Valério Arcary: Lições amargas
A derrota eleitoral de
Guilherme Boulos em São Paulo foi a maior que a esquerda sofreu neste segundo
turno. Não é fácil refletir sobre derrotas. Derrotas são tristes e dolorosas.
Estamos sob o impacto emocional da amargura. Ninguém está imune,
subjetivamente, da decepção e frustração. Manter a lucidez não é simples.
A derrota política foi
muito dura, mas parcial. Não foi nem estratégica, nem histórica. Se enganam
aqueles que sempre lhe foram hostis, tanto na esquerda mais moderada, quanto na
mais radical, e já profetizam que Guilherme Boulos teria saído diminuído. Guilherme
Boulos consolidou a posição de maior liderança popular e da esquerda
brasileira, depois de Lula. Esta conquista desperta rancores, rivalidades e
despeitos.
Guilherme Boulos
liderou a campanha unificada da esquerda com uma indomável coragem,
perseverança e dedicação. Foi hábil nas entrevistas agressivas, incansável nas
caminhadas pela periferia, brilhante nos debates e inspirador nos comícios.
Durante meses foi caluniado, pessoalmente, e difamado, politicamente. Drogado,
invasor, comunista, extremista, incendiário.
Nas vésperas do
primeiro e segundo turno foi vítima de crimes eleitorais sem precedentes, desde
a campanha de Fernando Collor contra Lula em 1989, há trinta e cinco anos:
cocainômano e apoiado PCC. Enfrentou a luta política-ideológica dificílima de
cabeça erguida. Denunciou que Pablo Marçal e Ricardo Nunes eram duas faces do
bolsonarismo, a corrupção no escândalo das creches e das obras sem licitação, a
cumplicidade com o PCC, se posicionou contra a guerra às drogas diferenciando
traficante de usuário, acusou Nunes pela privatização da Sabesp, defendeu a
anulação da concessão feita à ENEL, e muito mais. A campanha cometeu erros,
também, como seria inevitável, mas não é responsável fazer este debate em
público no dia seguinte da apuração. Ele deve ser feito, em primeiro lugar no
interior de nossas organizações.
Perdemos por uma
diferença de um milhão de votos. Foi um tsunami. A questão é: por quê? Estão
sendo divulgadas três explicações erradas.
A primeira é que Guilherme Boulos não devia ter sido o candidato da
esquerda porque o seu perfil seria, excessivamente, radical. Foi vocalizada
pelo prefeito eleito de Maricá: Quaquá é também, um dos vice-presidentes
nacionais do PT.
A segunda é que a
campanha teria feito um giro ao centro para reduzir a rejeição de Guilherme
Boulos, e esse erro transformou a derrota eleitoral em derrota política. Foi
vocalizada por Vladimir Safatle e Luís Felipe Miguel, professores
universitários da USP e UNB, mas tem apoio em uma parcela da esquerda radical.
A terceira é que teria
sido contaminada pela pressão do “identitarismo”, uma fórmula popularizada pelo
liberalismo, uma corrente ideológica estranha à esquerda, para fazer referência
às lutas dos oprimidos, em especial, as mulheres e a luta feminista, os negros
e o antirracismo, e os LGBT’s e a luta anti-homofóbica, e foi vocalizada por
Jesse Sousa, ex-presidente do IPEA.
Estas três explicações
são falsas porque desconhecem o resultado da apuração. Um milhão de votos não
são dez mil votos. Quando se perde por uma pequena diferença é razoável
considerar a hipótese de que, se a representação da esquerda tivesse sido feita
por outra candidatura, talvez tivesse sido possível vencer. Quando se perde por
uma pequena diferença é incontornável fazer o balanço da tática eleitoral, se
deveria ter sido mais radical ou mais moderada. Mas não foi o que aconteceu em
São Paulo.
A desvalorização da
diferença colossal não é, intelectualmente, honesta. Um milhão de votos não se
anulam com táticas eleitorais. O balanço deve ser, portanto, desapaixonado.
Nesta escala não importa se os programas de rádio e televisão deveriam ter sido
“assim ou assado”, se o programa para saúde, educação, transportes, habitação
deveriam ter sido outros. Nesta dimensão não tem palavra de ordem mágica. Não
há “abracadabra”.
Marxismo não é
fatalismo objetivista. Mas não é verdade que “tudo pode acontecer”. As margens
do que pode ocorrer são estreita. Por isso, fazemos cálculos, às vezes
acertamos, outras erramos. Desta vez erramos feio, porque subestimamos, mais
uma vez, a extrema-direita. As análises que defendiam que era possível vencer
repousavam em uma premissa fundamental: o fato de que em 2022, tanto Fernando
Haddad quanto Lula tinham derrotado Tarcísio de Freitas e Jair Bolsonaro na
capital.
Esta análise, que quem
escreve estas linhas defendeu, também, estava errada. Estas linhas são
autocríticas. Não é difícil concluir que a situação evoluiu, desde 2022, para
pior. Ocorreu uma mudança desfavorável na relação social e política de forças.
As votações somadas de Ricardo Nunes e Pabro Marçal, no primeiro turno, foram o
dobro da de Guilherme Boulos. E foi por uma estreitíssima margem que não
aconteceu um segundo turno sem a presença da esquerda, pela primeira vez.
Marxismo não é tampouco voluntarismo subjetivista. Há uma beleza “poética” na
aposta de que nossa militância pode reverter situações adversas. Mas
voluntarismo tem limites.
Na verdade, o que o
desenlace da apuração revelou foi que não era possível vencer, em função da
dura relação social e política de forças. Esta avaliação não interdita,
evidentemente, o debate das táticas eleitorais. Mas desaconselha quem quiser
insistir que foi o candidato ou a linha de campanha que explicam a
derrota. Quem defende que a esquerda
deveria ter apoiado Tabata Amaral está repetindo a hipótese imaginária de que
Ciro Gomes poderia ter derrotado Jair Bolsonaro em 2018, se o PT não tivesse
lançado Fernando Haddad e o PSol apoiado Guilherme Boulos, um contra factual
absurdo.
Quem se alinha com as
posições mais esquerdistas tem todo o direito de criticar que a campanha teria
sido lulista demais, ou seja, alinhada com uma defesa do governo federal. Mas
essa crítica não autoriza concluir que, se Boulos tivesse sido candidato sem a
coligação com o PT, repetindo 2020, teria tido mais votos. Ao contrário, o que
o desfecho eleitoral provou é que teria menos votos. Quem denuncia o
“identitarismo” desconsidera que sem o apoio das mulheres, negros e LGBT’s
teríamos tido muito menos votos. É verdade que a campanha teve muito mais
recursos do que em 2020, e obteve uma votação semelhante. Sim, mas este
argumento só reforça que a situação objetiva é muito pior.
A derrota da esquerda
se explica por muitos fatores, mas repousa, essencialmente, em fatores
objetivos e subjetivos. Os dois principais fatores objetivos são: (a) que a
vida não melhorou depois de um ano e meio de governo Lula, apesar do
crescimento, redução do desemprego, aumento do consumo e controle da inflação,
porque foram melhorias insuficientes; (b) que a maioria dos mais pobres mantém
algum grau, embora menor, de lealdade política ao lulismo, mas uma parcela da
classe trabalhadora rompeu com a esquerda. É entre os remediados que o
bolsonarismo criou raízes.
O que nos remete ao
principal fator subjetivo. O governo Lula não faz a luta política-ideológica no
patamar que a conjuntura exige. A extrema direita é o movimento mais dinâmico,
mais ativista, mais ideológico na sociedade. Pablo Marçal é mais uma demonstração
desta implantação. Sua influência vai além do um terço da população que lhes
entrega o voto, porque conquistou hegemonia política. Entre os trabalhadores de
renda média e esta pequena burguesia em formação está a audiência da
extrema-direita. Têm escolaridade baixa ou, na melhor das hipóteses, média, e
são remediados que estão em luta implacável pela ascensão social e respondem à
agitação do bolsonarismo pela militarização da segurança e pela redução dos
impostos.
As igrejas
pentecostais ocupam um lugar insubstituível na organização deste movimento. São
hostis ao feminismo, à luta antirracista, são homofóbicos e
anti-ambientalistas. Estamos diante de um anticomunismo “popular”. Esta derrota
não selou o destino do governo Lula. Ainda há tempo para reverter os danos, mas
somente se houver lucidez de que a situação é de alerta vermelho. O alerta
amarelo ficou para trás, é muito sério.
Fonte: A Terra é
Redonda
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