terça-feira, 11 de março de 2025

A família Paiva… e outras famílias?

Como o tema é delicado, começo demarcando bem estritamente a vereda por onde pretendo andar. Comemorei bastante a vitória do filme Ainda Estou Aqui na premiação do Oscar 2025, assim como milhões de brasileiros, às vezes por motivos os mais díspares, nem sempre os melhores ou os mais sinceros.

A família de Rubens e Eunice Paiva sentiu na pele a mão pesada da repressão – que a minha família não sentiu, digo de antemão –, o que por si só deve despertar nossos mais honestos sentimentos de pesar e solidariedade pela dor de todos, além dos aplausos pela coragem de Eunice Paiva em resistir e seguir com destemor sua trajetória.

O filme traz toda essa dimensão humana, que o torna uma obra digna de todos os louvores. Ademais, Marcelo Rubens Paiva já tinha abordado essa dura questão em Feliz Ano Velho, no começo dos anos 1980, no contexto dos enfrentamentos pela redemocratização. Sua família manteve a altivez diante do terror. Tudo isso deve ser reconhecido e valorizado.

Algumas vozes tentaram desqualificar o diretor Walter Salles, com insinuações pouco fundadas acerca da eventual participação de seu pai, Walter Moreira Salles, no apoio ao golpe de 1964. Isso não condiz exatamente com a realidade (já demonstrado por Luís Nassif sobre o tema), o que, ademais, não excetua o Unibanco de ter prosperado durante o regime, assim como o capital financeiro que deu suporte ao golpe e à ditadura. Mas temos de separar os alhos e bugalhos e tentar ser precisos com a conta a ser cobrada de cada um.

Por outro lado, as falas de Walter Salles têm sido bastante explícitas no repúdio à ditadura e ele mesmo explicou em entrevista como não encontrou o papel do discurso no nervosismo da premiação – certamente muitos de nós ficaríamos atarantados numa situação daquelas –, bem como disse, ainda mais explicitamente, que a eleição de Lula em 2022 tornou possível a realização do filme. É uma posição íntegra e honesta a ser respeitada.

Há, ainda, um ponto relativamente discreto sobre o qual não vi destaque (e sobre o qual me penitencio de antemão caso fuja ao tema ou alguém tenha notado anteriormente), mas que talvez tenha sido intenção do autor, lidar com o  mal de Alzheimer, que acometeu a sua mãe em idade mais avançada, que ficou marcado com força no olhar vago e meio vidrado de Fernanda Montenegro, bem como no sutil flash de memória quando ela ouve uma notícia acerca do marido na televisão e se acende uma chama de consciência que diz: “eu ainda estou aqui”. Eunice ainda estava lá, a história de Rubens também.

Resumindo a primeira parte: estou muito feliz com a premiação, o reconhecimento da brilhante atuação de Fernanda Torres, Selton Mello e demais componentes do elenco, a seleção musical que traz toda a dimensão mais estritamente artística que enaltece a arte brasileira, tão vilipendiada em tempos recentes pelo obscurantismo nefando, que não precisa ser pronunciado, para não emporcalhar essas poucas linhas. Na atual “batalha das narrativas”, não deixa de ser um ponto importante o que o filme pode trazer em termos de rediscutir o terrível legado da ditadura.

Mas há um sutil ponto a ser atentado, até para dar uma dimensão maior e mais transcendente ao que o filme trata. Parte da grande mídia parece circunscrever a narrativa do filme a uma história que se abateu exclusivamente sobre uma família brasileira – o que é uma tétrica verdade –, mas parece passar ao largo do calvário de centenas de outras famílias – e por que não milhares? – que também padeceram sob o látego da repressão. Como se tratasse de uma “operação de assepsia” que buscasse resumir a ditadura a um capricho autoritário de homens da caserna, que por algum motivo metafísico tivessem um horror à liberdade.

Se quisermos adensar um pouco a questão, temos de nos perguntar mais precisamente: por que Rubens Paiva foi morto e seu corpo desaparecido? E, além dele, por que tantos outros brasileiros tiveram suas vidas ceifadas pelo brutal regime?

É indispensável, em primeiro momento, levar em consideração que Paiva havia sido um atuante deputado federal do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), e que em sua atividade defendeu um projeto para o país bem diferente do que prevaleceu em 1964, um projeto que tinha o escopo de um desenvolvimento mais autônomo, dentro do âmbito das Reformas de Base de João Goulart. Esse projeto – e outros de transformação social do país – foi derrotado e reprimido pelos golpistas.

Junto com a perseguição e morte de Paiva não podemos deixar de associar os assassinatos de gente dos mais diversos lugares do país e das mais diversas classes sociais, como Nego Fuba e Pedro Fazendeiro, militantes das Ligas Camponesas na Paraíba; ou a estudante paulista Helenira Resende, morta na guerrilha do Araguaia; ou, ainda, uma série de militares, estudantes, sindicalistas, jornalistas e outros, que em circunstâncias diferentes e mediante formas diversas de resistência tentaram se opor à ditadura. Se somarmos a eles as centenas ou milhares de jovens periféricos mortos por grupos de extermínio que vicejaram sob o coturno da ditadura, grupos sexualmente discriminados e reprimidos muitas vezes com violência inaudita, ou, ainda, indígenas e camponeses massacrados em rincões distantes das vistas do mundo urbano, temos uma teia repressiva bem mais ampla e complexa a tratar.

Se avançarmos um pouco mais, o que dizer das mais de 30 pessoas mortas no Parque Sólon de Lucena – Lagoa, em João Pessoa, diante das vistas de milhares de pessoas, por absoluta irresponsabilidade das autoridades que festejavam o Dia do Soldado em 1975, num acidente que, se não fez parte direta da repressão, recebeu o devido acobertamento promovido pelo autoritarismo? E as centenas ou milhares de pessoas que se não foram mortas, tiveram suas carreiras profissionais destruídas e suas vidas dilaceradas pela escalada da repressão? Cada uma dessas pessoas e suas famílias são vítimas. Não podemos esquecer.

Também não podemos esquecer que há gente – e não pouca – que ganhou com a ditadura. Ganhou horrores com a corrupção generalizada e todo o tipo de negociata que se acobertava sob a capa da austeridade do regime e que Chico Buarque, num de seus muitos rasgos de genialidade chamou de “estranhas catedrais” e que o historiador Pedro Henrique Pedreira Campos estudou de forma precisa, explicando que além de uma “cultura autoritária” escondiam-se negócios pesados, cujo autoritarismo serviu exatamente para mascarar e viabilizar. Coroa-Brastel, Capemi, Escândalo da Mandioca, Caso Delfin, superfaturamentos, tráfico de influências e outros termos de busca são partes desse glossário os quais a ditadura “empresarial-militar” urdiu ou com os quais conviveu na “santa paz”.

Assim, os motivos da terrível morte de Rubens Paiva ganham um contexto mais tenebroso e as motivações de sua luta tornam-se ainda mais dignas de reverência. Assim, a decisão de Eunice Paiva de dedicar-se à luta em defesa dos povos indígenas – além do desafio da manutenção de sua família – ganha ainda mais relevo e motivações para o reconhecimento de toda a nação.

Em vez de tentar apequenar a história da família Paiva, tratada com grande sensibilidade no filme, a um episódio restrito ao núcleo familiar – como alguns veículos da grande mídia têm feito não sem motivações muito perceptíveis por quem conhece um pouco o que se escondeu por baixo da ditadura – é importante atentarmos que a morte de Paiva foi um terrível capítulo de um grande enredo promovido em nosso país, para garantir a manutenção de uma sociedade extremamente excludente, profundamente racista, violenta quando se trata de defender os privilégios de quem vem ganhando sem dividir, geração após geração.

Isso engrandece a luta de Rubens Paiva, que mesmo oriundo de uma família abastada, não se curvou aos interesses mesquinhos aos quais poderia aderir e manteve uma posição solidária às melhores lutas do nosso povo. Engrandece a luta de Eunice Paiva pelos direitos dos povos indígenas, aos quais dedicou sua solidariedade e militância em prol de uma das populações mais reprimidas pela ditadura e seus comparsas.

Enfim, é necessário não esquecer que o autoritarismo não aconteceu no vácuo. Ele servia a alguém ou a grupos que fingem nada ter a ver com aquele terror. Não serviu à família Paiva e nem a milhares de famílias vitimadas pela repressão. Isso só nos faz aumentar a satisfação pela vitória do filme e entender que essa triste história dos Paiva e de outras famílias abatidas pela ditadura só terá efetiva redenção quando a justiça for feita no presente, quando o Brasil efetivamente der um salto civilizatório e deixar de ser um dos campeões mundiais da iniquidade social e do cortejo de violência que a acompanha. Isso engradece a luta de Rubens e Eunice e congraça tantas outras famílias à família Paiva. E essa luta continua.

 

¨      Eugenio Bucci: “Nenhum país deveria depender do Oscar para conhecer seus direitos e amar sua democracia”

É claro que eu vi a cerimônia do Oscar. Noite de domingo, carnaval longínquo e eu no sofá, de frente para a televisão. É claro que me entediei com a torrente de breguices, mas nem foram tantas. É claro que explodi em vibração futebolística quando Ainda estou aqui, de Walter Salles, ganhou como melhor filme internacional. É claro que desliguei de raiva quando não deram o prêmio de melhor atriz para Fernanda Torres. Achei aquilo uma ignomínia, mesmo sem nunca ter visto o filme da outra lá que foi chamada ao palco. Nem sei o nome. É claro que liguei de novo a TV. Ainda peguei a moça agradecendo. É claro que não gostei.

O que não é claro é o resto. Vale um artigo. Walter Salles não se engalanou com um smoking. Preferiu um terno preto sumário. Fina estampa sem cores. Na segunda-feira, seu sorriso tropical encimado pelos olhos apertados carimbou a capa dos jornais. Aplaudi outra vez. Ele merece as mais altas condecorações da República. É um herói da cultura.

A começar da literatura. Seu filme deu impulso mundial para o livro de Marcelo Rubens Paiva, uma obra costurada em letras leves e memórias lancinantes, mesmo quando hilárias. É impagável a passagem em que o escritor retrata a mãe, Eunice, despejando às escondidas uísque nacional dentro de garrafas de puro malte escocês. Impagável e pungente.

A gente lê com prazer e pesar. A gente sorri. Depois do desaparecimento forçado do marido, a família Paiva empobreceu, mas a dona da casa não vacilou. Para manter para o astral da casa, oferecia aos amigos bebida suspeita, sim, mas dentro de uma imagem de fausto importado. Ela perdeu a renda, não a pose.

A cena dos vasilhames não aparece no filme. Não faz falta. A Eunice que não se dobra está lá inteira, bela, viva e valente. A interpretação que lhe deu Fernanda Torres, essa artista mais do que genial, reacende a coragem que a repressão não derrubou e nos reconcilia com a história do Brasil que o Brasil quis esquecer. Ouço contar que o filme reverteu a inércia das burocracias estatais e arrancou lágrimas de uns tipos que não tinham a menor ideia do que tinha sido a ditadura militar. Ouço, acredito e, de novo, aplaudo.

O cinema, quando arte, toca a alma. Quando entretenimento, move multidões. Como Ainda estou aqui é arte e, queiramos ou não, é também entretenimento, mudou mentalidades que já tinham se petrificado nas paredes alienadas da pátria – as paredes que não têm ouvidos. A corrida do Oscar encheu as plateias de autoconfiança e as autoridades de excitação oportunista. Tanto melhor. Eunice virou nome de prêmio do governo federal.

Pistas do paradeiro do corpo de Rubens Paiva começam a sair da escuridão. Os torturadores impunes se inquietam. Vai sobrar para eles. Tomara. Um filme íntegro vale mais do que mil comícios demagógicos. Ainda estou aqui, sozinho, realizou o que tribunos e publicistas, juntos, não conseguiram.

Isso tudo é bom, mas perturba, é meio desestruturante. Nenhum país deveria depender do Oscar para conhecer seus direitos e amar sua democracia. Nenhum país, nem mesmo os Estados Unidos. Nenhum país, muito menos o Brasil. Mas é assim que é. Um longa-metragem, desses que o espectador pacato vai ver no final de semana, antes da pizza, ou mesmo depois, veio nos devolver um sentimento de nação, a lembrança dos direitos humanos e a sede de Justiça.

Somos um mundo integrado pelo mercado, em termos genéricos, e pelo entretenimento, em termos específicos. Isso quer dizer que o altar da diversão, ou seja, Hollywood, concentra o poder de pontificar sobre o que é legítimo e o que não passa de quimera. É comendo pipoca no escurinho que se aprende a distinguir o certo do errado, o cômico do trágico, o aceitável do abominável. A emoção que se compra na bilheteria é o critério da verdade.

Somos a civilização que acredita que tudo o que acontece só acontece para nos comover. Se nos comove, a coisa existe. Se não, que vá para o lixo. Somos consumidores insaciáveis da realidade, como se ela fosse um objeto estético, ou um saco de pipoca. A nossa política se anulou, rebaixada e pífia. A nossa religião se desencantou. O entretenimento as substituiu com desumanidade, mercadoria e técnica. Somos a civilização que se reconhece no entretenimento.

O melodrama de massa ocupou o lugar dos panfletos incendiários e das narrativas místicas. As igrejas se converteram em show de TV. Os autocratas, desde Hitler e Goebbels, querem controlar a indústria da diversão. Hollywood é a nova Meca, a nova Roma, a nova Delfos. A cerimônia do Oscar é o púlpito que define o antissemitismo (ou você não viu o discurso longuíssimo de Adrien Brody, vencedor da estatueta de melhor ator por O brutalista?), a solução de dois estados no mesmo pedaço de terra do Oriente Médio (com a palavra, Yuval Abraham, diretor de No other land,vitorioso na categoria de documentário) e os males da ditadura militar no Brasil (na voz de Walter Salles).

Fernanda Torres não ganhou, mas ela é a maior de todas. Nada é maior que Hollywood, nada é maior que o Oscar. Nada, só Fernanda Torres.

 

Fonte: Brasil de Fato/A Terra é Redonda

 

 

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