Agronegócio financia lobby para patrulhar
livros didáticos
“O QUE AS CRIANÇAS e
os adolescentes estão aprendendo que vai ser bom para o mundo do trabalho?”,
perguntou Christian Lohbauer, vice-presidente da associação De Olho No Material
Escolar, a uma plateia de políticos e empresários reunidos na capital paulista,
no início de outubro. Ele discursava durante evento do Lide, grupo criado pelo
ex-governador de São Paulo, João Dória.
“Ela não pode
aprender, todos os dias, em todos os materiais, há 30 anos, que tem trabalho
escravo na cana-de-açúcar. Ela não pode aprender que o alimento brasileiro está
envenenado com agrotóxicos. Ela não pode aprender que a pecuária é responsável
pela destruição da Amazônia, porque não é verdade”, o próprio Lohbauer
respondeu.
Cientista político e
um dos fundadores do Partido Novo, ele lidera uma organização que se apresenta
como um grupo de pais e mães apartidários preocupados com o ensino dos filhos.
Na prática, porém, trata-se de um movimento financiado por empresas do agronegócio
com um objetivo: alterar materiais didáticos para retratar o setor de forma
mais positiva.
Com apenas três anos,
a De Olho No Material Escolar, conhecida como Donme, cresceu e vem ganhando
espaço em instituições públicas. Já fechou parceria com a Universidade de São
Paulo (USP), tem portas abertas nas secretarias de Educação e de Agricultura do
estado e mantém diálogos com a cúpula do Congresso, em Brasília, na tentativa
de influenciar o novo Plano Nacional de Educação (PNE) – que vai estabelecer as
diretrizes da educação na próxima década.
Por trás desta
atuação, porém, está o financiamento de dezenas de empresários e corporações do
agronegócio. A organização declara 70 empresas entre os membros, mas não diz
quem são. Um estudo ainda inédito, de pesquisadoras da Faculdade de Educação da
USP e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), mostra que na lista
estão grandes associações, como a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag),
que representa companhias como a JBS, a Cargill, o Itaú BBA e a Cosan.
A associação também é
financiada pela Croplife Brasil, representante das maiores fabricantes
multinacionais de agrotóxicos e que era presidida por Christian Lohbauer até
2023, quando ele deixou o cargo para assumir como vice-presidente da Donme.
“Somos uma entidade
que busca a atualização do material escolar com base em conteúdo científico,
equilibrado e que gere perspectivas positivas para os estudantes”, afirma a
Donme em seu site.
Em conjunto com a USP,
por exemplo, a organização criou a “Agroteca”, uma biblioteca virtual com
publicações sobre o agronegócio. Nela, é possível encontrar conteúdos que negam
que o Brasil seja o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, tema frequente nas
falas da Donme.
No entanto, segundo
dados da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a
Agricultura), o Brasil lidera com folga o ranking de consumo de pesticidas,
quando considerados os dez países com as maiores áreas de lavoura no mundo. A
média aqui é de mais de 12 kg aplicados por hectare. Na sequência estão
Indonésia (6,5 kg/ha), Argentina (5,9 kg/ha) e Estados Unidos (3 kg/ha).
Negar a
responsabilidade da pecuária pelo desmatamento na Amazônia e a existência de
trabalho escravo na cana-de-açúcar também fazem parte desta estratégia – ainda
que diversos estudos apontem a criação de gado como o principal vetor da
destruição na Amazônia, e mesmo que a cana seja um dos setores que mais
empregam mão-de-obra escrava, com 1.105 trabalhadores resgatados nos últimos
quatro anos.
Especialistas em
educação pública ouvidos pela Repórter Brasil classificam a organização como
uma versão atualizada do “Escola Sem Partido”, que há uma década passou a
fiscalizar o material didático e promover perseguições a professores para
impedir uma suposta “doutrinação ideológica” nas escolas.
Para o professor da
pós-graduação em Educação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ) Rodrigo Lamosa, que pesquisa políticas públicas de educação, o
posicionamento da organização é, muitas vezes, “absolutamente ideológico e nada
científico”.
“Os livros didáticos
são produzidos por autores diversos, são avaliados no interior das editoras e
depois no Programa Nacional do Livro Didático, que é um dos maiores programas
de distribuição de livros públicos e gratuitos do mundo”, afirma Lamosa. “Então,
por mais que a gente possa ter divergências e críticas a alguns livros, isso é
parte do processo que constitui a diversidade do campo educacional”,
complementa
Um dos objetivos do
movimento é ir contra essa diversidade para impor uma visão única, opina o
professor da Faculdade de Educação da USP Daniel Cara. “O agronegócio considera
que a educação é uma esfera importante para disputa da hegemonia das ideias na sociedade,
para disputa da formação de opinião pública”, afirma ele, que é membro da
Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE).
• Lobby da associação mira plano nacional
de educação
Inicialmente batizada
de “Mães do Agro”, a Donme foi fundada em 2021 pela pecuarista Letícia
Jacintho, atual presidente da associação.
Ela faz parte de uma
família influente no agronegócio, com empresas e fazendas em São Paulo e Goiás,
nos ramos de pecuária, cana-de-açúcar e soja. Letícia é considerada uma das
mulheres mais poderosas do agro pela revista Forbes, juntamente com a sua sogra,
Helen Jacintho. Também fundadora da Donme, Helen é membro do Conselho Superior
do Agronegócio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).
Em três anos, a
organização conquistou associados em 17 estados e 129 cidades. Entre suas
ações, a entidade realiza palestras, treinamentos e análise de materiais
escolares. Organiza reuniões com editoras de livros didáticos, além de
excursões a feiras do agronegócio para alunos, professores e profissionais das
editoras. Atua também no lobby em Brasília.
Apenas neste ano, a
organização já se reuniu pelo menos duas vezes com o presidente do Senado,
Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur
Lira (PP-AL), para debater o Plano Nacional de Educação (PNE). O documento deve
ser votado em 2025, com validade para os próximos dez anos.
O documento de
referência do plano, divulgado em dezembro, foi alvo de críticas da De Olho No
Material. A associação diz que a proposta é pouco plural, carece de “base
técnico-científica na abordagem do conteúdo” e apresenta “postura refratária à
iniciativa privada”.
As críticas foram
apresentadas em uma nota assinada conjuntamente por outras associações do agro,
como a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e a Sociedade
Rural Brasileira (SRB).
Desde então, a Donme
realizou diversas investidas em Brasília. Além dos encontros com Pacheco e
Lira, reuniu-se com o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), presidente da
Comissão de Educação da Câmara. Em março, o deputado apresentou os resultados de
um estudo da Donme, que avaliou as menções ao agro no material escolar, durante
uma reunião da Frente Parlamentar Agropecuária.
O deputado corroborou
a visão da associação de que os livros didáticos supostamente trazem uma visão
distorcida do agro, e prometeu pautar a Comissão de Educação. “Afinal de
contas, o agro é que sustenta, e é locomotiva deste país”, justificou.
Já em abril, quando o
Senado realizou uma sessão temática para debater o PNE, a Donme indicou vários
nomes para discursar. A sessão foi solicitada pela senadora Damares Alvares
(Republicanos-DF) a pedido da associação, segundo apurou a Repórter Brasil.
O PNE, porém, só deve
avançar quando for analisado o requerimento do deputado federal Rafael Brito
(MDB-AL) e de outros 13 parlamentares, para que seja criada uma comissão mista
de análise do plano, composta por deputados e senadores. Desde julho o pedido
está parado na Câmara.
Para a coordenadora da
Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, a Donme está
atuando junto com a bancada ruralista em torno do novo PNE, e pode impedir
avanços em temas como as mudanças climáticas.
Procurada, a De Olho
No Material Escolar disse em nota que trabalha para a melhoria da qualidade do
conteúdo didático sobre o agronegócio oferecido às escolas, independentemente
do tema. “Nosso principal ponto é que a ciência esteja presente nos livros didáticos
com dados e informações técnicas e reais, por isso a parceria com institutos de
pesquisas e instituições de ensino especializadas no setor”.
• Movimento influencia escolas
particulares
Embora já tenha
alcançado a cúpula do Congresso, o movimento teve início com uma simples carta
enviada a uma escola particular de Barretos, interior de São Paulo.
Letícia Jacintho e
outros pais escreveram para um colégio na cidade que utilizava o material
didático do sistema Anglo, para criticar como temas como desmatamento e povos
indígenas eram abordados. Segundo a carta, “as crianças são incentivadas a
manifestar piedade aos índios e repudiar a cultura da cana-de-açúcar [por
retirar as terras dos indígenas]”.
O protesto viralizou
quando o agrônomo e político Xico Graziano, ex-secretário de Meio Ambiente no
governo de José Serra e voz influente no agro, divulgou a história. “Tem coisa
errada [nos livros], tem coisa doutrinária, esquerda, esquerdismo”, disse Graziano.
Na carta ao Anglo, os
pais afirmavam que a realidade do campo é “totalmente” diversa da retratada nos
livros. “A cana-de-açúcar é responsável por uma parcela importantíssima de
nossos empregos e renda”, escreveram.
Após o episódio,
Letícia decidiu realizar um estudo sobre materiais didáticos, mas faltava o
financiamento. Foi quando entrou em cena a Croplife Brasil, associação das
fabricantes de agrotóxicos, que era então presidida por Christian Lohbauer.
“A gente [Croplife]
foi um dos principais financiadores do estudo, junto com todo um pessoal que eu
ajudei a angariar das associações do agro. A pecuária, os exportadores de
carne, os exportadores de frango e suínos, açúcar e etanol, que são setores
muito afetados [pelos livros escolares]”, lembrou Lohbauer em uma entrevista
recente.
Em janeiro de 2023,
Lohbauer deixou a presidência da Croplife para embarcar na Donme. Chamado de
“professor”, o executivo passou boa parte da carreira em empresas, como a
Bayer, e associações ligadas ao agronegócio, como a Abag. Ainda foi candidato a
vice-presidente do Brasil pelo partido Novo em 2018.
Ele também é
comentarista da Brasil Paralelo, produtora conhecida pela veiculação de
conteúdo audiovisual de extrema-direita, em um programa ao lado do deputado
federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP).
O estudo financiado
pela Croplife – o mesmo apresentado pelo deputado Nikolas Ferreira à FPA –
identificou que a maior parte das menções ao agro em 94 livros didáticos tinham
tom negativo. Um dos exemplos apresentados é um poema de 1991 de Ferreira Gullar,
que trata das condições precárias dos trabalhadores de cana-de-açúcar. Os
resultados da pesquisa são utilizados pela associação em palestras, entrevistas
e no lobby.
O discurso da Donme
sensibilizou ao menos um representante do sistema Anglo, Mario Ghio,
ex-presidente e atual conselheiro da Somos Educação, dona das marcas Anglo,
Mackenzie, Ática e Saraiva. Ele se lembrou da carta de Letícia durante o evento
do Lide neste mês.
“A gente se conheceu
num momento duro, a Letícia veio me dar uma ‘paulada na cabeça’. Ela veio me
criticar, e eu falei: ‘você tem razão’. Nós temos autores metropolitanos que
viveram uma vida urbana e que acham que o mundo agropecuário é o Jeca Tatu do Monteiro
Lobato ou é o destruidor da Amazônia, que eles leem em alguns meios de
comunicação. A gente precisou reconhecer o problema, andar pra trás, educar
todo mundo”, declarou.
Atualmente, a Somos
Educação mantém parcerias com a Donme para a elaboração de vídeoaulas e
treinamento para autores e editores. A reportagem não conseguiu confirmar se o
material do sistema Anglo é alterado sob orientação da Donme.
Questionada, a Somos
Educação declarou que “todo o material didático é atualizado anualmente,
seguindo as orientações curriculares do Ministério da Educação (Base Nacional
Comum Curricular e Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino
Fundamental), com todo o rigor técnico-pedagógico”. “A Somos Educação se pauta
pela pluralidade de ideias e busca manter seus materiais em constante
atualização”, finalizou.
• Parceria com a USP e aproximação do
governo de SP
Não foi apenas o Anglo
que abriu as portas para a De Olho No Material. Em Piracicaba (SP), a Escola
Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP, decidiu colocar sua
produção acadêmica à disposição da associação em um projeto de divulgação científica.
Assim nasceu em 2022 a
“Agroteca”, uma biblioteca virtual com conteúdo do agronegócio. No repositório,
porém, não há menções a fatos como a
responsabilidade do agronegócio por queimadas ou desmatamento.
Procurada, a Esalq não
respondeu aos questionamentos enviados pela reportagem.
O governo paulista
também abriu as portas para a Donme. “O primeiro estado que passou a adaptar os
seus materiais próprios, os escritos, até por orientação do [ex-governador
João] Dória, foi o estado de São Paulo junto com o movimento De Olho No
Material, justamente porque a gente concorda que não dá para demonizar aquilo
que nos sustenta”, declarou no evento do Lide o ex-secretário de educação do
estado, Rossieli Soares. Ele já foi secretário de Educação do Amazonas,
ministro da Educação do governo Michel Temer e é o atual chefe da pasta no
Pará.
A Repórter Brasil
questionou a secretaria de educação paulista sobre mudanças no material
didático e parcerias envolvendo a Donme, mas não houve retorno. Já a Donme
declarou que não tem qualquer acordo com o governo de São Paulo, apesar de a
sua presidente já ter dito em entrevista recente que está negociando com a
pasta um treinamento para professores, que se chamará “Mestres do Agro”.
A Secretaria de
Agricultura do estado também recebeu a Donme este ano, em reunião em fevereiro
sobre materiais escolares. “Precisamos promover conteúdos com embasamento
científico e vivência real para os jovens brasileiros”, afirmou após o encontro
o secretário da agricultura Guilherme Piai, que também vem de uma família de
produtores rurais.
Em setembro, a
secretaria anunciou a criação do programa Agro Jovem, “que prevê políticas
públicas para integrar as novas gerações ao campo”, iniciativa celebrada pela
De Olho No Material.
Para Lamosa, a Donme utiliza-se de uma estratégia
ideológica de disputa de espaço ao criar campanhas afirmando que os livros
didáticos e a escola estão de costas para o agronegócio. “É uma falácia dizer
que o agro não está dentro da escola. Todas as pesquisas sobre ações que eles
vêm produzindo [dentro e fora da escola] mostram que eles estão lá. A questão é
que eles querem o monopólio da escola”, finaliza.
Fonte: Repórter Brasil
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