A família Paiva… e outras famílias?
Como o tema é delicado, começo demarcando bem estritamente a vereda por
onde pretendo andar. Comemorei bastante a vitória do filme Ainda Estou
Aqui na premiação do Oscar 2025, assim como milhões de brasileiros, às
vezes por motivos os mais díspares, nem sempre os melhores ou os mais sinceros.
A família de Rubens e Eunice Paiva sentiu na pele a mão pesada da
repressão – que a minha família não sentiu, digo de antemão –, o que por si só
deve despertar nossos mais honestos sentimentos de pesar e solidariedade pela
dor de todos, além dos aplausos pela coragem de Eunice Paiva em resistir e
seguir com destemor sua trajetória.
O filme traz toda essa dimensão humana, que o torna uma obra digna de
todos os louvores. Ademais, Marcelo Rubens Paiva já tinha abordado essa dura
questão em Feliz Ano Velho, no começo dos anos 1980, no contexto
dos enfrentamentos pela redemocratização. Sua família manteve a altivez diante
do terror. Tudo isso deve ser reconhecido e valorizado.
Algumas vozes tentaram desqualificar o diretor Walter Salles, com
insinuações pouco fundadas acerca da eventual participação de seu pai, Walter
Moreira Salles, no apoio ao golpe de 1964. Isso não condiz exatamente com a
realidade (já demonstrado por Luís Nassif sobre o tema), o que, ademais, não
excetua o Unibanco de ter prosperado durante o regime, assim como o capital
financeiro que deu suporte ao golpe e à ditadura. Mas temos de separar os alhos
e bugalhos e tentar ser precisos com a conta a ser cobrada de cada um.
Por outro lado, as falas de Walter Salles têm sido bastante explícitas
no repúdio à ditadura e ele mesmo explicou em entrevista como não encontrou o
papel do discurso no nervosismo da premiação – certamente muitos de nós
ficaríamos atarantados numa situação daquelas –, bem como disse, ainda mais
explicitamente, que a eleição de Lula em 2022 tornou possível a realização do
filme. É uma posição íntegra e honesta a ser respeitada.
Há, ainda, um ponto relativamente discreto sobre o qual não vi destaque
(e sobre o qual me penitencio de antemão caso fuja ao tema ou alguém tenha
notado anteriormente), mas que talvez tenha sido intenção do autor, lidar com o
mal de Alzheimer, que acometeu a sua mãe em idade mais avançada, que
ficou marcado com força no olhar vago e meio vidrado de Fernanda Montenegro,
bem como no sutil flash de memória quando ela ouve uma notícia acerca do marido
na televisão e se acende uma chama de consciência que diz: “eu ainda estou
aqui”. Eunice ainda estava lá, a história de Rubens também.
Resumindo a primeira parte: estou muito feliz com a premiação, o
reconhecimento da brilhante atuação de Fernanda Torres, Selton Mello e demais
componentes do elenco, a seleção musical que traz toda a dimensão mais
estritamente artística que enaltece a arte brasileira, tão vilipendiada em
tempos recentes pelo obscurantismo nefando, que não precisa ser pronunciado,
para não emporcalhar essas poucas linhas. Na atual “batalha das narrativas”,
não deixa de ser um ponto importante o que o filme pode trazer em termos de
rediscutir o terrível legado da ditadura.
Mas há um sutil ponto a ser atentado, até para dar uma dimensão maior e
mais transcendente ao que o filme trata. Parte da grande mídia parece
circunscrever a narrativa do filme a uma história que se abateu exclusivamente
sobre uma família brasileira – o que é uma tétrica verdade –, mas parece passar
ao largo do calvário de centenas de outras famílias – e por que não milhares? –
que também padeceram sob o látego da repressão. Como se tratasse de uma
“operação de assepsia” que buscasse resumir a ditadura a um capricho
autoritário de homens da caserna, que por algum motivo metafísico tivessem um
horror à liberdade.
Se quisermos adensar um pouco a questão, temos de nos perguntar mais
precisamente: por que Rubens Paiva foi morto e seu corpo desaparecido? E, além
dele, por que tantos outros brasileiros tiveram suas vidas ceifadas pelo brutal
regime?
É indispensável, em primeiro momento, levar em consideração que Paiva
havia sido um atuante deputado federal do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB),
e que em sua atividade defendeu um projeto para o país bem diferente do que
prevaleceu em 1964, um projeto que tinha o escopo de um desenvolvimento mais
autônomo, dentro do âmbito das Reformas de Base de João Goulart. Esse projeto –
e outros de transformação social do país – foi derrotado e reprimido pelos
golpistas.
Junto com a perseguição e morte de Paiva não podemos deixar de associar
os assassinatos de gente dos mais diversos lugares do país e das mais diversas
classes sociais, como Nego Fuba e Pedro Fazendeiro, militantes das Ligas
Camponesas na Paraíba; ou a estudante paulista Helenira Resende, morta na
guerrilha do Araguaia; ou, ainda, uma série de militares, estudantes,
sindicalistas, jornalistas e outros, que em circunstâncias diferentes e
mediante formas diversas de resistência tentaram se opor à ditadura. Se
somarmos a eles as centenas ou milhares de jovens periféricos mortos por grupos
de extermínio que vicejaram sob o coturno da ditadura, grupos sexualmente
discriminados e reprimidos muitas vezes com violência inaudita, ou, ainda,
indígenas e camponeses massacrados em rincões distantes das vistas do mundo
urbano, temos uma teia repressiva bem mais ampla e complexa a tratar.
Se avançarmos um pouco mais, o que dizer das mais de 30 pessoas mortas
no Parque Sólon de Lucena – Lagoa, em João Pessoa, diante das vistas de
milhares de pessoas, por absoluta irresponsabilidade das autoridades que
festejavam o Dia do Soldado em 1975, num acidente que, se não fez parte direta
da repressão, recebeu o devido acobertamento promovido pelo autoritarismo? E as
centenas ou milhares de pessoas que se não foram mortas, tiveram suas carreiras
profissionais destruídas e suas vidas dilaceradas pela escalada da repressão?
Cada uma dessas pessoas e suas famílias são vítimas. Não podemos esquecer.
Também não podemos esquecer que há gente – e não pouca – que ganhou com
a ditadura. Ganhou horrores com a corrupção generalizada e todo o tipo de
negociata que se acobertava sob a capa da austeridade do regime e que Chico
Buarque, num de seus muitos rasgos de genialidade chamou de “estranhas
catedrais” e que o historiador Pedro Henrique Pedreira Campos estudou de forma
precisa, explicando que além de uma “cultura autoritária” escondiam-se negócios
pesados, cujo autoritarismo serviu exatamente para mascarar e viabilizar.
Coroa-Brastel, Capemi, Escândalo da Mandioca, Caso Delfin, superfaturamentos,
tráfico de influências e outros termos de busca são partes desse glossário os
quais a ditadura “empresarial-militar” urdiu ou com os quais conviveu na “santa
paz”.
Assim, os motivos da terrível morte de Rubens Paiva ganham um contexto
mais tenebroso e as motivações de sua luta tornam-se ainda mais dignas de
reverência. Assim, a decisão de Eunice Paiva de dedicar-se à luta em defesa dos
povos indígenas – além do desafio da manutenção de sua família – ganha ainda
mais relevo e motivações para o reconhecimento de toda a nação.
Em vez de tentar apequenar a história da família Paiva, tratada com
grande sensibilidade no filme, a um episódio restrito ao núcleo familiar – como
alguns veículos da grande mídia têm feito não sem motivações muito perceptíveis
por quem conhece um pouco o que se escondeu por baixo da ditadura – é
importante atentarmos que a morte de Paiva foi um terrível capítulo de um
grande enredo promovido em nosso país, para garantir a manutenção de uma
sociedade extremamente excludente, profundamente racista, violenta quando se
trata de defender os privilégios de quem vem ganhando sem dividir, geração após
geração.
Isso engrandece a luta de Rubens Paiva, que mesmo oriundo de uma família
abastada, não se curvou aos interesses mesquinhos aos quais poderia aderir e
manteve uma posição solidária às melhores lutas do nosso povo. Engrandece a
luta de Eunice Paiva pelos direitos dos povos indígenas, aos quais dedicou sua
solidariedade e militância em prol de uma das populações mais reprimidas pela
ditadura e seus comparsas.
Enfim, é necessário não esquecer que o autoritarismo não aconteceu no
vácuo. Ele servia a alguém ou a grupos que fingem nada ter a ver com aquele
terror. Não serviu à família Paiva e nem a milhares de famílias vitimadas pela
repressão. Isso só nos faz aumentar a satisfação pela vitória do filme e
entender que essa triste história dos Paiva e de outras famílias abatidas pela
ditadura só terá efetiva redenção quando a justiça for feita no presente,
quando o Brasil efetivamente der um salto civilizatório e deixar de ser um dos
campeões mundiais da iniquidade social e do cortejo de violência que a
acompanha. Isso engradece a luta de Rubens e Eunice e congraça tantas outras
famílias à família Paiva. E essa luta continua.
¨ Eugenio Bucci: “Nenhum país deveria depender
do Oscar para conhecer seus direitos e amar sua democracia”
É claro que eu vi a cerimônia do Oscar. Noite de domingo, carnaval
longínquo e eu no sofá, de frente para a televisão. É claro que me entediei com
a torrente de breguices, mas nem foram tantas. É claro que explodi em vibração
futebolística quando Ainda estou aqui, de Walter Salles, ganhou
como melhor filme internacional. É claro que desliguei de raiva quando não
deram o prêmio de melhor atriz para Fernanda Torres. Achei aquilo uma ignomínia,
mesmo sem nunca ter visto o filme da outra lá que foi chamada ao palco. Nem sei
o nome. É claro que liguei de novo a TV. Ainda peguei a moça agradecendo. É
claro que não gostei.
O que não é claro é o resto. Vale um artigo. Walter Salles não se
engalanou com um smoking. Preferiu um terno preto sumário. Fina
estampa sem cores. Na segunda-feira, seu sorriso tropical encimado pelos olhos
apertados carimbou a capa dos jornais. Aplaudi outra vez. Ele merece as mais
altas condecorações da República. É um herói da cultura.
A começar da literatura. Seu filme deu impulso mundial para o livro de
Marcelo Rubens Paiva, uma obra costurada em letras leves e memórias
lancinantes, mesmo quando hilárias. É impagável a passagem em que o escritor
retrata a mãe, Eunice, despejando às escondidas uísque nacional dentro de
garrafas de puro malte escocês. Impagável e pungente.
A gente lê com prazer e pesar. A gente sorri. Depois do desaparecimento
forçado do marido, a família Paiva empobreceu, mas a dona da casa não vacilou.
Para manter para o astral da casa, oferecia aos amigos bebida suspeita, sim,
mas dentro de uma imagem de fausto importado. Ela perdeu a renda, não a pose.
A cena dos vasilhames não aparece no filme. Não faz falta. A Eunice que
não se dobra está lá inteira, bela, viva e valente. A interpretação que lhe deu
Fernanda Torres, essa artista mais do que genial, reacende a coragem que a
repressão não derrubou e nos reconcilia com a história do Brasil que o Brasil
quis esquecer. Ouço contar que o filme reverteu a inércia das burocracias
estatais e arrancou lágrimas de uns tipos que não tinham a menor ideia do que
tinha sido a ditadura militar. Ouço, acredito e, de novo, aplaudo.
O cinema, quando arte, toca a alma. Quando entretenimento, move
multidões. Como Ainda estou aqui é arte e, queiramos ou não, é
também entretenimento, mudou mentalidades que já tinham se petrificado nas
paredes alienadas da pátria – as paredes que não têm ouvidos. A corrida do
Oscar encheu as plateias de autoconfiança e as autoridades de excitação oportunista.
Tanto melhor. Eunice virou nome de prêmio do governo federal.
Pistas do paradeiro do corpo de Rubens Paiva começam a sair da
escuridão. Os torturadores impunes se inquietam. Vai sobrar para eles. Tomara.
Um filme íntegro vale mais do que mil comícios demagógicos. Ainda estou
aqui, sozinho, realizou o que tribunos e publicistas, juntos, não
conseguiram.
Isso tudo é bom, mas perturba, é meio desestruturante. Nenhum país
deveria depender do Oscar para conhecer seus direitos e amar sua democracia. Nenhum
país, nem mesmo os Estados Unidos. Nenhum país, muito menos o Brasil. Mas é
assim que é. Um longa-metragem, desses que o espectador pacato vai ver no final
de semana, antes da pizza, ou mesmo depois, veio nos devolver um sentimento de
nação, a lembrança dos direitos humanos e a sede de Justiça.
Somos um mundo integrado pelo mercado, em termos genéricos, e pelo
entretenimento, em termos específicos. Isso quer dizer que o altar da diversão,
ou seja, Hollywood, concentra o poder de pontificar sobre o que é legítimo e o
que não passa de quimera. É comendo pipoca no escurinho que se aprende a
distinguir o certo do errado, o cômico do trágico, o aceitável do abominável. A
emoção que se compra na bilheteria é o critério da verdade.
Somos a civilização que acredita que tudo o que acontece só acontece
para nos comover. Se nos comove, a coisa existe. Se não, que vá para o lixo.
Somos consumidores insaciáveis da realidade, como se ela fosse um objeto
estético, ou um saco de pipoca. A nossa política se anulou, rebaixada e pífia.
A nossa religião se desencantou. O entretenimento as substituiu com
desumanidade, mercadoria e técnica. Somos a civilização que se reconhece no
entretenimento.
O melodrama de massa ocupou o lugar dos panfletos incendiários e das
narrativas místicas. As igrejas se converteram em show de TV. Os autocratas,
desde Hitler e Goebbels, querem controlar a indústria da diversão. Hollywood é
a nova Meca, a nova Roma, a nova Delfos. A cerimônia do Oscar é o púlpito que
define o antissemitismo (ou você não viu o discurso longuíssimo de Adrien
Brody, vencedor da estatueta de melhor ator por O brutalista?), a
solução de dois estados no mesmo pedaço de terra do Oriente Médio (com a
palavra, Yuval Abraham, diretor de No other land,vitorioso na
categoria de documentário) e os males da ditadura militar no Brasil (na voz de
Walter Salles).
Fernanda Torres não ganhou, mas ela é a maior de todas. Nada é maior que
Hollywood, nada é maior que o Oscar. Nada, só Fernanda Torres.
Fonte: Brasil de
Fato/A Terra é Redonda
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