quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Anvisa proíbe implantes hormonais manipulados no Brasil; medida ganhou repercussão sobre uso indevido

Em 18 de outubro, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou uma medida preventiva que, por tempo indeterminado, proíbe a manipulação, comercialização, propaganda, prescrição e aplicação dos implantes hormonais manipulados, conhecidos como “chips da beleza”. O anúncio gerou repercussão entre profissionais da saúde, pacientes, farmácias magistrais e clínicas que realizavam o procedimento. Essa ação foi tomada após 34 sociedades médicas, incluindo a Sociedade Brasileira de Endocrinologia (SBEM), a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) e a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (ABESO) relatarem à agência um aumento no número de pacientes atendidos com complicações relacionadas ao uso de implantes que combinam diferentes hormônios.

“Entendemos que essa é uma decisão muito acertada da Anvisa”, declarou Lia Damasio, ginecologista e Diretora de Defesa e Valorização profissional da Febrasgo. “Nós estávamos vivendo um problema muito grande com o uso indiscriminado de hormônios com formas que não foram testadas”, alertou. Conforme Lia, nos últimos anos observou-se uma proliferação de farmácias magistrais produzindo implantes sem regulamentação e com forte viés comercial.

Desde 2023, o Conselho Federal de Medicina (CFM) estabeleceu, por meio da Resolução CFM 2.333, a proibição da prescrição de terapias hormonais com fins estéticos, como o aumento da massa muscular e a melhora do desempenho atlético. Em dezembro de 2023, sete entidades enviaram uma carta à Anvisa solicitando medidas contra a comercialização e o uso desses implantes, que vem resultando em um aumento no número de pacientes atendidos por complicações de saúde. O movimento ganhou destaque nos últimos meses e, em outubro, a medida preventiva foi anunciada pela Anvisa, na qual consta que “o uso de hormônios é seguro quando são utilizados produtos devidamente regularizados e que possuem estudos que comprovem qualidade, segurança e eficácia para os fins a que se destinam”.

Estevam Rivello Alves, 2º Secretário do CFM, explica que, embora a ginecologia e obstetrícia utilizem esses hormônios há cerca de 50 anos, os médicos estão agora proibidos de aplicar essa modalidade de tratamento, impedindo que os pacientes a recebam. “Temos outras modalidades para contornar o problema. Muitas vezes, elas não geram tantos efeitos assim, e esse pode ser o ponto central do debate em torno da utilização ou não de compostos hormonais manipulados”, afirmou.

Ainda conforme Estevam, embora o conselho tenha adotado a resolução no ano passado, a emissão da proibição pela Anvisa, abrangendo todos os casos, também os ‘pegou de surpresa’. “Neste momento todos os médicos brasileiros estão impedidos de prescrever compostos hormônios manipulados em farmácias magistrais, porque agora torna-se impeditivo de acordo com as leis brasileiras”.

Em nota, a Anvisa afirma que “a decisão foi adotada a partir da indicação de entidades médicas sobre o crescimento de eventos relacionados ao uso deste tipo de produto. O caso segue em avaliação”.

•        Uso indevido motivou proibição

O ‘chip da beleza’ é um implante subdérmico bioabsorvível, com dimensões que variam entre 3 e 5 centímetros, podendo conter um ou mais hormônios. Ele é colocado sob a pele, geralmente na região dos glúteos e do abdômen. Produzidos em farmácias de manipulação, esses implantes são inseridos em clínicas médicas com o uso de anestesia local, em um procedimento que leva apenas alguns minutos.

A medida ganhou repercussão pois, de acordo com diversos profissionais, algumas terapias hormonais auxiliavam mulheres no tratamento da endometriose e da menopausa. Estudos anteriores sobre o uso oral de gestrinona indicavam benefícios para o tratamento da menopausa. Muitos médicos têm expressado preocupações de que, com a proibição, essas mulheres possam agora enfrentar uma falta de assistência imediata.

“Há falta de evidência ética e científica para seu uso”, explica Clayton Macedo, presidente do Departamento de Endocrinologia do Exercício da SBEM (Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia) e diretor da ABESO (Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica). Segundo ele, o manifesto das sociedades médicas destaca que os hormônios estão sendo utilizados para diversas finalidades, como estética, rejuvenescimento, aumento de massa muscular, libido e controle da obesidade, o que representa riscos à saúde. Ele acrescentou que, nos últimos anos, tornou-se comum atender pacientes com efeitos adversos decorrentes do uso inadequado de hormônios.

“A questão desses implantes é que eles não têm estudo de segurança, nem de eficácia e de desfechos a longo prazo também”, disse. “Não sabemos a dose que está presente, a velocidade com que o hormônio é liberado ou por quanto tempo ele é utilizado”.

Conforme os especialistas, há uma percepção generalizada de que os efeitos adversos do uso de hormônios são subestimados. Entre os problemas mais comuns destacam-se complicações cardiovasculares, alterações no colesterol, trombose, infarto, AVC e toxicidade hepática, além de efeitos psicológicos, como agressividade e ansiedade.

A sociedade de hepatologia tem observado um aumento no número de biópsias hepáticas devido a lesões relacionadas ao uso crescente de hormônios. Cardiologistas também reportam um aumento de casos de problemas cardíacos e remodelamento cardíaco. Nos consultórios de ginecologia, mulheres têm chegado com alterações como voz modificada, aumento do clitóris, mudanças comportamentais e sangramentos.

•        Mais estudos que comprovem eficácia

“Não se trata de ser contra ou a favor dos hormônios”, defende a ginecologista Lia. Para ela, ginecologistas, endocrinologistas e urologistas são prescritores de terapia hormonal e sabem da sua importância: “Mas não dá para usar de forma indiscriminada e com doses e vias não adequadamente testadas”, alerta.

Na prática, a inserção de hormônios como gestrinona, testosterona e oxandrolona está sendo feita de forma inadequada, alertam as sociedades médicas. A metformina, um medicamento disponibilizado gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para o tratamento de diabetes, é manipulada em implantes e vendida a preços exorbitantes. Além disso, a ocitocina, normalmente utilizada na indução do parto, passou a ser comercializada em forma de implantes como uma solução para melhorar o humor e fortalecer vínculos afetivos. Atualmente, o único implante hormonal industrializado aprovado pela Anvisa é o Implanon, um anticoncepcional que contém etonogestrel.

Por isso, os novos medicamentos devem passar por um protocolo nacional de liberação, que inclui testes in vitro, em animais e fases de pesquisa clínica (fase 1, 2 e 3) para garantir segurança e eficácia. Sociedades médicas alertaram que devido à fabricação de implantes em farmácias magistrais, surgiram ‘indústrias’ que criam medicamentos sem seguir as etapas de aprovação necessárias, o que pode levar a complicações.

“As pacientes muitas vezes não estão cientes dos riscos associados ao uso desses implantes e têm a falsa impressão de que são tratamentos naturais e seguros”, afirma Lia, da Febrasgo. Ela ainda disse que as sociedades médicas estão unidas em defesa de uma terapia hormonal segura e eficaz, pedindo que todas as substâncias sejam devidamente comprovadas antes de serem liberadas para uso.

•        Tamanho do mercado de implantes hormonais manipulados

Não existem números oficiais sobre o tamanho do mercado dos chips de beleza. Segundo Lia, da Febrasgo, são medicações heterogêneas, para usos heterogêneos, o que dificulta precisar o número de pessoas que já os utilizaram. De acordo com informações da SanarMed, o custo do procedimento varia entre R$ 3.000 e R$ 8.000.

Os implantes hormonais são conhecidos há décadas e vêm sendo utilizados desde a década de 1980. No entanto, nos últimos anos, sua popularidade aumentou significativamente, impulsionada pelo influência das redes sociais que promoveu tratamentos prometendo bem-estar e longevidade. No Brasil, o médico Elsimar Coutinho (que morreu em 2020) é um dos nomes mais associados a essa prática. Segundo informações da clínica do próprio Coutinho, o implante hormonal foi desenvolvido para controlar doenças relacionadas ao ciclo menstrual e também para auxiliar na contracepção.

A afirmação de que os implantes hormonais são amplamente disponibilizados pelo governo em outros países também é contestada pelas sociedades médicas. Conforme a Febrasgo, enquanto o uso indiscriminado é comum no Brasil, nos Estados Unidos apenas o implante de testosterona recebeu aprovação do FDA. No Reino Unido, não há produção local e todos os implantes autorizados são importados. Na Austrália, a inserção desses dispositivos intradérmicos é uma exceção, sujeita a rigorosa fiscalização e autorização.

De acordo com Clayton Macedo, da SBEM, no Brasil as farmácias de manipulação estão fabricando hormônios em escala industrial, em vez de seguir as prescrições médicas personalizadas, recrutando médicos e pacientes para esse comércio e o problema do mau uso de hormônios é considerado uma questão de saúde pública, evidenciada por relatos de efeitos adversos, o que acabou se tornando uma ‘indústria lucrativa’.

Em agosto, com a implementação da Vigicon, foram registrados 260 casos de complicações relacionadas ao uso dos chips da beleza. Contudo, pode haver subnotificação desses problemas, já que muitos incidentes permanecem sem registro. A orientação da Anvisa é que pacientes que apresentarem reações adversas em decorrência do uso dos chips da beleza devem registrar suas ocorrências através de site do órgão para este fim.

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

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