A luta das mulheres
pela democracia e contra a ditadura
Sorrisos, festa,
música… Oito de março era sempre de celebração especial do aniversário de Elza
dos Santos. Além de comemorarem a vida dela, os seis filhos lembravam que era
dia das mulheres. E ela, a ‘rainha’ deles, na casa de um quarto, em que todos
moravam no Rio de Janeiro. Elza, que perdeu o marido precocemente, atravessava
a madrugada trabalhando como costureira. Foi também em um mês de março, no dia
15, em 1971, que a dor passou a ocupar espaço naquela casa.
Foi aquele o dia em
que o filho mais velho, o estudante de ensino técnico em contabilidade Joel
Vasconcelos, de 21 anos, foi preso por agentes da ditadura militar e
desapareceu. Elza, desde então, passou a lutar para tentar salvar o rapaz.
Iniciou um périplo. Carregava a foto do filho por onde ia. Buscou notícias,
chorou escondida a ausência do rapaz, que era idealista e diretor da
União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes).
Mesmo diante do
desespero que se abateu, ela pedia que os filhos não deixassem de sorrir
enquanto lutava para que dessem informações ou entregassem o corpo ou a
certidão de óbito. Joel, que também era sapateiro, ajudava nas despesas de
casa, e teria morrido após torturas nas dependências do DOI-Codi (entre 15 e 19
de março). Elza morreu em 1994, aos 64 anos, sem ter o corpo do filho.
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Uma das filhas de
Elza e irmã de Joel, a advogada Altair de Almeida, de 68 anos, recorda que a mãe
buscava também a fé religiosa para ter alguma esperança de mudança de cenário.
“Ela ficava na escadaria da Cinelândia todos os dias com a foto do meu irmão.
Nunca se calou, procurou o presidente, o papa. Não tinha quem não a conhecia”,
lembra Altair que perdeu o irmão, quando ela era uma adolescente de 14
anos.
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Visibilidade
Histórias como a
dessa família foram reconhecidas, principalmente após o relatório da Comissão
Nacional da Verdade (CNV), em 2014, e passaram a ter nova chance de
visibilidade com as repercussões do filme “Ainda estou aqui”, sobre a luta de
Eunice Paiva, viúva do ex-deputado Rubens Paiva.
De acordo com a
historiadora Lorrane Rodrigues, coordenadora executiva do Instituto Vladimir
Herzog, são as mulheres que levam à frente as políticas de memória, verdade e
justiça para a América Latina como um todo, incluindo o Brasil.
“Essa repercussão
toda causada pelo filme é muito importante para a gente entender qual é o papel
dessas mulheres, seja no período da ditadura militar ou em outros períodos que
o país já viveu”, afirma a pesquisadora.
<><> À
espera
No caso da história
de Joel, que era negro e tinha passado pelo serviço militar obrigatório, foi
preso quando estava acompanhado de um amigo nas imediações do Morro do Borel.
De acordo com o relatório da CNV, a prisão teria ocorrido por suspeita de
tráfico. Ocorre que o rapaz apenas levava cartazes contra a ditadura e
ingressos para a peça de teatro “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade.
Os policiais
militares entregaram os amigos para militares do Exército, justamente para
pessoas que tinham a mesma farda que ele vestiu um dia. Da vida na
caserna, ficava feliz de guardar a disciplina e a organização. “A minha mãe
nunca deixou mudar o telefone de casa na esperança que algum dia ele fosse ligar”,
recorda a irmã de Joel. “A foto que mais circula do meu irmão é a que tinha na
Carteira de Trabalho dele”.
Joel começou a
trabalhar com 11 anos de idade a partir de uma habilidade como sapateiro. A
perda de Joel impactou financeiramente a família, já que Elza tinha que
trabalhar o dobro para cuidar de todos, agora sozinha, e pagar advogados em
busca dos direitos. Na década de 1990, conseguiram o primeiro atestado de óbito
como desaparecido político.
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“Vamos sorrir”
Mesmo com a perda e
uma dor intangível, Elza não perdeu a alegria. “Dizia para a gente não parar de
sorrir porque o nosso irmão era um herói. A minha família era pobre, mas nossa
história é de muita alegria também”.
Na memória de
Altair, ficaram imagens do irmão a carregá-la nos ombros para assistir aos
jogos do Vasco, para praticar futebol e na ajuda aos estudos com matemática.
“Eu tenho ainda esperança de que um dia saberemos exatamente o que aconteceu
com meu irmão e que o corpo seja entregue à família. Não há possibilidade de
haver esquecimento”
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Perdas e luta
Uma das fundadoras
do movimento Tortura Nunca Mais, a professora Victória Grabois, de 81 anos,
perdeu o pai (Maurício, ex-deputado, de 61 anos), o irmão (André, estudante, de
27) e o marido (Gilberto Olímpio, jornalista, de 31) em 1973, assassinados por
agentes da ditadura na região da Serra do Araguaia. A família, que vive no Rio
de Janeiro, nunca recebeu os corpos. “Eu acho que eu vou morrer sem resposta”,
lamenta.
Ela acredita, no
entanto, que o filme “Ainda estou aqui” tenha trazido nova perspectiva para a
luta das famílias dos desaparecidos. Victória espera que o Supremo Tribunal
Federal (STF) vote para desengavetar processos sobre o assunto que estão na
Corte. “A repercussão do filme é muito interessante para a nossa luta. Tem
histórias de mães que precisam ser contadas no Brasil. Muitas mães eram donas
de casa, professoras, operárias. Essas mulheres levaram a luta”, diz
Ela defende que o
Estado brasileiro precisa abrir mais arquivos do que ocorreu durante o regime
que durou 21 anos. “Se hoje a gente fala de ditadura, isso se deve às mulheres,
às mães, às esposas, companheiras”, afirma Victória Grabois.
A professora lembra
que ficou sabendo que o irmão havia sido vítima de uma emboscada. Já nas mortes
do pai e do marido, ela descobriu o que havia ocorrido pelos jornais. Desde
então, considera que os direitos ocorreram a “conta gotas”.
A certidão de
óbito, que reconheceu que os familiares haviam sido mortos durante a ditadura,
foi importante, segundo a ativista, para que a família pudesse acessar recursos
de pessoas assassinadas. Inclusive para fazer com que a vida continuasse.
Quando eles morreram, o filho de Victória tinha apenas quatro anos de idade.
<>< Prisão
aos quatro meses
Eram crianças
também, em São Paulo, quatro filhos dos operários Virgílio Gomes, de 36 anos, e
Ilda Martins, de 38. Virgílio foi considerado o primeiro desaparecido político
da ditadura militar. Ele foi preso em setembro de 1969 por militares,
encaminhado para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), onde foi
torturado e assassinado, mas nunca o corpo foi entregue à família.
A mais nova dos
filhos, Isabel, tinha quatro meses de vida quando foi raptada pelos militares
junto com os irmãos (todos crianças) e entregues para o juizado.
Virgílio era um dos
militantes mais procurados do Brasil porque foi o comandante do sequestro do
embaixador norte-americano no Brasil, Charles Burke Elbrick. A operação
negociou a libertação de 15 prisioneiros.
Hoje, Isabel, que é
professora, tem 54 anos de idade e vive em São Paulo depois de voltar de Cuba,
onde a família se exilou com a mãe. “A história da família (de Rubens) Paiva é
muito parecida com o que aconteceu com a nossa família. Minha mãe ficou viva
com quatro filhos para criar. Eu era a filha menor”.
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Proteção na dor
O irmão mais velho
preso tinha nove anos. No dia da prisão da mãe (30 de setembro, o dia
seguinte), o carro dos militares com a família chegou a capotar. “Minha mãe
tentou me proteger e ninguém se machucou gravemente”.
Ilda, que ficou
mais de um ano presa no Dops e no presídio Tiradentes, também em São Paulo, tem
hoje 94 anos de idade e está lúcida.
“Ela sente muito
até hoje sobre o período em que ficou separada dos filhos. De vez em quando,
lembra disso e chora”, diz a filha. As crianças, depois de quatro meses no
juizado da infância, foram abrigadas por outros familiares.
Depois que a
família passou mais de uma década exilada em Cuba, Ilda pediu que todos
voltassem para o Brasil depois que se formassem no ensino superior. Para
Isabel, a mãe é uma heroína, tanto por ter lutado ao lado do pai quanto para
manter força para criar os quatro filhos depois que o marido foi sequestrado e
morto pelos militares. “A nossa luta agora é por encontrar os restos mortais. O
Brasil nunca fez um julgamento correto”, avalia.
Da luta de Ilda,
Isabel lembra-se como a mãe, no tempo de cadeia, sem responder por nenhuma
acusação, estava desesperada sem ver as crianças. Recorda daqueles dias quando
iam até a porta do presídio esperar qualquer notícia da mãe. Depois que Ilda
conseguiu a liberdade, a família continuou sendo seguida. Por isso, resolveu ir
embora do país.
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Nas portas das cadeias
Persistência e
força, mesmo diante de dor e trauma, nessa busca, por parte das mulheres,
fizeram com que a luta permanecesse viva e presente. Como é o caso de Diva
Santana que, aos 81 anos, é representante dos familiares na Comissão Especial
sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
Ela procura a irmã,
Dinaelza Coqueiro, há 50 anos, que foi morta pelos militares na Guerrilha do Araguaia.
Diva entende que as mulheres familiares dos perseguidos e presos andavam nas
portas das cadeias. “Essas mulheres lutaram, ao longo da nossa história, e
continuam lutando para que tenhamos um país justo, democrático e humano antes
de tudo”.
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O desconforto das mulheres que
desafiaram a história. Por
Como mulher e pesquisadora, percebo que, ao longo da
história, a maior parte das conquistas femininas nas áreas social, política,
educacional e cultural advém de um desconforto vivido em suas próprias
trajetórias, frequentemente silenciadas pelas narrativas dominantes. Superando
um esforço extraordinário em nome da liberdade, justiça e equidade, suas lutas
defendiam não apenas o coletivo, mas também o seu próprio direito de existir e
realizar-se.
No Brasil patriarcal, o desconforto de nascer mulher é
percebido desde a infância, quando a elas são impostas as obrigações do
cuidado. Além da maternidade, somam a responsabilidade por acompanhar parentes
idosos, doentes ou com deficiência, as tarefas domésticas, o equilíbrio
emocional da residência ou a reprodução desses mesmos trabalhos na casa de
terceiros. Esse cenário evidencia como, desde a infância, as mulheres são
educadas para cuidar. Embora a presença feminina tenha crescido em campos
predominantemente masculinos, elas ainda são maioria nas funções em que o
cuidado é central, como na educação e na saúde.
Essas rotinas acabam por desenvolver na mulher uma
combinação de sensibilidade e inconformismo que, aliados ao repertório
social e cultural de uma sociedade machista, levam-na à rejeição de um status
quo centrado no masculino. Motivadas por suas dores, começam a se
comunicar e, descobrindo causas comuns, iniciam uma revolução para romper este
silêncio.
Pensando na história do Brasil, sugiro sete exemplos de
mulheres que, pelo abalo sofrido no cerne de sua existência, ocuparam espaços,
falaram e escreveram, resultando em um legado aplaudido até hoje. A
cearense Maria
da Penha lutou para que seu ex-companheiro agressor fosse condenado após tentar
matá-la duas vezes. Paraplégica,
assistiu indignada à demora de mais de uma década pelo veredicto da Justiça até
escrever um livro cuja repercussão chegou à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH). Mesmo assim, seu agressor só foi condenado em 2002 e cumpriu
apenas dois anos de prisão. O caso resultou na criação da Lei Maria da Penha,
que regulamentou o combate à violência doméstica e familiar contra mulheres no
Brasil.
Na luta política, a então vereadora Marielle
Franco foi assassinada em uma emboscada no ano de 2018. A repercussão
de sua morte jogou mais luz sobre a sua luta contra a milícia no Rio de
Janeiro. Sua oratória contundente provocava o Legislativo com seus
questionamentos e desconfortos. Atualmente, tramita na Câmara dos Deputados o
Projeto de Lei 1086/23, para instituir o ‘Dia
Nacional Marielle Franco de Enfrentamento da Violência Política de Gênero e
Raça’.
No campo literário, Carolina
Maria de Jesus narrou
a realidade da Favela do Canindé, em São Paulo, onde viveu, expondo
desigualdades e injustiças na obra Quarto de Despejo: Diário de Uma Favelada (1960) – um
testemunho que inspirou o termo “escrevivência”, cunhado anos mais
tarde por Conceição
Evaristo.
Sua obra ecoa os desconfortos da marginalização social, da falta de
oportunidades e da luta por sobrevivência.
Na cena cultural, Hilária Batista de Almeida, conhecida como
Tia Ciata, transformou sua casa em um polo de resistência da identidade
cultural afro-brasileira, provocando a independência econômica de várias
mulheres negras da região. Líder comunitária e curandeira, Tia Ciata garantiu
renda para mulheres quituteiras e iniciou um movimento que fortaleceu a
identidade cultural negra no Brasil.
No campo da saúde, Nise da Silveira introduziu as
terapias humanizadas na psiquiatria ao rejeitar práticas violentas como o
eletrochoque. A única mulher em sua turma de medicina, ela enfrentou
perseguições políticas, foi presa durante a Era Vargas e, ao sair, revolucionou
a psiquiatria ao desenvolver ambientes sem grades e terapias ocupacionais.
Na educação, Magda
Soares trouxe
os conceitos de letramento e ‘alfaletrar’, desafiando o método tradicional de
memorização mecânica. Inspirada por Paulo Freire, ela defendeu que a
alfabetização deve estar conectada com a realidade do aluno, garantindo uma
educação mais significativa e democrática.
Por fim, Rosângela
Costa Araújo,
a Mestra Janja, desconstruiu a hierarquia de gênero na capoeira. Primeira
mulher a receber o título de mestra na capoeira, fundou o Grupo Nzinga de
Capoeira Angola, promovendo a equidade de gênero na prática, antes dominada
pelos homens.
Outras tantas mulheres desconfortaram o curso da
história no Brasil, desafiando leis que as excluíam e papéis sociais que lhes
foram impostos. Suas trajetórias são diversas, mas todas compartilham a luta
contra uma sociedade patriarcal que limitou suas vozes. No século XXI, estamos
assistindo a uma revolução feminina plural, em que cada mulher, com sua luta,
transforma o desconforto em ação.
Fonte: Jornal GGN/Le
Monde
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