terça-feira, 11 de março de 2025

A luta das mulheres pela democracia e contra a ditadura

Sorrisos, festa, música… Oito de março era sempre de celebração especial do aniversário de Elza dos Santos. Além de comemorarem a vida dela, os seis filhos lembravam que era dia das mulheres. E ela, a ‘rainha’ deles, na casa de um quarto, em que todos moravam no Rio de Janeiro. Elza, que perdeu o marido precocemente, atravessava a madrugada trabalhando como costureira. Foi também em um mês de março, no dia 15, em 1971, que a dor passou a ocupar espaço naquela casa.

Foi aquele o dia em que o filho mais velho, o estudante de ensino técnico em contabilidade Joel Vasconcelos, de 21 anos, foi preso por agentes da ditadura militar e desapareceu. Elza, desde então, passou a lutar para tentar salvar o rapaz. Iniciou um périplo. Carregava a foto do filho por onde ia. Buscou notícias, chorou escondida a ausência do rapaz, que era idealista e  diretor da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes).

Mesmo diante do desespero que se abateu, ela pedia que os filhos não deixassem de sorrir enquanto lutava para que dessem informações ou entregassem o corpo ou a certidão de óbito. Joel, que também era sapateiro, ajudava nas despesas de casa, e teria morrido após torturas nas dependências do DOI-Codi (entre 15 e 19 de março). Elza morreu em 1994, aos 64 anos, sem ter o corpo do filho.

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Uma das filhas de Elza e irmã de Joel, a advogada Altair de Almeida, de 68 anos, recorda que a mãe buscava também a fé religiosa para ter alguma esperança de mudança de cenário. “Ela ficava na escadaria da Cinelândia todos os dias com a foto do meu irmão. Nunca se calou, procurou o presidente, o papa. Não tinha quem não a conhecia”, lembra  Altair que perdeu o irmão, quando ela era uma adolescente de 14 anos.

<><> Visibilidade

Histórias como a dessa família foram reconhecidas, principalmente após o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2014, e passaram a ter nova chance de visibilidade com as repercussões do filme “Ainda estou aqui”, sobre a luta de Eunice Paiva, viúva do ex-deputado Rubens Paiva. 

De acordo com a historiadora Lorrane Rodrigues, coordenadora executiva do Instituto Vladimir Herzog, são as mulheres que levam à frente as políticas de memória, verdade e justiça para a América Latina como um todo, incluindo o Brasil.

“Essa repercussão toda causada pelo filme é muito importante para a gente entender qual é o papel dessas mulheres, seja no período da ditadura militar ou em outros períodos que o país já viveu”, afirma a pesquisadora.

<><> À espera

No caso da história de Joel, que era negro e tinha passado pelo serviço militar obrigatório, foi preso quando estava acompanhado de um amigo nas imediações do Morro do Borel. De acordo com o relatório da CNV, a prisão teria ocorrido por suspeita de tráfico. Ocorre que o rapaz apenas levava cartazes contra a ditadura e ingressos para a peça de teatro “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade.

Os policiais militares entregaram os amigos para militares do Exército, justamente para pessoas que tinham a mesma farda que ele  vestiu um dia. Da vida na caserna, ficava feliz de guardar a disciplina e a organização. “A minha mãe nunca deixou mudar o telefone de casa na esperança que algum dia ele fosse ligar”, recorda a irmã de Joel. “A foto que mais circula do meu irmão é a que tinha na Carteira de Trabalho dele”.

Joel começou a trabalhar com 11 anos de idade a partir de uma habilidade como sapateiro. A perda de Joel impactou financeiramente a família, já que Elza tinha que trabalhar o dobro para cuidar de todos, agora sozinha, e pagar advogados em busca dos direitos. Na década de 1990, conseguiram o primeiro atestado de óbito como desaparecido político.

<><> “Vamos sorrir”

Mesmo com a perda e uma dor intangível, Elza não perdeu a alegria. “Dizia para a gente não parar de sorrir porque o nosso irmão era um herói. A minha família era pobre, mas nossa história é de muita alegria também”.

Na memória de Altair, ficaram imagens do irmão a carregá-la nos ombros para assistir aos jogos do Vasco, para praticar futebol e na ajuda aos estudos com matemática. “Eu tenho ainda esperança de que um dia saberemos exatamente o que aconteceu com meu irmão e que o corpo seja entregue à família. Não há possibilidade de haver esquecimento”

<><> Perdas e luta

Uma das fundadoras do movimento Tortura Nunca Mais, a professora Victória Grabois, de 81 anos, perdeu o pai (Maurício, ex-deputado, de 61 anos), o irmão (André, estudante, de 27) e o marido (Gilberto Olímpio, jornalista, de 31) em 1973, assassinados por agentes da ditadura na região da Serra do Araguaia. A família, que vive no Rio de Janeiro, nunca recebeu os corpos. “Eu acho que eu vou morrer sem resposta”, lamenta.

Ela acredita, no entanto, que o filme “Ainda estou aqui” tenha trazido nova perspectiva para a luta das famílias dos desaparecidos. Victória espera que o Supremo Tribunal Federal (STF) vote para desengavetar processos sobre o assunto que estão na Corte. “A repercussão do filme é muito interessante para a nossa luta. Tem histórias de mães que precisam ser contadas no Brasil. Muitas mães eram donas de casa, professoras, operárias. Essas mulheres levaram a luta”, diz

Ela defende que o Estado brasileiro precisa abrir mais arquivos do que ocorreu durante o regime que durou 21 anos. “Se hoje a gente fala de ditadura, isso se deve às mulheres, às mães, às esposas, companheiras”, afirma Victória Grabois.

A professora lembra que ficou sabendo que o irmão havia sido vítima de uma emboscada. Já nas mortes do pai e do marido, ela descobriu o que havia ocorrido pelos jornais. Desde então, considera que os direitos ocorreram a “conta gotas”.

A certidão de óbito, que reconheceu que os familiares haviam sido mortos durante a ditadura, foi importante, segundo a ativista, para que a família pudesse acessar recursos de pessoas assassinadas. Inclusive para fazer com que a vida continuasse. Quando eles morreram, o filho de Victória tinha apenas quatro anos de idade.

<>< Prisão aos quatro meses

Eram crianças também, em São Paulo, quatro filhos dos operários Virgílio Gomes, de 36 anos, e Ilda Martins, de 38. Virgílio foi considerado o primeiro desaparecido político da ditadura militar. Ele foi preso em setembro de 1969 por militares, encaminhado para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), onde foi torturado e assassinado, mas nunca o corpo foi entregue à família.

A mais nova dos filhos, Isabel, tinha quatro meses de vida quando foi raptada pelos militares junto com os irmãos (todos crianças) e entregues para o juizado.

Virgílio era um dos militantes mais procurados do Brasil porque foi o comandante do sequestro do embaixador norte-americano no Brasil, Charles Burke Elbrick. A operação negociou a libertação de 15 prisioneiros.

Hoje, Isabel, que é professora, tem 54 anos de idade e vive em São Paulo depois de voltar de Cuba, onde a família se exilou com a mãe. “A história da família (de Rubens) Paiva é muito parecida com o que aconteceu com a nossa família. Minha mãe ficou viva com quatro filhos para criar. Eu era a filha menor”.

<><> Proteção na dor

O irmão mais velho preso tinha nove anos. No dia da prisão da mãe (30 de setembro, o dia seguinte), o carro dos militares com a família chegou a capotar. “Minha mãe tentou me proteger e ninguém se machucou gravemente”.

Ilda, que ficou mais de um ano presa no Dops e no presídio Tiradentes, também em São Paulo, tem hoje 94 anos de idade e está lúcida.

“Ela sente muito até hoje sobre o período em que ficou separada dos filhos. De vez em quando, lembra disso e chora”, diz a filha. As crianças, depois de quatro meses no juizado da infância, foram abrigadas por outros familiares.

Depois que a família passou mais de uma década exilada em Cuba, Ilda pediu que todos voltassem para o Brasil depois que se formassem no ensino superior. Para Isabel, a mãe é uma heroína, tanto por ter lutado ao lado do pai quanto para manter força para criar os quatro filhos depois que o marido foi sequestrado e morto pelos militares. “A nossa luta agora é por encontrar os restos mortais. O Brasil nunca fez um julgamento correto”, avalia.

Da luta de Ilda, Isabel lembra-se como a mãe, no tempo de cadeia, sem responder por nenhuma acusação, estava desesperada sem ver as crianças. Recorda daqueles dias quando iam até a porta do presídio esperar qualquer notícia da mãe. Depois que Ilda conseguiu a liberdade, a família continuou sendo seguida. Por isso, resolveu ir embora do país.

<><> Nas portas das cadeias

Persistência e força, mesmo diante de dor e trauma, nessa busca, por parte das mulheres, fizeram com que a luta permanecesse viva e presente. Como é o caso de Diva Santana que, aos 81 anos, é representante dos familiares na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

Ela procura a irmã, Dinaelza Coqueiro, há 50 anos, que foi morta pelos militares na Guerrilha do Araguaia. Diva entende que as mulheres familiares dos perseguidos e presos andavam nas portas das cadeias. “Essas mulheres lutaram, ao longo da nossa história, e continuam lutando para que tenhamos um país justo, democrático e humano antes de tudo”.

 

¨         O desconforto das mulheres que desafiaram a história. Por Kelly Amaral de Freitas

Como mulher e pesquisadora, percebo que, ao longo da história, a maior parte das conquistas femininas nas áreas social, política, educacional e cultural advém de um desconforto vivido em suas próprias trajetórias, frequentemente silenciadas pelas narrativas dominantes. Superando um esforço extraordinário em nome da liberdade, justiça e equidade, suas lutas defendiam não apenas o coletivo, mas também o seu próprio direito de existir e realizar-se.

No Brasil patriarcal, o desconforto de nascer mulher é percebido desde a infância, quando a elas são impostas as obrigações do cuidado. Além da maternidade, somam a responsabilidade por acompanhar parentes idosos, doentes ou com deficiência, as tarefas domésticas, o equilíbrio emocional da residência ou a reprodução desses mesmos trabalhos na casa de terceiros. Esse cenário evidencia como, desde a infância, as mulheres são educadas para cuidar. Embora a presença feminina tenha crescido em campos predominantemente masculinos, elas ainda são maioria nas funções em que o cuidado é central, como na educação e na saúde.

Essas rotinas acabam por desenvolver na mulher uma combinação de sensibilidade e inconformismo que, aliados ao repertório social e cultural de uma sociedade machista, levam-na à rejeição de um status quo centrado no masculino. Motivadas por suas dores, começam a se comunicar e, descobrindo causas comuns, iniciam uma revolução para romper este silêncio.

Pensando na história do Brasil, sugiro sete exemplos de mulheres que, pelo abalo sofrido no cerne de sua existência, ocuparam espaços, falaram e escreveram, resultando em um legado aplaudido até hoje. A cearense Maria da Penha lutou para que seu ex-companheiro agressor fosse condenado após tentar matá-la duas vezes. Paraplégica, assistiu indignada à demora de mais de uma década pelo veredicto da Justiça até escrever um livro cuja repercussão chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Mesmo assim, seu agressor só foi condenado em 2002 e cumpriu apenas dois anos de prisão. O caso resultou na criação da Lei Maria da Penha, que regulamentou o combate à violência doméstica e familiar contra mulheres no Brasil.

Na luta política, a então vereadora Marielle Franco foi assassinada em uma emboscada no ano de 2018. A repercussão de sua morte jogou mais luz sobre a sua luta contra a milícia no Rio de Janeiro. Sua oratória contundente provocava o Legislativo com seus questionamentos e desconfortos. Atualmente, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 1086/23, para instituir o ‘Dia Nacional Marielle Franco de Enfrentamento da Violência Política de Gênero e Raça’.

No campo literário, Carolina Maria de Jesus narrou a realidade da Favela do Canindé, em São Paulo, onde viveu, expondo desigualdades e injustiças na obra Quarto de Despejo: Diário de Uma Favelada (1960) – um testemunho que inspirou o termo “escrevivência”, cunhado anos mais tarde por Conceição Evaristo. Sua obra ecoa os desconfortos da marginalização social, da falta de oportunidades e da luta por sobrevivência.

Na cena cultural, Hilária Batista de Almeida, conhecida como Tia Ciata, transformou sua casa em um polo de resistência da identidade cultural afro-brasileira, provocando a independência econômica de várias mulheres negras da região. Líder comunitária e curandeira, Tia Ciata garantiu renda para mulheres quituteiras e iniciou um movimento que fortaleceu a identidade cultural negra no Brasil.

No campo da saúde, Nise da Silveira introduziu as terapias humanizadas na psiquiatria ao rejeitar práticas violentas como o eletrochoque. A única mulher em sua turma de medicina, ela enfrentou perseguições políticas, foi presa durante a Era Vargas e, ao sair, revolucionou a psiquiatria ao desenvolver ambientes sem grades e terapias ocupacionais.

Na educação, Magda Soares trouxe os conceitos de letramento e ‘alfaletrar’, desafiando o método tradicional de memorização mecânica. Inspirada por Paulo Freire, ela defendeu que a alfabetização deve estar conectada com a realidade do aluno, garantindo uma educação mais significativa e democrática.

Por fim, Rosângela Costa Araújo, a Mestra Janja, desconstruiu a hierarquia de gênero na capoeira. Primeira mulher a receber o título de mestra na capoeira, fundou o Grupo Nzinga de Capoeira Angola, promovendo a equidade de gênero na prática, antes dominada pelos homens.

Outras tantas mulheres desconfortaram o curso da história no Brasil, desafiando leis que as excluíam e papéis sociais que lhes foram impostos. Suas trajetórias são diversas, mas todas compartilham a luta contra uma sociedade patriarcal que limitou suas vozes. No século XXI, estamos assistindo a uma revolução feminina plural, em que cada mulher, com sua luta, transforma o desconforto em ação.

 

Fonte: Jornal GGN/Le Monde

 

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