Terrorismo de barragem: como mineradoras
usam sirenes para expulsar moradores
“Atenção, atenção!
Isto é uma emergência! Atenção, atenção! Esta é uma situação real de emergência
de rompimento de barragem. Abandonem imediatamente suas residências e indo
(sic) pela rota de fuga até o ponto de encontro e permaneçam até que sejam repassadas outras instruções.”
Foi com essa mensagem
assustadora, bradada por alto-falantes – além de sirenes –, que os moradores
dos povoados de Socorro, Piteira, Tabuleiro e Vila do Gongo, em Barão de Cocais
(MG), a 94 km de Belo Horizonte, foram acordados às 4h da madrugada de 8 de
fevereiro de 2019, duas semanas após o rompimento da Barragem de Córrego do
Feijão, da Vale, em Brumadinho, que matou 272 pessoas.
A partir desse
episódio, o físico Daniel Neri, doutor em Política Científica e Tecnológica e
professor do Instituto Federal de Minas Gerais, no campus Ouro Preto, resolveu
estudar e escrever uma tese sobre o que ele viria a chamar de “terrorismo de
barragem”. “Trata-se de uma estratégia de ‘despossessão’”, diz.
Ele cita como exemplo
o fato de que, logo após o rompimento da Barragem de Córrego do Feijão,
subitamente empresas que prestam serviços para o setor de minério de ferro em
Minas Gerais declararam que algumas barragens não tinham mais um documento
chamado Declaração de Condição de Estabilidade (DCE), que atesta a estabilidade
dessas estruturas.
“Ou seja, a DCE
garantia que as barragens eram seguras”, explica Neri. “Aí, as certificadoras
revogaram a DCE e as barragens passaram a ser consideradas inseguras. Com isso,
as mineradoras poderiam usar essa suposta insegurança para aterrorizar os
moradores. Com o agravante de que nem era a época estabelecida pela Agência
Nacional de Mineração (ANM) para esse tipo de certificação. Esse foi um dos
principais elementos que levou as pessoas a desconfiarem que aquilo era
forjado.”
A ideia da pesquisa
surgiu ao longo de 2019, quando ele tomou conhecimento da estratégia.
“Divulgada inicialmente pelo Projeto Manuelzão, da UFMG, rapidamente
verificamos que muitos moradores duvidavam dos verdadeiros riscos de algumas
barragens colocadas subitamente em nível de risco, como a Sul Superior, em
Barão de Cocais, e B3/B4, em Nova Lima [a 22 km de Belo Horizonte]”, conta.
O ponto de partida da
tese foi um artigo, publicado em 2020 pelo geógrafo Klemens Laschefski,
professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de
Geociências, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “O Daniel Neri fez
uma disciplina comigo, na qual apresentei o meu trabalho sobre aquilo que
chamei, em debates com ambientalistas, de ‘terrorismo de barragens’”, conta.
A origem do trabalho
foram duas oficinas realizadas por Laschefski com pessoas removidas por causa
de suposto risco de rompimento em Barão de Cocais (pesquisado posteriormente
com mais profundidade por Daniel Neri) e em São Sebastião de Águas Claras, distrito
de Nova Lima.
Para Laschefski, a
tese do Daniel Neri é muito relevante, pois apresenta muitos elementos e dados
empíricos que sustentam aquilo que ele formulou inicialmente como uma hipótese,
consolidando assim o conceito. “Nesse sentido, o trabalho de Neri trouxe as evidências
que consolidam a existência de uma estratégia empresarial para influenciar não
apenas a população, mas também as instituições públicas e o judiciário por meio
do medo”, diz. “A tese traz uma contribuição importante para entender a atuação
das mineradoras no campo político.”
• Sirenes na madrugada
Neri diz que seu
principal objetivo com a tese era demonstrar que algumas barragens foram
colocadas em nível de risco de modo artificial, como forma de expulsar pessoas
de alguns territórios. “Ao longo da pesquisa, outras perguntas surgiram, como,
por exemplo, como é possível que as empresas possam subverter os processos
legais de licenciamento e fiscalização dessas estruturas, em tantas instâncias
(Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Semad), ANM, Poder Judiciário,
Ministério Público?”, indaga. “Que articulação era essa que fez com essas
empresas lograssem sucesso em seus objetivos corporativos?”
A principal conclusão,
diz Neri, é que a Vale utilizou o expediente do terrorismo de barragens para
garantir que pessoas fossem removidas das comunidades do Vale do Rio São João
(Socorro, Piteira, Tabuleiro e Vila do Congo) em Barão de Cocais, para que ela
possa executar um grande projeto de mineração da área, o Projeto Apolo.
Segundo ele, esse
projeto, que a empresa tenta, agora em 2024, licenciar pela sexta vez, fica em
volta dessas comunidades. “Desde 2020, a Vale começou a ceder seus direitos
minerários para outras empresas, implementando um projeto que se chama
‘mini-minas’”, diz Neri. “Ou seja, ao invés de licenciar um grande projeto de
mineração, licencia vários pequenos com empresas menores. E ela vem fazendo
exatamente isso agora.”
Neri conta que a
principal evidência da prática do terrorismo de barragem é o modo como se deram
as remoções. “No caso de Socorro, a declaração de estabilidade da barragem Sul
Superior foi retirada numa reunião no dia 7 de fevereiro de 2019 – 13 dias após
o massacre em Brumadinho”, explica. “Na ocasião, foi decidido entre ANM, Semad,
MP e Prefeitura de Barão de Cocais que as pessoas seriam removidas, mas não
havia nenhuma anomalia, nenhum sinal de risco, nenhuma alteração na estrutura,
e é a própria Vale diz isso seus informes.”
Para piorar,
acrescenta, a remoção dos habitantes do local foi feita de madrugada, sob o som
de sirenes e alto-falantes dizendo “atenção, esta é uma situação real de
rompimento de barragem”. “Havia duas semanas que as pessoas viam, todos os dias
na TV, a retirada de centenas de corpos de Brumadinho”, conta Neri “Aí, no meio
da noite, tocam sirenes falando de um risco real, sendo que as remoções foram
decididas de tarde. É evidente que usaram o terror da tragédia em Brumadinho
para que as pessoas saíssem deixando tudo para trás.”
• A vida controlada pela Vale
Foi o que teve que
fazer, mas por causa de outra barragem, a engenheira geóloga Ana Carla de
Carvalho Cota, no dia 19 de janeiro de 2022. Eu morava na ‘zona de morte’ (Zona
de Auto Salvamento – ZAS) da Barragem do Doutor, da Vale, em Antônio Pereira”,
conta. “Ela foi elevada a nível 2 de emergência e a empresa anunciou que faria
as remoções de forma preventiva de todos que moravam na ZAS. A lama chegaria na
minha casa em seis segundos, caso a barragem rompesse.”
Cota e seus dois
filhos, de 12 e 14 anos, e todos os vizinhos – cerca de 600 pessoas – foram
removidos. Desde então, há dois anos e oito meses, a família mora num quarto do
Hotel Providência, em Mariana (MG). “Na verdade, estamos sobrevivendo, sem as
condições adequadas pra uma família e desenvolvimento saudável dos meus
filhos”, reclama. “Não é um lar, não atende as necessidades básicas pra
desenvolvimento saudável de duas crianças.”
Para ela, viver no
hotel é viver numa prisão em regime semiaberto. “Eu tenho direito a sair, mas
todos os dias tenho que voltar para dormir no hotel”, relata. “Minha vida
é controlada pela Vale, nossa
alimentação diária é no hotel, perdemos
a autonomia da nossa vida. E isso é adoecedor. Até hoje, eu não sei o que será
do meu futuro. Não recebi nenhuma indenização, não tenho mais casa própria, e
tudo isso fica na invisibilidade. A Vale continua negando direitos.”
Se viver no hotel é
ruim, na ZAS não era melhor. “Morar lá até a remoção causou danos irreversíveis
à minha saúde”, conta Cota. “Pois o medo, o pânico de a barragem romper,
principalmente nos períodos de chuva intensa, era o que chamamos de terrorismo
de barragens promovido pela Vale no nosso território. Eu fui diagnosticada na época com síndrome do
pânico. Foram muitas crises, toda vez que chovia e eu estava em casa na ZAS eu
tinha crise de pânico. Além disso, desenvolvi dermatite atópica por estar
passando por longo período de estresse e comecei a ter hemorragia uterina.”
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Resposta da Vale
A Vale se posicionou
por meio da nota abaixo, enviada por sua assessoria de imprensa à Mongabay:
A Vale informa que é
infundada qualquer tentativa de atribuir à empresa a tese de usar de mecanismos
como meio de obter qualquer tipo de benefício. A Vale atua de forma
transparente, responsável e comprometida com a ética e o rigor à legislação.
A empresa esclarece
que a descaracterização de estruturas construídas a montante no Brasil é um
compromisso assumido pela Vale e que se tornou também uma obrigação legal.
Desde 2019, das 30 estruturas previstas no Programa de Descaracterização, 14 já
foram eliminadas, mais de 40% do total. Todas as barragens a montante da Vale
no Brasil estão inativas e são monitoradas permanentemente. As ações
implementadas nessas estruturas são objeto de avaliação e acompanhamento pelas
equipes técnicas independentes, que fazem parte do Termo de Compromisso
firmado.
As comunidades de Barão de Cocais localizadas
na Zona de Autossalvamento (ZAS) da barragem Sul Superior, citadas no estudo,
foram evacuadas preventivamente após a elevação de nível da estrutura, com o
objetivo de garantir a segurança da população. A estrutura está em processo de
descaracterização e a previsão de conclusão é 2029. As famílias evacuadas
firmaram acordos de indenização com a empresa ou estão em moradias escolhidas
por elas próprias, com todas as despesas custeadas pela Vale.
Com relação ao projeto
Apolo, também citado, a Vale esclarece que ele não está localizado no município
de Barão de Cocais. O projeto está situado entre os municípios de Caeté e Santa
Bárbara. Ele foi remodelado desde sua primeira versão em 2009, e foi desenvolvido
ao longo da última década a partir da escuta ativa com comunidades e entidades
ambientais.
Este novo projeto
também é resultado de evoluções nas soluções de engenharia e reflete a nova
forma de operar da Vale. O Novo Apolo não vai gerar rejeitos e não terá
barragem ou outra estrutura para disposição de rejeito. A produção do minério
de ferro será simplificada, com maior aproveitamento dos recursos minerais e
sem a utilização de água no processo de produção.
O projeto Apolo está
fora da área do Parque Nacional da Serra do Gandarela. Portanto, não irá
interferir nos limites, nem nas cachoeiras do Parque. Da mesma forma, o
empreendimento não afetará a disponibilidade de água na região, por estar
localizado após o ponto de captação de água para Belo Horizonte e Região
Metropolitana.
Adicionalmente, a
empresa irá monitorar os cursos d’água e, caso seja verificada qualquer
alteração, será feita a reposição conforme exige a legislação. Cabe esclarecer
que a reposição da vazão será realizada com a mesma água do aquífero, sem
alteração no volume ou na qualidade da água do curso d’água.
Fonte: Mongabay
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