quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Microplásticos: de crise ambiental a questão de saúde pública

Nas duas primeiras décadas dos anos 2000, o mundo viu a produção de plástico dobrar, alcançando a impressionante marca dos 460 milhões de toneladas produzidas apenas no ano de 2019, de acordo com a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Metade do plástico produzido no mundo foi feito nos últimos 15 anos, mas apenas 9% dos resíduos globais são reciclados.

Os apelos globais pela redução no consumo e na produção de plástico não são novidade. Contudo, enquanto governos e indústria engatinham em soluções de pouco impacto para reduzir a produção mundial de plástico, os efeitos da crise ambiental começam a alcançar, cada vez mais rápido, os seres humanos.

A comunidade científica tem investigado e identificado a presença de microplásticos em todo o ambiente, dos rios amazônicos aos tecidos internos do corpo humano. De acordo com a definição do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), os microplásticos são partículas plásticas sólidas não solúveis em água com tamanho que pode variar entre 0,001 a até 5 milímetros. As partículas com menos de 0,001 milímetro são classificadas como nanoplásticos e encontram-se numa escala em que podem ser absorvidas pelas células, fato que evidencia a necessidade de avanços para avaliar adequadamente seus possíveis riscos.

Uma pesquisa recente, conduzida por pesquisadores da Universidade de São Paulo e Universidade Livre de Berlim, publicada no Journal of the American Medical Association, mostrou que já é possível identificar a presença de microplásticos no cérebro humano. E não é só isso: os microplásticos também já foram identificados em nosso coração, pulmões e sangue.

Mas como esse material entra no corpo humano? Simples: ele está em toda parte, no ar que respiramos e na água que bebemos. Derivado do petróleo, o plástico pode levar séculos para se decompor na natureza, e à medida que se fragmenta em partículas cada vez menores contamina o ambiente. Um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) investigou a poluição do reservatório Guarapiranga, principal fonte de abastecimento da Região Metropolitana de São Paulo, a maior cidade da América Latina.

Os pesquisadores coletaram amostras de sedimentos em oito locais do reservatório, em momentos de seca e em períodos chuvosos. Os resultados apontam que as concentrações de microplásticos oscilam, e são maiores perto das áreas urbanas e durante a estação seca; contudo, a presença das partículas não se limita às áreas urbanas, com ampla intervenção dos seres humanos. Estudos conduzidos pela equipe do pesquisador da Unifesp e integrante do Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU_Ciência), Décio Semensatto, foram os primeiros a mostrar que os microplásticos estão amplamente difundidos em sedimentos de rios amazônicos. Isso significa que os efeitos da poluição já estão espalhados pelo globo, inclusive em lugares onde a intervenção humana parece menos aparente, como na maior reserva de biodiversidade do planeta, a Amazônia. Outras pesquisas também apontam a ingestão de plástico por peixes de diversos níveis tróficos nos rios amazônicos.

Apesar de carregarem “micro” em seu nome, os impactos dos microplásticos à saúde humana não devem ser desprezados. Um estudo publicado no New England Journal of Medicine demonstrou que a presença de micro e nanoplásticos pode estar relacionada ao aumento de ataques cardíacos e derrames. Podem também afetar o equilíbrio químico e hormonal em mamíferos, com consequências diretas na tireoide, nos testículos e nos ovários, como destacou um estudo publicado na Frontiers in Endocrinal Medicine.

Dos oceanos ao nosso cérebro, os micro e nanoplásticos têm se tornado uma preocupação crescente para a comunidade científica — e devem ter a atenção de toda a sociedade. Os esforços governamentais e internacionais não têm se apresentado à altura da crise. Pesquisadores que estão desenvolvendo análises e estratégias para redução da produção e do consumo de plástico precisam passar a atuar lado a lado dos responsáveis por criar e implementar políticas públicas em seus respectivos países.

Temos o exemplo da Rede Colaborativa de Pesquisa em Poluição da Água e Recursos Hídricos (HydroPoll), que reúne pesquisadores da Unifesp, USP, Unesp, UFSCar, UFABC, UFJF, Ufersa, Univates e representantes da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), mas as iniciativas ainda são poucas em números, alcance e investimentos diante do tamanho e da urgência do desafio.

Na natureza, o impacto da poluição causada pelo plástico já é uma realidade, com o registro anual da morte de milhões de animais, de pássaros a organismos marinhos. Estudos apontam que, até o ano de 2050, praticamente todas as aves marinhas estarão consumindo plástico. Pouco a pouco, essa crise começa a alcançar a espécie humana e, como todas as crises ambientais, passará a ser também uma crise de saúde pública.

 

¨      Estudo revela correlação entre microplásticos e graves problemas de saúde

Os plásticos estão presentes em embalagens de alimentos, pneus, roupas, tubulações de água e em muitos objetos do dia a dia. Eles liberam partículas microscópicas, mais conhecidas como microplásticos, que acabam no meio ambiente, podendo ser ingeridas ou inaladas pelas pessoas e animais.

Um estudo publicado ontem (6) na revista Nature revelou uma correlação entre esses microplásticos e a saúde humana. Conduzida com mais de 200 pacientes submetidos à cirurgia, a pesquisa revelou que quase 60% deles apresentavam microplásticos, inclusive nanoplásticos, em uma artéria principal. Aqueles que os tinham apresentaram 4,5 vezes mais chance de sofrer um ataque cardíaco, AVC ou óbito aproximadamente 34 meses após a cirurgia em comparação com aqueles cujas artérias estavam livres de plástico.

Contudo, os pesquisadores alertam que o estudo não estabelece uma relação causal entre as pequenas partículas e os problemas de saúde. Fatores não investigados, como o status socioeconômico, podem estar contribuindo para tais problemas, e não os plásticos em si.

Os cientistas encontraram microplásticos em praticamente todos os lugares que pesquisaram: nos oceanos, em frutos do mar, no leite materno, na água potável, pairando no ar e precipitando-se com a chuva. Esses contaminantes não apenas estão ubíquos, mas também são duradouros, muitas vezes levando séculos para se decompor. Como resultado, as células encarregadas da remoção de resíduos têm dificuldade em degradá-los, resultando no acúmulo de microplásticos nos organismos.

Em humanos, essas partículas foram encontradas no sangue e em órgãos como pulmões e placenta. Contudo, o acúmulo não implica necessariamente em danos. Os cientistas têm se preocupado com os efeitos dos microplásticos na saúde há cerca de 20 anos, mas avaliar rigorosamente tais efeitos tem sido desafiador, conforme observa Philip Landrigan, pediatra e epidemiologista do Boston College em Chestnut Hill, Massachusetts.

Giuseppe Paolisso, médico de medicina interna da Universidade da Campânia Luigi Vanvitelli em Caserta, Itália, e seus colegas, sabendo que os microplásticos são atraídos por moléculas de gordura, investigaram se essas partículas se acumulariam em depósitos de gordura, chamados placas, que podem se formar no revestimento dos vasos sanguíneos. A equipe acompanhou 257 pacientes submetidos a um procedimento cirúrgico para reduzir o risco de AVC, removendo placas de uma artéria no pescoço.

Os pesquisadores examinaram as placas removidas sob um microscópio eletrônico. Observaram bolhas irregulares – evidências de microplásticos – misturadas com células e outros resíduos em amostras de 150 participantes. Análises químicas revelaram que a maioria das partículas era composta por polietileno, o plástico mais comum no mundo, frequentemente encontrado em embalagens de alimentos, sacolas de compras e tubos médicos, ou cloreto de polivinila, conhecido como PVC ou vinil.

Em média, participantes com mais microplásticos em suas amostras de placas também apresentavam níveis mais elevados de biomarcadores de inflamação, indicando como as partículas podem contribuir para problemas de saúde. Se elas ajudam a desencadear a inflamação, podem aumentar o risco de ruptura da placa, liberando depósitos de gordura que podem obstruir os vasos sanguíneos.

Comparativamente aos participantes sem microplásticos nas placas, aqueles com microplásticos eram mais jovens, mais propensos ao sexo masculino, mais propensos a fumar e mais propensos a ter diabetes ou doenças cardiovasculares. Como o estudo incluiu apenas pessoas submetidas à cirurgia para reduzir o risco de AVC, não se sabe se essa associação se mantém em uma população mais ampla.

 

Fonte: Por Décio Semensatto, Mariana Ceci e Anna Miranda em Le Monde/eCycle

 

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