmente chocada", relata. "Tive uma sensação muito forte de estar sendo tratada como um objeto, de que aquilo não dizia respeito a mim e a minhas necessidades, de que estavam falando de mim, não comigo."

·        Falta conscientização sobre trauma nos meios médicos

Johannson revela que viveu no parto o mesmo sentimento de impotência de quando era abusada na infância. Ela relata ter sido submetida a uma episiotomia – corte do períneo para ampliar o canal do parto – sem seu consentimento.

"Fui cortada para forçar a saída do bebê sem sequer ser avisada. Acho que há um forte paralelo com o abuso. Seu papel é só ficar feliz por o bebê estar saudável e se derreter de alegria por ele."

As autoras do estudo avaliaram mais de 600 sobreviventes de abuso sexual na infância e na adolescência, entre 20 e 70 anos de idade, sendo 84% mulheres. Elas escrevem que a violência e o desrespeito durante o parto são um problema social recorrente, de saúde e de política para as mulheres. Treinamento direcionado e sensível a traumas, e estabelecimento de serviços abrangentes de apoio profissional são imprescindíveis para enfrentar o problema, reivindicam. 

·        Mais redes de apoio para as sobreviventes

Do estudo consta uma série de recomendações para formuladores de políticas públicas e profissionais de saúde, como parteiras, na esperança de que as sobreviventes possam receber um apoio cuidadoso no planejamento familiar e na vida cotidiana como mães. Isso inclui suporte especializado para crianças em jardins de infância e escolas.

"As experiências traumáticas podem ser transmitidas para a próxima geração, mas isso não é inevitável. O perigo não está no fato de os pais terem sofrido violência, mas sim de eles não receberem apoio suficiente e serem deixados sozinhos", afirma a socióloga Barbara Kavemann, uma das autoras do estudo.

Outra questão levantada pelos participantes do estudo, especialmente os homens, foi o medo de se tornarem agressores – o que não apenas os impede de ter filhos, mas também de buscar o apoio tão necessário. "Eles têm medo de pedir apoio de aconselhamento, assistência social para jovens e outras agências, pois podem ser estigmatizados como vítimas de violência e escutar que não podem cuidar de seus filhos", explica Kavemann.

A maioria dos casos de abuso sexual contra crianças ocorre dentro da família, e quase um quarto dos pais pesquisados relatou a dificuldade de evitar que seus filhos tenham contato com o agressor. Uma das recomendações é que sejam criadas redes de apoio melhores para quem perdeu o apoio familiar, seja porque terem se isolado, ou por se distanciaram ativamente devido ao fato de a família não querer romper laços com o agressor.

"Os grupos de autoajuda também desempenham um papel muito importante", explica Kavemann, acrescentando que a equipe dos centros de planejamento familiar e aconselhamento não sabe "praticamente nada" sobre o assunto.

Também é importante que os pais expliquem aos filhos, quando atingirem a idade apropriada, o que aconteceu no passado, e que sejam capazes de responder a perguntas. Isso ajuda a aliviar o fardo tanto dos pais quanto dos filhos, de acordo com Kavemann: "As crianças podem lidar com essas coisas, desde que saibam e vejam que elas e seus pais têm o direito de receber apoio e, acima de tudo, que a culpa não é delas. Isso é muito importante."

Johansson concorda que muita coisa mudou para ela quando finalmente pôde conversar com seus filhos sobre o que havia acontecido quando ela era criança. "Começou quando eu lhes disse que estava me sentindo bem, que havia um motivo para isso e que eu estava procurando apoio. Isso sempre foi o mais importante para mim, que meus filhos não precisassem se preocupar comigo, que não se sentissem culpados e que eu recebesse ajuda."

·        Reconhecimento

Estabelecida em 2016 pelo Bundestag (câmara baixa do parlamento alemão), a Comissão Independente de Investigação sobre Abuso Sexual Infantil vem investigando a extensão, natureza e consequências da violência sexual contra crianças e jovens na República Federal da Alemanha (RFA) e na antiga República Democrática Alemã (RDA), a "Alemanha Oriental". A comissão realiza entrevistas e publica relatórios com recomendações para prevenção e para fornecer aos sobreviventes o devido reconhecimento.

Não há informações precisas sobre a dimensão do problema na Alemanha devido à falta de dados. O país levou por isso uma advertência da Organização Mundial da Saúde (OMS), que pediu mais transparência sobre o assunto. As estatísticas mais recentes do Departamento Federal de Investigações (BKA) demonstram que diariamente 54 crianças e adolescentes são vítimas de abuso sexual no país.

Kavemann considera que um grande problema é a pouca atenção dada ao abuso sexual infantil dentro das famílias, em comparação com os casos que ocorrem em instituições como a Igreja Católica.

Uma das ideias discutidas no relatório é a criação de um memorial em reconhecimento às vítimas de abuso sexual infantil que decidem não ter filhos em decorrência de suas experiências, ou que não podem tê-los devido aos danos físicos causados por seus abusadores.

Johannson apoia a ideia. "Tive um começo de vida difícil, mas tirei o melhor disso, e acho que fiz um bom trabalho ao criar meus filhos. Simplesmente não há onde eu possa ir para obter algum tipo de reconhecimento oficial pelo que aconteceu comigo, ou obter qualquer tipo de compensação. É um remédio amargo de engolir."

 

Fonte: DW Brasil

 

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