A verdadeira
face imperial yanque
O nacionalismo depende de mitologias para poder
existir. No caso dos EUA, seu mito fundador sempre foi o do seu
excepcionalismo. Seriam eles a nação fundada no sonho da busca da liberdade e,
posteriormente, da democracia; um país tão excepcional que, a fim de poder se
preservar, obrigaria seus governantes à promoção do seu modelo ao redor do
mundo.
E assim, embora uma das teses fundamentais da
política externa norte-americana seja o discurso de despedida de George
Washington onde urge seus seguidores a se manterem distantes dos problemas do
mundo, ao longo dos anos, os EUA assumiriam, de forma gradual, mas consistente,
um projeto expansionista e interventor ao redor do mundo.
Se na sua expansão inicial ao longo do continente
americano, os EUA se valeriam da lógica missionária do Destino Manifesto, de
uma maneira geral, diferentemente das potências neocoloniais europeias do final
do século XIX, onde uma superioridade cultural (ou civilizatória, no linguajar
da época) era presumida, o imperialismo ianque para além da
América do Norte, apresentava uma lógica mais descentralizada e um viés mais
mercantil.
É evidente que em ambos os casos, as teses
eugênicas sobre a superioridade racial branca foram também fundamentais. A
expansão dos EUA, em primeiro lugar no Caribe e América Central, em seguida no
resto do hemisfério, e depois, por todo o globo, tendia, contudo, a ocorrer
mais por meios de empresários econômicos e religiosos (pastores e
missionários), cuja presença, posteriormente, requereria que o poderoso estado
norte-americano viesse em sua defesa, de forma mais ou menos explícita.
Seria, assim, que, na medida que o país se
consolidava como grande potência industrial, a autoproclamada “terra da
liberdade” viria a constituir para si arranjos imperiais informais, seja na
forma de protetorados ou no controle alfandegário da Diplomacia do Dólar por
quase todo o Caribe e América Central nas primeiras décadas do século XX. Claro
que por vezes o envolvimento direto da coordenação estatal seria mais evidente,
como seria o caso de Porto Rico, Filipinas e Panamá.
Mas, em geral, o foco era o de apoio às atividades
internacionais de suas empresas, algo que, muitas vezes requeria o desembarque
dos Marines, mas sem que a bandeira listrada e estrelada (Star Spangled
Banner) viesse a substituir de vez símbolos nacionais locais.
Ao assumir a posição de maior potência militar e
econômica global, no imediato pós-Segunda Guerra, o imperialismo
norte-americano – envergonhado até então e sempre camuflado na tese de que,
diferentemente do imperialismo europeu, as intervenções gringas eram sempre
transitórias e bem-intencionadas – desenvolveria novas formas, mais sofisticadas
e complexas, de exercer sua hegemonia global. Indo além do que antes tinha
proposto, mas não implementado, com a Liga das Nações, os EUA constituiriam uma
nova forma de coordenar suas ações ao redor do mundo por meio de arranjos, em
tese universais e igualitários – embora sempre desiguais e comprometidos pelas
dinâmicas da Guerra Fria – que garantiriam (ou, pelo menos, pretenderiam
garantir) que os desígnios do mundo, portanto relevantes a todos, necessitavam
da participação (ainda que não equânime) de todos estados nacionais assim
constituídos.
Mesmo que instrumento dos interesses
norte-americanos, em especial da lógica econômica do seu capitalismo liberal, o
que viria a ser conhecido como o Sistema ONU representava algo único,
construído nos escombros do maior conflito de todos os tempos, por permitir que
a noção da representação nacional com bases formalmente isonômicas se
expandisse por todos os cantos do planeta.
Seria, assim, que, ao longo dos anos 1960 e 1970,
atores do hoje chamado Sul Global conseguiria se articular de forma coordenada
a fim de promover teses não previamente vislumbradas pelos seus criadores,
como, por exemplo, a da cooperação para o desenvolvimento, transferência de
tecnologia, e mesmo da busca da promoção de uma nova ordem econômica global.
E ainda que tais demandas nunca tenham se
efetivado, o simples fato de que era possível que elas fossem incluídas na
agenda representava algo novo e potencialmente transformador. E é exatamente
isso que agora Donald Trump vai estruturalmente impedir, de forma violenta, se
necessário.
De maneira concreta, eliminando recursos para a
promoção de ações de diplomacia ao redor do mundo, prometendo recuperar
antigas, ou adquirir novas, possessões coloniais, rompendo acordos e tratados
e, especialmente, prometendo resolver problemas por meio da força e da coerção
do mais forte, Donald Trump não só dá um cavalo de pau na forma de
funcionamento da hegemonia norte-americana dos últimos 80 anos, como
reestabelece padrões diplomáticos imperiais do século XIX, onde, em bom
português brasileiro, “manda quem pode e obedece quem tem juízo”.
Eliminam-se, assim, todas as pretensões da promoção
da suposta lógica democrática norte-americana ao redor do mundo, e
escancaram-se os traços mais explícitos da verdadeira face imperial ianque.
Tal desdobramento é duplamente trágico por diminuir
os espaços de negociação e diálogo multilateral em um momento quando estes
seriam mais que nunca necessários a fim de tentar dar conta da urgência da
crise climática, assim como da desigualdade e polarização política crescentes.
Que Estados-chave, como o Brasil, consigam
coordenar esforços com pares democráticos do Sul a fim de conter a disseminação
da lógica agressiva e prepotente explicitada pelo neofascismo norte-americano
que nega de vez a tese do seu excepcionalismo civilizatório e diplomático.
¨ Uma Europa submissa e sem bússola. Por Alberto Negri
Os europeus nem
sequer sabem mais para onde estão indo, ou talvez finjam não saber: estão um
pouco sonâmbulos e um pouco submissos ao seu destino. Estamos na agonia da
política externa europeia comum, que, a propósito, nunca existiu, embalando no
setor da defesa a ideia de um Banco
para o Rearmamento destinado
a devorar outros recursos. Eles sempre seguiram a agenda
estadunidense-israelense, do Leste da Europa ao Oriente Médio, e
agora estão pagando as consequências.
Sua desonestidade é
tamanha que eles acham que a guerra
na Ucrânia começou
em 24-02-2022 e não quando, em janeiro de 2014, a subsecretária de Estado dos
EUA, Victoria Nuland, em uma conversa com seu embaixador em Kiev,
pronunciou a agora famosa frase “Fuck the EU”, literalmente “Foda-se a União
Europeia”.
Um acordo entre o
governo ucraniano do pró-russo Viktor Janukovich e a oposição ainda
estava sendo discutido. Na época, não havia Trump na Casa Branca, mas Barack
Obama e seu vice era Joe Biden, que correu para a Praça
Maidan para
comemorar o primeiro aniversário dos protestos, enquanto seu filho Hunter ganhava
milhões de dólares no setor de energia da Ucrânia. E agora, fingiríamos
nos surpreender se Trump arrastasse Zelensky para assinar o acordo
multibilionário sobre as terras raras, enquanto Putin, que agora se tornou
um “ditador voluntarioso” em Washington, se oferece para levar a ele as terras
em posse dos russos? Cada um cuida de si e deu próprio bolso e Macron,
em sua visita a Trump,
afirma que a Europa pagou 60% das ajudas à Ucrânia, mais do que os Estados
Unidos.
Mas o presidente americano tapa
os ouvidos: essa guerra, apesar dos copiosos negócios para a indústria bélica
estadunidense, é um “mau negócio” e deve ser encerrada. É preciso pensar
na China.
Somente os jornais
convencionais insistem em contar a historinha da “paz
justa”,
desorientados pelos acontecimentos. Mas que paz justa? Gaza e
a Palestina são a prova de que ninguém na Europa acredita
nisso.
A submissão europeia
ao complexo militar-industrial israelense-estadunidense é total. Poucos dias
após o massacre do Hamas em 7 de
outubro, Biden transferia porta-aviões para o Mediterrâneo
Oriental e destinava bilhões
de dólares em ajuda militar a Israel: os Estados Unidos imediatamente
se posicionaram não a favor da paz, mas de uma escalada do conflito. E nós,
europeus, os acompanhamos, mascarando a nossa ajuda a Israel por trás da
fórmula, agora desgastada, de “dois povos e dois Estados”. O complexo
militar-industrial israelense-estadunidense ficou do lado de Putin e
das ditaduras na ONU porque os EUA em breve
reconhecerão a anexação
israelense da Cisjordânia.
Com razão, pedimos
a Putin que se retire dos territórios ocupados na Ucrânia,
mas Israel ocupa o Líbano, expandiu
sua presença no Golã sírio e está devorando a Cisjordânia. Justificamos
tudo isso com a necessidade de Israel de preservar sua “segurança”, os mesmos
argumentos que Putin usa quando pede à OTAN que se mantenha longe da
Ucrânia. Não é coincidência que os EUA e Israel tenham votado contra a resolução
da ONU que defendia a integridade territorial da Ucrânia, juntamente com
a Rússia, Bielorrússia, Mali, Nicarágua, Coreia do
Norte e Hungria (o Irã e a China se
abstiveram, presume-se que por vergonha).
Em seguida,
o Conselho de Segurança aprovou uma brevíssima resolução dos EUA
pedindo um “fim rápido da guerra”, mas sem citar a Rússia como agressora e sem
fazer referências à soberania territorial de Kiev. A França e
a Grã-Bretanha, que poderiam ter vetado a resolução, preferiram se abster,
abrindo caminho para a versão de Trump que tanto agrada a Israel. Observe-se o
duplo padrão da Itália. Estamos com a União Europeia,
mas Meloni, sob o pretexto do Fórum com os Emirados, desvencilhou-se da
cerimônia de Kiev pelo terceiro aniversário da guerra: recebemos US$ 40 bilhões
em gratificação dos xeiques membros do Pacto
de Abraão com
Israel e a primeira-ministra empilha descomedidos elogios de Trump. O que mais
querem?
É o manual dos
escoteiros-mirins dos sobrinhos do pato Donald de Trump.
A UE está pagando por anos de submissão aos EUA e
a Israel: Trump é o elo perdido de décadas nas quais justificamos,
participamos ou endossamos guerras de ocupação e agressão, do Iraque à Líbia,
do Afeganistão à Palestina, provocando a desagregação de países
e povos inteiros, centenas de milhares de mortes e milhões de refugiados. Basta
pensar no Iraque em 2003, onde entre os soldados estava também um grande
contingente de ucranianos. Foi um conflito para “exportar a democracia” que mergulhou
a região na anarquia e no mais feroz terrorismo fundamentalista.
Em um momento em
que nos sentimos indignados pelas mentiras e deturpações da realidade por parte
de Trump, devemos lembrar que a guerra de 2003 foi a maior fake
news da história recente, quando os EUA justificaram o ataque
com uma campanha de imprensa e propaganda mundial que bradava a posse
por Saddam Hussein de armas de destruição em massa que nunca foram
encontradas.
Um tubo de ensaio
fajuto com armas químicas chegou a ser exibido na ONU pelo secretário
de Estado Colin Powell. Uma trágica comédia. Nenhum dos
responsáveis jamais pagou — nem Bush nem Blair — e nós
participamos daquela guerra e das outras sem dizer uma palavra. Agora temos que
aceitar as mentiras de Trump e os insultos de seu vice, Vance,
em Munique: eles sabem com
quem estão lidando. Os submissos europeus.
¨ As tarifas
de importação de Trump são legais?
A lista é longa: já são
quase cem os casos em que cidadãos ou instituições adotaram medidas legais
contra decisões tomadas
pelo presidente dos EUA, Donald Trump, segundo o Litigation Tracker, um site
administrado por um instituto da Faculdade de Direito da Universidade de Nova
York.
Os processos estão
relacionados às inúmeras ordens executivas que Trump emitiu desde que assumiu o
cargo e envolvem os cortes em agências governamentais, como a organização
humanitária USAID, a demissão de funcionários, a suspensão de pagamentos e
muito mais.
Apenas uma questão – a que
afeta particularmente quem não vive nos EUA – ficou de fora: tarifas de
importação. O motivo é que o tema tarifas está relacionado ao direito do
comércio internacional, e a autoridade competente para tais casos é a
Organização Mundial do Comércio (OMC), com sede em Genebra. E isso já é parte
do problema.
<><> Frustração
com a OMC
A imposição de tarifas
punitivas, como Trump fez, viola a lei existente, diz o economista Jürgen
Matthes, que chefia o departamento de política econômica internacional do
instituto econômico alemão IW.
"Trump está
desrespeitando a lei comercial em vigor. Também as outras medidas que ele
anunciou contra a China, a União Europeia (UE) e todos os outros países
desrespeitam o direito do comércio internacional. Mas isso não parece
incomodá-lo", afirma Matthes.
Os países afetados podem
reagir e apresentar uma queixa contra as tarifas de Trump na OMC. Foi o que a
China fez: o governo chinês prontamente entrou com uma ação depois que seus
produtos foram sujeitos a uma tarifa adicional de 10%.
O problema é que essas ações
não levam a nada. Matthes diz que elas são "importantes e corretas para
manter o sistema de comércio internacional". Ele também acredita ser muito
provável que o tribunal de arbitragem da OMC considere as tarifas de Trump
ilegais.
Os Estados Unidos poderiam,
então, apelar dessa decisão. Só que o órgão da OMC que decide sobre recursos de
apelação está há anos impossibilitado de tomar decisões porque os Estados
Unidos bloqueiam a nomeação de novos juízes. O antecessor de Trump, Joe Biden,
manteve essa prática.
"Como o tribunal de
apelação não funciona, não haverá um veredito final contra os EUA que seja
vinculativo", explica Matthes. "E mesmo que houvesse um, os EUA sob o
comando de Trump provavelmente não o cumpririam."
Tudo isso é frustrante para
os 166 membros da OMC, que – até mesmo por insistência dos EUA – aderiram à
organização para que houvesse ao menos um mínimo de regras obrigatórias no
comércio internacional.
<><> À procura
de uma desculpa
Canadá e México veem até mesmo uma dupla violação da lei nas ameaças tarifárias de
Trump, afinal esses dois países vizinhos dos EUA não apenas são membros da OMC,
como também têm um acordo de livre comércio válido com os EUA, o USMCA. Esse
acordo foi ratificado pelo Congresso dos EUA e assinado pelo próprio Trump no
seu primeiro mandato.
Mas, como lembra a
professora de direito comercial Kathleen Claussen, da Universidade de
Georgetown, não se deve subestimar a engenhosidade dos juristas na hora de
encontrar uma maneira de contornar regras vigentes.
E isso fica muito claro nos
casos do México e do Canadá. Como as tarifas contra esses dois parceiros
comerciais violam não apenas as regras da OMC, mas também o acordo comercial
ratificado pelo Congresso dos EUA, elas poderiam ser contestadas nos tribunais
dos EUA.
A lei determina que Trump
forneça uma razão para violar as regras, e neste caso ele se apoia na Lei
Internacional de Poderes Econômicos de Emergência (IEEPA), de 1977. Ela dá ao
presidente dos EUA o direito de intervir no comércio internacional mesmo que
haja tratados de livre comércio. O pré-requisito é que ele declare emergência
nacional.
E foi exatamente isso que
Trump fez, por decreto, logo após assumir o cargo: no caso do México, a
emergência nacional é por causa dos migrantes. No do Canadá, por causa do
contrabando de fentanil e outras drogas.
<><> Vai e vem
de tarifas
Trump adora aplicar tarifas
porque é fácil implementá-las, diz Claussen. Além disso, ele não está
exatamente interessado nas tarifas, mas no valor delas como ameaça em
negociações.
Claussen compara a abordagem
de Trump com as condições para "amigos e familiares" que as
operadoras de telefonia móvel usam para atrair clientes. "Há condições
especiais para amigos e familiares, mas você precisa provar que pertence a esse
grupo", diz Claussen. "E mesmo que hoje você consiga provar, amanhã
tudo já pode ser de novo diferente."
Canadá e México já estão
familiarizados com isso. No início de fevereiro veio o anúncio das tarifas
punitivas. Depois veio o adiamento por 30 dias. Poucos dias depois, novas
tarifas sobre aço e alumínio foram impostas. Depois, o anúncio de que as
tarifas punitivas que haviam sido suspensas entrarão em vigor no início de
março.
"Criar incerteza e
emitir constantemente novas ameaças fazem parte dos princípios básicos de
Donald Trump", observa Matthes.
O possível cálculo do
presidente: a constante ameaça de tarifas eleva seu poder e torna outros mais
dispostos a negociar – sejam governos estrangeiros, sejam representantes da
indústria nacional que buscam audiências com ele por temerem as tarifas.
Enquanto isso, os europeus,
e especialmente os alemães, estão discutindo quais opções eles têm se Trump
impuser tarifas sobre seus carros e outros produtos. A Comissão Europeia já
anunciou contramedidas para esse caso, mas sem dar detalhes.
Matthes diz que algum tipo
de acordo pode ser alcançado antecipadamente, pelo qual os europeus poderiam
comprar mais armas ou outros bens dos EUA. Caso contrário, há risco de
acirramento e guerra comercial, o que prejudica a todos. "Mas não podemos
simplesmente tolerar tudo", afirma.
Fonte: Por Rafael
R.Ioris, em A Terra é Redonda/Il Manisfesto/DW Brasil
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