Fogo e clima: previsões científicas sobre
os efeitos danosos do aquecimento global vão-se confirmando
Entre 2004 e 2014, de
forma incipiente e incompleta, o Brasil prenunciou a possibilidade de alcançar
o desenvolvimento sustentável de sua agricultura, uso da terra e manejo da
vegetação natural. A tecnologia desenvolvida por décadas em centros de pesquisa,
públicos e privados, e a elevação das cotações internacionais das commodities
agrícolas resultaram em alto crescimento da produtividade, produção e da
exportação de produtos de origem agrícola.
Ao mesmo tempo, devido
à valorização cambial, pelo menos até 2011, o aumento dos preços internacionais
não foi totalmente repassado para o consumidor brasileiro. Concomitantemente, o
mercado de trabalho esteve aquecido e junto com programas federais de transferência
de renda aumentaram a capacidade de consumo e a sensação de segurança
alimentar, fazendo com que o Brasil deixasse o Mapa da Fome da FAO, em 2014.
Pelo lado ambiental,
programas e ações públicas mostraram-se eficientes na detecção imediata e
diminuição do desmatamento da Amazônia. Em 2004, foram desmatados 27.772 Km2
nesse bioma, valor que caiu 82%, atingindo 5.012 Km2, em 2014 (INPE, 2022).
Agentes públicos, especialmente os do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), chegaram a inutilizar máquinas,
equipamentos e produtos associados a crimes ambientais, além de aplicarem
milhares de multas aos criminosos.
Em 2024, observa-se
outra realidade, embora o Governo Federal tenha sido recuperado pelas forças
políticas que governaram de 2003 a 2015. O negócio agrícola vai bem, mesmo com
os preços das commodities não mantendo os valores estelares de 2020 a 2022, na
pandemia da Covid 19. A retomada do crescimento econômico e o amplo alcance do
Novo Bolsa Família resultaram em melhoria da segurança alimentar no Brasil,
ainda que, em 2023, não tenha se repetido o nível de 2013, o melhor em todos os
levantamentos do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Na área ambiental,
contudo, mesmo que tenha havido redução no desmatamento da Amazônia, em 2023,
quase nada de alvissareiro se vislumbra, diante do ar esfumaçado que cobre
grande parte do País. As imagens chocantes de grandes rios da Amazônia secando,
as ondas de calor e os focos de incêndio espalhados pelos estados trazem
perplexidade e desalento, com muitos expressando a opinião de perda de controle
sobre os eventos climáticos extremos. Mesmo porque há maiores dificuldades
sociais e políticas para a implantação de medidas preventivas e corretivas
nessa área.
A moda do noticiário
recente é o fogo, mas há alguns meses foi a chuva excessiva que trouxe graves
prejuízos humanos e materiais ao Rio Grande do Sul. O fato é que a seca e o
fogo espalhados pelo País e as chuvas torrenciais no Sul estão revelando que as
previsões científicas sobre os efeitos danosos do aquecimento global vão-se
confirmando e, pior, com uma rapidez imaginada por poucos. Aponta-se o Brasil
como um dos países mais afetados pelo aumento da temperatura na Terra.
Na esperança da volta
das chuvas, a reação imediata de grande parte dos governantes e mesmo de
membros da academia foi a de atribuir a responsabilidade dos milhares de focos
de fogo espalhados no território brasileiro à ação orquestrada de uma quadrilha
organizada.
Um reducionismo
perigoso, pois crime, muitas vezes, dá ideia de marginalidade, em todos os
sentidos do termo, de ação de uma minoria, que poderia ser contornada mediante
ação policial efetiva do Estado. Na agricultura, alguns atribuem os problemas
ambientais ao bando do ogronegócio, não superior a 2% do agronegócio todo.
Crimes há em
abundância e devem ser combatidos com rigor, destruindo as ferramentas e
máquinas dos criminosos e causando mais prejuízos ao seu bolso e patrimônio
imobiliário. Mas deve-se atentar que, mesmo com bom gerenciamento, é
insuficiente a capacidade orçamentária do governo para agir como bombeiro,
apagando fogo e resgatando vítimas de enchentes, vendavais etc., como
financiador da reconstrução de áreas afetadas por eventos extremos e como
polícia ambiental.
O instinto privado de
querer extrair, rapidamente e ao esgotamento, o máximo benefício na exploração
de tudo o que encontra pela frente tende a predominar. Visão estratégica, mesmo
que baseada apenas em análises econômicas de longo prazo, são raras. Exemplo, o
governo brasileiro, em cima da hora, está solicitando que a União Europeia não
barre, a partir de 2025, as importações de produtos do agronegócio brasileiro
em áreas desmatadas depois de 2020.
Pode-se torcer para
que se obtenha a extensão de prazo, mas deve-se reconhecer que, entre 2016 e
2022, a ação pública foi de desconsiderar tais possibilidades. Quem sabe,
imaginando que a China, disparada nosso maior importador atual de alimentos,
não tome atitude como da União Europeia, o que pode ser uma quimera. Abusando
dos jargões antigos, o empurrar com a barriga ou sua tradução brasileira, dar
um jeitinho, pode dar com “os burros n’água”.
Outro exemplo,
específico para o ramo sucroenergético. Confirmando análises anteriores, em
2024, foi divulgado estudo que prevê que, devido às mudanças climáticas, com
redução da frequência e quantidade de chuvas, a produção de cana-de-açúcar no
Centro-Sul do Brasil (90% da produção nacional) deverá se reduzir entre 5%
(cenário otimista) e 20% (cenário pessimista), nos próximos 10 anos (CNPEM,
2024). Também em 2024, cerca de 400 mil hectares de cana-de-açúcar sofreram
queimadas não controladas em São Paulo. Vai se conformando, aos olhos dos
leigos, o que os estudos científicos estão apontando há mais tempo. Resta saber
até que ponto tais evidências estão sendo incorporadas no planejamento das
empresas sucroenergéticas.
O que vem acontecendo
no Brasil não decorre apenas de fatores internos. O aquecimento é global, como
suas causas, e exige intervenções de mitigação por todos os países, em especial
os desenvolvidos. Contudo, é importante aprofundar as discussões sobre como o
Brasil contribui para o aumento da temperatura, como a sociedade vem-se
posicionando em relação a isto e quais são as ações privadas e políticas
públicas necessárias para seu enfrentamento.
Primeiramente, deve-se
procurar quantificar o problema, o que aqui se faz com a análise da variação
temporal do total e da participação dos setores econômicos na emissão de Gases
de Efeito Estufa (GEE).
A grande contribuição
para a emissão de GEE no Brasil vem da AFOLU (em português, agricultura,
florestas e outros usos da terra), com média de 67,1%, entre 2003 e 2020. A
participação média estrita da Agropecuária foi de 31,4% e tendeu a crescer de
2003 e 2012, de 14,8% para 41,0%. Em seguida houve diminuição, para 31,1%, em
2020. Mesmo em termos absolutos, a geração de GEE pela Agropecuária teve
crescimento pouco expressivo, de 2,8%, de 2012 a 2020.
Quanto ao LULUCF (Uso
da Terra, Mudança do Uso da Terra e Florestas), observa-se grande redução de
sua participação na geração de GEE, de 72,6%, na média do biênio 2003/04, para
17,9%, no quinquênio 2010/14, em linha com a redução já vista do desmatamento
da Amazônia. Após, tal participação cresceu, para 36,1%, em 2020, voltando a
ser o principal gerador de GEE. Em termos absolutos, a LULUCF emitiu 284
milhões de toneladas de CO2, na média de 2010/14, valor que passou para 644
milhões de toneladas de CO2, em 2020, aumento de 127%.
Não resta dúvida que
as mudanças no uso da terra, em específico o desmatamento, foi o grande
responsável pelo Brasil alterar sua trajetória, de redução para elevação da
emissão do GEE. É bom destacar que o desmatamento está associado,
principalmente, à expansão das atividades agropecuárias, como o plantio de soja
e milho e das pastagens.
A segunda preocupação
é procurar entender a razão mais geral dessa inversão. Ela pode ser encontrada
no campo da política, da ação governamental e de parte significativa da
sociedade civil, capitaneada pelas lideranças do agronegócio. Os governos de
Michel Temer e, mais fortemente, de Jair Bolsonaro investiram forte e
eficazmente contra a legislação e a ação pública de proteção ambiental.
Milhares de regulamentações e multas foram anuladas, liberou-se a
comercialização de madeira apreendida em ações públicas contra o desmatamento,
diminuiu-se o efetivo de funcionários atuando na área ambiental.
Em nenhum momento Jair
Bolsonaro, enquanto presidente, se avexou em contrariar as evidências
científicas e questionar o fato e as consequências do aquecimento global. Teve
apoio explícito de bem mais que 2% dos ruralistas, que chegaram a comemorar, em
2019, o dia do fogo. Mais grave foi a conivência ou a omissão das lideranças
mais expressivas do agronegócio. Seu silêncio foi ensurdecedor, talvez
inebriadas pelos lucros exorbitantes obtidos na pandemia da Covid 19.
Momento este de
insustentabilidade plena, preços agropecuários lá em cima, comida cara e
insegurança alimentar atingindo a maioria da população brasileira, destruição
ambiental em expansão. Aliás, o defensor do efeito negativo duplo, literal e
figuradamente, da boiada sobre o ambiente, Ricardo Salles, foi agraciado por
exatos 440.918 ou 2,7% dos votos dos paulistas para a Câmara dos Deputados. Um
apoio generalizado na elite ruralista de São Paulo.
O terceiro ponto diz
respeito às possibilidades de se escapar deste clima infernal. De pronto, é
necessário se apostar e trabalhar para que no ambiente social haja mais pessoas
e instituições se mobilizando em favor da defesa do ambiente e que as cobranças
sobre o agronegócio como um todo aumentem. É possível que entre as suas
lideranças haja quem respeite a ciência e se preocupe com as consequências
econômicas negativas do aquecimento global. Mas, elas estão na moita e não se
manifestam contra a enxurrada de decisões legislativas e de executivos
estaduais de desregulamentação e descaso com o meio ambiente.
No campo da tecnologia
agrícola, há muitas pesquisas já desenvolvidas que mostram possibilidades de
cultivos e manejos de rebanho menos emissoras de GEE. O Governo Federal,
através da EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e no exercício
de políticas agrícolas, como da assistência técnica e crédito rural, pode
trabalhar com o indutor daquelas tecnologias.
Outra ação diz
respeito à internalização privada dos custos e da responsabilidade da prevenção
e combate às consequências, como o fogo, do aquecimento global. Um exemplo
claro e atual pode ser desenvolvido para o estado de São Paulo. Fora as regiões
mais orientais, a cana-de-açúcar domina o território paulista. Na Região
Administrativa de Ribeirão Preto, à semelhança de outras regiões, essa lavoura
ocupa 70% da área destinada a todas as lavouras, às florestas plantadas e às
pastagens.
As usinas ou
agroindústrias sucroenergéticas mantêm sob sua administração direta 60% dos
canaviais, plantados em terras próprias, 20%, e arrendadas de pequenos, médios
e mesmos grandes proprietários, 80%. Os outros 40% dos canaviais estão nas mãos
de grandes fornecedores, normalmente com mais de 1.000 hectares plantados.
Tal
concentração/domínio territorial veio acompanhado de vantagens privadas, em
especial a redução do custo médio de produção da cana-de-açúcar e de seus
derivados. Inesperada e contraditoriamente, após a substituição massiva da
colheita manual de cana queimada (de forma controlada) pela colheita mecânica
de cana crua, as usinas se mostraram despreparadas para controlar o fogo
aleatório em seus canaviais.
A maior delas,
reconhecida pela capacidade gerencial e tecnológica, reportou a queima de 20
mil hectares de seu canavial. Manifestou-se uma externalidade extremamente
negativa, que atingiu as parcas áreas de reserva florestal, a fauna, as cidades
e as pessoas, acometidas de agravos respiratórios. Antes (ou pelo menos junto)
de querer financiar os estragos privados provocados pelo fogo, o Estado deveria
exigir que cada usina apresentasse um plano de contenção do fogo na área sob
seu domínio, envolvendo as reservas florestais e a área dos fornecedores.
Certamente, pode-se
pensar em atitudes semelhantes para outros complexos agroindustriais espalhados
pelo Brasil. E ir adiante, usar dos instrumentos legais existentes e criar
novos para que se exijam reparos à vegetação natural, se desaproprie (descontadas
as multas por crimes ambientais) ou mesmo se exproprie áreas em que as
queimadas tenham caráter doloso.
Ainda que extremamente
necessário, o papel governamental de bombeiro não é suficiente. A ação pública
federal deve reforçar as ações de controle e combate ao desmatamento, que já
deu certo na Amazônia e deve ser estendido para outros biomas, em especial os
Cerrados e o Pantanal. Escorregando para a pieguice, é bom se afirmar que
tentar prevenir é melhor do combater o fogo.
Fonte: Por José
Giacomo Baccarin, em A Terra é Redonda
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