Licença voluntária: útil aos povos ou à
indústria da saúde?
Mecanismo é promovido
como alternativa menos drástica à “quebra de patente” – mas seus benefícios são
menores do que parecem. Caso brasileiro é exemplar: mesmo com acordo de licença
voluntária, país paga 20 vezes o preço internacional de remédio para HIV
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O que é uma licença
voluntária? O que é uma licença compulsória? Para responder a ambas as
perguntas, primeiro é preciso entender o que são patentes. Afinal, esses
mecanismos só existem porque há um sistema de propriedade intelectual. As
patentes são títulos de propriedade que concedem direitos exclusivos a seus
detentores, impedindo terceiros de fabricar, usar, vender ou importar o produto
patenteado.
Esse privilégio de
exclusividade é válido por 20 anos, inúmeras vezes se estendendo para mais por
meio da estratégia de depósito de inúmeros pedidos de patentes para um mesmo
produto (evergreening). Os possíveis concorrentes são impedidos de atuar no mercado
durante o tempo de proteção estabelecido. Quando se aplicam a medicamentos e
tecnologias de saúde, as patentes priorizam os interesses privados sobre o bem
público, limitando o acesso a tratamentos e, potencialmente, colocando vidas em
risco.
O sistema de
propriedade intelectual passou por uma grande transformação em 1994 com a
criação do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual
Relacionados ao Comércio (Acordo TRIPS), que estabeleceu padrões mínimos a
serem seguidos por todos os países membros da Organização Mundial do Comércio.
A grande mudança foi a inclusão da proteção para produtos e processos
farmacêuticos. Nesse sistema, os detentores de patentes controlam a oferta de
seus produtos e definem seus preços. A exclusividade conferida pelas patentes
permite que as empresas farmacêuticas pratiquem preços elevados, bloqueiem a
concorrência no mercado e explorem as necessidades essenciais das pessoas.
Entretanto, mesmo
dentro desse sistema que gera profundas desigualdades ao redor do mundo,
existem salvaguardas de saúde pública para minimizar esses impactos e proteger
o interesse público: a licença compulsória é uma delas, enquanto a licença
voluntária não é.
• Diferenças decisivas
A licença compulsória
é uma ação que permite que o Estado autorize a produção de um medicamento
patenteado sem o consentimento do titular da patente, com o objetivo de
minimizar os efeitos nocivos das patentes sobre o acesso a medicamentos. Embora
seja muitas vezes chamada de “quebra de patentes”, a licença compulsória não se
trata de uma violação, já que a patente segue sendo reconhecida e o titular
recebe royalties, que são uma remuneração paga ao proprietário para que aquele
produto possa ser explorado e comercializado. A licença compulsória é uma
medida legítima e lícita. Não há uma subversão ao sistema, não é fugir das
regras — ela é parte das regras.
Diversos países em
diversas situações fizeram uso de licenças compulsórias, tais como os Estados
Unidos da América (EUA), Canadá, Itália, Malásia, Tailândia, Moçambique, Índia,
entre outros. Esse mecanismo só foi utilizado uma única vez no Brasil, em 2007.
O caso envolveu o medicamento efavirenz, que era utilizado por 38% das pessoas
vivendo com HIV em tratamento no Brasil. Desde o final de 2006, o governo vinha
tentando negociar com a empresa titular da patente, que apresentou propostas de
redução do preço insatisfatórias. A saída adotada pelas autoridades acabou
sendo o licenciamento compulsório, o que beneficiou a população.
Em contrapartida, a
licença voluntária é um acordo entre o titular da patente e um terceiro,
permitindo a produção e comercialização do medicamento sob determinadas
condições. Esse acordo é firmado por meio de um contrato entre o detentor da
patente (licitante) e outras empresas (licenciados), estabelecendo os termos
sob os quais uma versão genérica de um medicamento patenteado pode entrar no
mercado por fornecedores alternativos, podendo impor limitações territoriais
sobre onde e para quem o produto pode ser vendido, controlar o fornecimento de
ingredientes farmacêuticos ativos (IFAs) e definir preço e demanda, além de
impor outras restrições. É “voluntária” porque depende do interesse e decisão
do detentor da patente. Interesse este que não é voltado para atender a saúde
dos povos, e sim garantir seus negócios.
As licenças
voluntárias podem ser assinadas bilateralmente entre produtores ou podem ser
intermediadas, como acontece com as licenças realizadas por meio do Medicines
Patent Pool (MPP, cujo nome pode ser traduzido por algo como “Banco comum de
patentes de remédios”) – uma organização internacional criada em 2010 e apoiada
pela Unitaid. Esta, por sua vez, é outra organização internacional da área do
acesso a medicamentos, criada em 2006 por diversos países, entre eles o Brasil.
Apesar de ser fundador da Unitaid, o Brasil tem sido sistematicamente excluído
das licenças intermediadas pelo MPP.
• O revelador caso do dolutegravir
Um dos recentes
acordos de licença voluntária intermediado pelo MPP é voltado para a produção e
comercialização do dolutegravir (DTG). o DTG é um medicamento fundamental no
combate ao HIV/Aids, recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como
tratamento de primeira e segunda linha para todas as populações desde 2019.
Aprovado em 2013 pela Food and Drug Administration (FDA), agência sanitária dos
Estados Unidos, o dolutegravir não é mais um medicamento novo, mas ainda está
sob proteção patentária em diversos países.
Em 2014, o DTG foi
objeto de uma licença voluntária intermediada pelo MPP entre a empresa GSK/ViiV
e produtores de genéricos, que buscou permitir a produção genérica do
dolutegravir a preços reduzidos para pelo menos 95 países. As vendas fora dos
países estabelecidos no contrato são permitidas onde a venda de uma versão
genérica não infringe uma patente existente: é o caso de países em que uma
licença compulsória foi emitida. Há previsão ainda do direito de combinar DTG
com outros antirretrovirais (ARV) e desenvolver novas combinações em dose fixa.
Os termos desta licença voluntária são públicos e podem ser encontrados aqui.
O Brasil foi excluído
deste acordo de licença voluntária, assim como de todos os outros no âmbito da
MPP, sob a justificativa de ser considerado um país de “média renda”. A
definição de “renda média per capita” para justificar a exclusão do Brasil de
várias licenças ignora a desigualdade econômica interna do país e afeta
diretamente os usuários do SUS, que em sua maioria são pessoas em situação de
vulnerabilidade. Além disso, a métrica desconsidera também os índices
epidemiológicos, já que o Brasil tem o maior número de pessoas vivendo com HIV
da América do Sul e uma taxa de novas infecções de 40 mil pessoas por ano.
Apesar da exclusão do
Brasil do acordo mencionado anteriormente, em 2020, outro acordo de licença
voluntária foi assinado bilateralmente entre o laboratório público
Farmanguinhos e a GSK/ViiV. Este acordo de transferência de tecnologia foi
denominado como Aliança Estratégica de longo prazo. De fato, sua vigência segue
até 2029, muito além da principal patente do medicamento, que expira em 2026 no
Brasil. Entretanto, à diferença do acordo firmado com a MPP, os termos deste
são desconhecidos. O processo de formação dessas parcerias público-privadas nem
sempre é transparente ou bem regulado. Sem uma governança adequada, há o risco
de que essas alianças se tornem um mecanismo para um favorecimento contrário ao
interesse público. Não há mecanismos robustos de monitoramento e avaliação das
alianças formadas, sendo difícil medir os resultados reais das parcerias em
termos de inovação, desenvolvimento econômico e benefícios sociais.
• Falta de transparência pesa no orçamento
A falta de
transparência das licenças voluntárias é preocupante especialmente quando elas
envolvem instituições públicas como os laboratórios públicos oficiais (no
Brasil, Fiocruz, Butantan, etc). Todos os pedidos de acesso à informação sobre
os contratos, feitos pelo GTPI/Rebrip, foram negados com base em cláusulas que
estabelecem a confidencialidade das informações trocadas entre as instituições.
A negativa do acesso às informações contidas nos contratos frequentemente são
justificadas com alegações de que as licenças voluntárias contêm informações
comerciais confidenciais ou segredos comerciais. Mas, em contraste com essas
alegações, todos os acordos de licenciamento assinados pelo MPP são publicados
na íntegra e isso não parece ter causado nenhum dano competitivo ou comercial.
A coexistência de
diferentes tipos de acordos sobre os mesmos produtos, com alguns acordos
mantidos em sigilo, torna difícil identificar as opções reais de acesso para
determinado país, como ocorre com o dolutegravir. Isso também pode deixar
alguns produtores presos a acordos menos favoráveis, mesmo quando existem
termos mais vantajosos. A exclusão dos acordos de licenciamento voluntários
internacionais e a concessão de patentes imerecidas força o Brasil a assinar
contratos de transferência de tecnologia com condições ruins para o povo
brasileiro.
Em 2023, o Ministério
da Saúde do Brasil adquiriu 201 milhões de comprimidos de DTG e 10,8 milhões de
comprimidos da combinação do dolutegravir com outro fármaco, a lamivudina
(DTG/3TC), totalizando aproximadamente R$ 946 milhões, o que equivale a cerca de
52% do orçamento destinado à aquisição de medicamentos antirretrovirais no
mesmo ano. O preço unitário do comprimido de DTG comprado pelo Ministério da
Saúde foi de R$ 4,40. Comparado aos preços de mercado internacionais — hoje,
pela OPAS, o preço do dolutegravir é de R$ 0,22 — o Brasil paga 20 vezes a mais
do que deveria.
Este preço exorbitante
e injustificadamente alto reforça a demanda por maior transparência nos termos
do contrato de transferência de tecnologia entre a GSK/ViiV e Farmanguinhos. O
alto preço pago pelo governo brasileiro compromete o orçamento público, ameaça
a sustentabilidade do programa nacional de HIV e ilustra o impacto negativo dos
monopólios patentários, muitas vezes imerecidos, na política pública de saúde e
no acesso a medicamentos.
• Licença voluntária: entrave à saúde
pública
Além disso, e não
menos importante, a presença de acordos de licenciamento voluntário impede a
utilização da licença compulsória enquanto salvaguarda de saúde pública, já que
uma justificativa da impossibilidade de emissão de licença compulsória do dolutegravir
no Brasil foi a existência de uma licença voluntária em vigor – a aliança
estratégica entre Farmanguinhos e GSK/ViiV. Ou seja, essas duas medidas não são
somente diferentes, mas por vezes chegam a ser concorrentes no objetivo de
garantir menores preços, acesso aos tratamentos e a sustentabilidade do sistema
de saúde.
Esse caso recente
revela como o Brasil, ao conceder monopólios farmacêuticos, coloca-se como
refém da Big Pharma, com contratos secretos e decisões que beneficiam mais o
setor privado do que a saúde pública. O futuro exige mais transparência, ações
governamentais corajosas — como a licença compulsória já usada anteriormente —
e uma vigilância ativa para impedir abusos que prejudicam milhões de
brasileiros.
À medida que novos
tratamentos surgem no horizonte, como o caso do lenacapavir, o Brasil deve
aprender com o passado e agir de forma diferente, recusando-se a ser refém das
gigantes farmacêuticas. Mais uma vez, o Brasil foi excluído da licença
voluntária internacional recentemente anunciada pela Gilead para a produção do
genérico do lenacapavir. A licença compulsória poderia remover a barreira
patentária desse medicamento no país, possibilitando maior acesso à produção.
Transparência, justiça e saúde pública devem ser as prioridades, e não os
lucros bilionários de transnacionais farmacêuticas.
Fonte: Por Susana van
der Ploeg e Carolinne Scopel, para a coluna Saúde não é mercadoria, em Outra
Saúde
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