terça-feira, 11 de março de 2025

A verdadeira face imperial yanque

O nacionalismo depende de mitologias para poder existir. No caso dos EUA, seu mito fundador sempre foi o do seu excepcionalismo. Seriam eles a nação fundada no sonho da busca da liberdade e, posteriormente, da democracia; um país tão excepcional que, a fim de poder se preservar, obrigaria seus governantes à promoção do seu modelo ao redor do mundo.

E assim, embora uma das teses fundamentais da política externa norte-americana seja o discurso de despedida de George Washington onde urge seus seguidores a se manterem distantes dos problemas do mundo, ao longo dos anos, os EUA assumiriam, de forma gradual, mas consistente, um projeto expansionista e interventor ao redor do mundo.

Se na sua expansão inicial ao longo do continente americano, os EUA se valeriam da lógica missionária do Destino Manifesto, de uma maneira geral, diferentemente das potências neocoloniais europeias do final do século XIX, onde uma superioridade cultural (ou civilizatória, no linguajar da época) era presumida, o imperialismo ianque para além da América do Norte, apresentava uma lógica mais descentralizada e um viés mais mercantil.

É evidente que em ambos os casos, as teses eugênicas sobre a superioridade racial branca foram também fundamentais. A expansão dos EUA, em primeiro lugar no Caribe e América Central, em seguida no resto do hemisfério, e depois, por todo o globo, tendia, contudo, a ocorrer mais por meios de empresários econômicos e religiosos (pastores e missionários), cuja presença, posteriormente, requereria que o poderoso estado norte-americano viesse em sua defesa, de forma mais ou menos explícita.

Seria, assim, que, na medida que o país se consolidava como grande potência industrial, a autoproclamada “terra da liberdade” viria a constituir para si arranjos imperiais informais, seja na forma de protetorados ou no controle alfandegário da Diplomacia do Dólar por quase todo o Caribe e América Central nas primeiras décadas do século XX. Claro que por vezes o envolvimento direto da coordenação estatal seria mais evidente, como seria o caso de Porto Rico, Filipinas e Panamá.

Mas, em geral, o foco era o de apoio às atividades internacionais de suas empresas, algo que, muitas vezes requeria o desembarque dos Marines, mas sem que a bandeira listrada e estrelada (Star Spangled Banner) viesse a substituir de vez símbolos nacionais locais.

Ao assumir a posição de maior potência militar e econômica global, no imediato pós-Segunda Guerra, o imperialismo norte-americano – envergonhado até então e sempre camuflado na tese de que, diferentemente do imperialismo europeu, as intervenções gringas eram sempre transitórias e bem-intencionadas – desenvolveria novas formas, mais sofisticadas e complexas, de exercer sua hegemonia global. Indo além do que antes tinha proposto, mas não implementado, com a Liga das Nações, os EUA constituiriam uma nova forma de coordenar suas ações ao redor do mundo por meio de arranjos, em tese universais e igualitários – embora sempre desiguais e comprometidos pelas dinâmicas da Guerra Fria – que garantiriam (ou, pelo menos, pretenderiam garantir) que os desígnios do mundo, portanto relevantes a todos, necessitavam da participação (ainda que não equânime) de todos estados nacionais assim constituídos.

Mesmo que instrumento dos interesses norte-americanos, em especial da lógica econômica do seu capitalismo liberal, o que viria a ser conhecido como o Sistema ONU representava algo único, construído nos escombros do maior conflito de todos os tempos, por permitir que a noção da representação nacional com bases formalmente isonômicas se expandisse por todos os cantos do planeta.

Seria, assim, que, ao longo dos anos 1960 e 1970, atores do hoje chamado Sul Global conseguiria se articular de forma coordenada a fim de promover teses não previamente vislumbradas pelos seus criadores, como, por exemplo, a da cooperação para o desenvolvimento, transferência de tecnologia, e mesmo da busca da promoção de uma nova ordem econômica global.

E ainda que tais demandas nunca tenham se efetivado, o simples fato de que era possível que elas fossem incluídas na agenda representava algo novo e potencialmente transformador. E é exatamente isso que agora Donald Trump vai estruturalmente impedir, de forma violenta, se necessário.

De maneira concreta, eliminando recursos para a promoção de ações de diplomacia ao redor do mundo, prometendo recuperar antigas, ou adquirir novas, possessões coloniais, rompendo acordos e tratados e, especialmente, prometendo resolver problemas por meio da força e da coerção do mais forte, Donald Trump não só dá um cavalo de pau na forma de funcionamento da hegemonia norte-americana dos últimos 80 anos, como reestabelece padrões diplomáticos imperiais do século XIX, onde, em bom português brasileiro, “manda quem pode e obedece quem tem juízo”.

Eliminam-se, assim, todas as pretensões da promoção da suposta lógica democrática norte-americana ao redor do mundo, e escancaram-se os traços mais explícitos da verdadeira face imperial ianque.

Tal desdobramento é duplamente trágico por diminuir os espaços de negociação e diálogo multilateral em um momento quando estes seriam mais que nunca necessários a fim de tentar dar conta da urgência da crise climática, assim como da desigualdade e polarização política crescentes.

Que Estados-chave, como o Brasil, consigam coordenar esforços com pares democráticos do Sul a fim de conter a disseminação da lógica agressiva e prepotente explicitada pelo neofascismo norte-americano que nega de vez a tese do seu excepcionalismo civilizatório e diplomático.

 

¨      Uma Europa submissa e sem bússola. Por Alberto Negri

Os europeus nem sequer sabem mais para onde estão indo, ou talvez finjam não saber: estão um pouco sonâmbulos e um pouco submissos ao seu destino. Estamos na agonia da política externa europeia comum, que, a propósito, nunca existiu, embalando no setor da defesa a ideia de um Banco para o Rearmamento destinado a devorar outros recursos. Eles sempre seguiram a agenda estadunidense-israelense, do Leste da Europa ao Oriente Médio, e agora estão pagando as consequências.

Sua desonestidade é tamanha que eles acham que a guerra na Ucrânia começou em 24-02-2022 e não quando, em janeiro de 2014, a subsecretária de Estado dos EUA, Victoria Nuland, em uma conversa com seu embaixador em Kiev, pronunciou a agora famosa frase “Fuck the EU”, literalmente “Foda-se a União Europeia”.

Um acordo entre o governo ucraniano do pró-russo Viktor Janukovich e a oposição ainda estava sendo discutido. Na época, não havia Trump na Casa Branca, mas Barack Obama e seu vice era Joe Biden, que correu para a Praça Maidan para comemorar o primeiro aniversário dos protestos, enquanto seu filho Hunter ganhava milhões de dólares no setor de energia da Ucrânia. E agora, fingiríamos nos surpreender se Trump arrastasse Zelensky para assinar o acordo multibilionário sobre as terras raras, enquanto Putin, que agora se tornou um “ditador voluntarioso” em Washington, se oferece para levar a ele as terras em posse dos russos? Cada um cuida de si e deu próprio bolso e Macron, em sua visita a Trump, afirma que a Europa pagou 60% das ajudas à Ucrânia, mais do que os Estados Unidos.

Mas o presidente americano tapa os ouvidos: essa guerra, apesar dos copiosos negócios para a indústria bélica estadunidense, é um “mau negócio” e deve ser encerrada. É preciso pensar na China.

Somente os jornais convencionais insistem em contar a historinha da “paz justa”, desorientados pelos acontecimentos. Mas que paz justa? Gaza e a Palestina são a prova de que ninguém na Europa acredita nisso.

A submissão europeia ao complexo militar-industrial israelense-estadunidense é total. Poucos dias após o massacre do Hamas em 7 de outubro, Biden transferia porta-aviões para o Mediterrâneo Oriental e destinava bilhões de dólares em ajuda militar a Israel: os Estados Unidos imediatamente se posicionaram não a favor da paz, mas de uma escalada do conflito. E nós, europeus, os acompanhamos, mascarando a nossa ajuda a Israel por trás da fórmula, agora desgastada, de “dois povos e dois Estados”. O complexo militar-industrial israelense-estadunidense ficou do lado de Putin e das ditaduras na ONU porque os EUA em breve reconhecerão a anexação israelense da Cisjordânia.

Com razão, pedimos a Putin que se retire dos territórios ocupados na Ucrânia, mas Israel ocupa o Líbano, expandiu sua presença no Golã sírio e está devorando a Cisjordânia. Justificamos tudo isso com a necessidade de Israel de preservar sua “segurança”, os mesmos argumentos que Putin usa quando pede à OTAN que se mantenha longe da Ucrânia. Não é coincidência que os EUA e Israel tenham votado contra a resolução da ONU que defendia a integridade territorial da Ucrânia, juntamente com a Rússia, Bielorrússia, Mali, Nicarágua, Coreia do Norte e Hungria (o Irã e a China se abstiveram, presume-se que por vergonha).

Em seguida, o Conselho de Segurança aprovou uma brevíssima resolução dos EUA pedindo um “fim rápido da guerra”, mas sem citar a Rússia como agressora e sem fazer referências à soberania territorial de Kiev. A França e a Grã-Bretanha, que poderiam ter vetado a resolução, preferiram se abster, abrindo caminho para a versão de Trump que tanto agrada a Israel. Observe-se o duplo padrão da Itália. Estamos com a União Europeia, mas Meloni, sob o pretexto do Fórum com os Emirados, desvencilhou-se da cerimônia de Kiev pelo terceiro aniversário da guerra: recebemos US$ 40 bilhões em gratificação dos xeiques membros do Pacto de Abraão com Israel e a primeira-ministra empilha descomedidos elogios de Trump. O que mais querem?

É o manual dos escoteiros-mirins dos sobrinhos do pato Donald de Trump. A UE está pagando por anos de submissão aos EUA e a Israel: Trump é o elo perdido de décadas nas quais justificamos, participamos ou endossamos guerras de ocupação e agressão, do Iraque à Líbia, do Afeganistão à Palestina, provocando a desagregação de países e povos inteiros, centenas de milhares de mortes e milhões de refugiados. Basta pensar no Iraque em 2003, onde entre os soldados estava também um grande contingente de ucranianos. Foi um conflito para “exportar a democracia” que mergulhou a região na anarquia e no mais feroz terrorismo fundamentalista.

Em um momento em que nos sentimos indignados pelas mentiras e deturpações da realidade por parte de Trump, devemos lembrar que a guerra de 2003 foi a maior fake news da história recente, quando os EUA justificaram o ataque com uma campanha de imprensa e propaganda mundial que bradava a posse por Saddam Hussein de armas de destruição em massa que nunca foram encontradas.

Um tubo de ensaio fajuto com armas químicas chegou a ser exibido na ONU pelo secretário de Estado Colin Powell. Uma trágica comédia. Nenhum dos responsáveis jamais pagou — nem Bush nem Blair — e nós participamos daquela guerra e das outras sem dizer uma palavra. Agora temos que aceitar as mentiras de Trump e os insultos de seu vice, Vance, em Munique: eles sabem com quem estão lidando. Os submissos europeus.

 

¨      As tarifas de importação de Trump são legais?

A lista é longa: já são quase cem os casos em que cidadãos ou instituições adotaram medidas legais contra decisões tomadas pelo presidente dos EUA, Donald Trump, segundo o Litigation Tracker, um site administrado por um instituto da Faculdade de Direito da Universidade de Nova York.

Os processos estão relacionados às inúmeras ordens executivas que Trump emitiu desde que assumiu o cargo e envolvem os cortes em agências governamentais, como a organização humanitária USAID, a demissão de funcionários, a suspensão de pagamentos e muito mais.

Apenas uma questão – a que afeta particularmente quem não vive nos EUA – ficou de fora: tarifas de importação. O motivo é que o tema tarifas está relacionado ao direito do comércio internacional, e a autoridade competente para tais casos é a Organização Mundial do Comércio (OMC), com sede em Genebra. E isso já é parte do problema.

<><> Frustração com a OMC

A imposição de tarifas punitivas, como Trump fez, viola a lei existente, diz o economista Jürgen Matthes, que chefia o departamento de política econômica internacional do instituto econômico alemão IW.

"Trump está desrespeitando a lei comercial em vigor. Também as outras medidas que ele anunciou contra a China, a União Europeia (UE) e todos os outros países desrespeitam o direito do comércio internacional. Mas isso não parece incomodá-lo", afirma Matthes.

Os países afetados podem reagir e apresentar uma queixa contra as tarifas de Trump na OMC. Foi o que a China fez: o governo chinês prontamente entrou com uma ação depois que seus produtos foram sujeitos a uma tarifa adicional de 10%.

O problema é que essas ações não levam a nada. Matthes diz que elas são "importantes e corretas para manter o sistema de comércio internacional". Ele também acredita ser muito provável que o tribunal de arbitragem da OMC considere as tarifas de Trump ilegais.

Os Estados Unidos poderiam, então, apelar dessa decisão. Só que o órgão da OMC que decide sobre recursos de apelação está há anos impossibilitado de tomar decisões porque os Estados Unidos bloqueiam a nomeação de novos juízes. O antecessor de Trump, Joe Biden, manteve essa prática.

"Como o tribunal de apelação não funciona, não haverá um veredito final contra os EUA que seja vinculativo", explica Matthes. "E mesmo que houvesse um, os EUA sob o comando de Trump provavelmente não o cumpririam."

Tudo isso é frustrante para os 166 membros da OMC, que – até mesmo por insistência dos EUA – aderiram à organização para que houvesse ao menos um mínimo de regras obrigatórias no comércio internacional.

<><> À procura de uma desculpa

Canadá e México veem até mesmo uma dupla violação da lei nas ameaças tarifárias de Trump, afinal esses dois países vizinhos dos EUA não apenas são membros da OMC, como também têm um acordo de livre comércio válido com os EUA, o USMCA. Esse acordo foi ratificado pelo Congresso dos EUA e assinado pelo próprio Trump no seu primeiro mandato.

Mas, como lembra a professora de direito comercial Kathleen Claussen, da Universidade de Georgetown, não se deve subestimar a engenhosidade dos juristas na hora de encontrar uma maneira de contornar regras vigentes.

E isso fica muito claro nos casos do México e do Canadá. Como as tarifas contra esses dois parceiros comerciais violam não apenas as regras da OMC, mas também o acordo comercial ratificado pelo Congresso dos EUA, elas poderiam ser contestadas nos tribunais dos EUA.

A lei determina que Trump forneça uma razão para violar as regras, e neste caso ele se apoia na Lei Internacional de Poderes Econômicos de Emergência (IEEPA), de 1977. Ela dá ao presidente dos EUA o direito de intervir no comércio internacional mesmo que haja tratados de livre comércio. O pré-requisito é que ele declare emergência nacional.

E foi exatamente isso que Trump fez, por decreto, logo após assumir o cargo: no caso do México, a emergência nacional é por causa dos migrantes. No do Canadá, por causa do contrabando de fentanil e outras drogas.

<><> Vai e vem de tarifas

Trump adora aplicar tarifas porque é fácil implementá-las, diz Claussen. Além disso, ele não está exatamente interessado nas tarifas, mas no valor delas como ameaça em negociações.

Claussen compara a abordagem de Trump com as condições para "amigos e familiares" que as operadoras de telefonia móvel usam para atrair clientes. "Há condições especiais para amigos e familiares, mas você precisa provar que pertence a esse grupo", diz Claussen. "E mesmo que hoje você consiga provar, amanhã tudo já pode ser de novo diferente."

Canadá e México já estão familiarizados com isso. No início de fevereiro veio o anúncio das tarifas punitivas. Depois veio o adiamento por 30 dias. Poucos dias depois, novas tarifas sobre aço e alumínio foram impostas. Depois, o anúncio de que as tarifas punitivas que haviam sido suspensas entrarão em vigor no início de março.

"Criar incerteza e emitir constantemente novas ameaças fazem parte dos princípios básicos de Donald Trump", observa Matthes.

O possível cálculo do presidente: a constante ameaça de tarifas eleva seu poder e torna outros mais dispostos a negociar – sejam governos estrangeiros, sejam representantes da indústria nacional que buscam audiências com ele por temerem as tarifas.

Enquanto isso, os europeus, e especialmente os alemães, estão discutindo quais opções eles têm se Trump impuser tarifas sobre seus carros e outros produtos. A Comissão Europeia já anunciou contramedidas para esse caso, mas sem dar detalhes.

Matthes diz que algum tipo de acordo pode ser alcançado antecipadamente, pelo qual os europeus poderiam comprar mais armas ou outros bens dos EUA. Caso contrário, há risco de acirramento e guerra comercial, o que prejudica a todos. "Mas não podemos simplesmente tolerar tudo", afirma.

 

Fonte: Por Rafael R.Ioris, em A Terra é Redonda/Il Manisfesto/DW Brasil

 

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