Construir alianças no combate à
desigualdade e melhorar a vida dos trabalhadores é o desafio das políticas
municipais
O resultado das eleições municipais deste ano aponta para a complexidade social e territorial
de um país composto por 5.570 municípios, cuja diversidade não permite reduções
simplistas ou sínteses baseadas em estereótipos. Entre os dados que chamam a
atenção neste pleito, destaca-se o número de abstenções: 29,26%, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Ou seja, aproximadamente três de cada dez eleitores não compareceram às
urnas. Esse resultado, segundo Lucas Chiconi Balteiro, “indica uma enorme descrença na política, efeitos dos
solavancos da última década”.
<><> Confira
a entrevista.
·
IHU – Como avalia o resultado das eleições
municipais em São Paulo? Que complexidades sociais, territoriais e
culturais das metrópoles brasileiras não são reveladas nos mapas do resultado
eleitoral?
Lucas Chiconi Balteiro
– As abstenções foram vitoriosas e indicam uma enorme descrença
na política, efeitos dos solavancos da última década. Embora Ricardo
Nunes (MDB) tenha vencido na maior parte da cidade, isso não significa que foram vitórias homogêneas, com o mesmo grau de facilidade ou dificuldade. Nas periferias,
os votos foram mais disputados, chegando a proporções quase “meio a meio” na
apuração das zonas eleitorais. Por outro lado, as abstenções foram enormes e
somaram quase três milhões de pessoas, o que endossa ainda mais a complexidade
do cenário. Por fim, regiões tradicionalmente de classes médias
ascendentes e novas elites econômicas votaram com mais força
em Nunes, como a porção da Zona Leste mais próxima ao Centro e
sua faixa intermediária que se conecta com as periferias, além desse mesmo
contexto nas Zonas Norte e Sul. Na Zona Oeste, reduto da
esquerda mais intelectualizada, vinculada às universidades, mesmo com a vitória
de Nunes em todas as zonas eleitorais, é possível identificar a
permanência do voto em Guilherme Boulos na
porção Centro-Oeste e em Pinheiros e arredores da Avenida
Paulista. Já a região da Lapa, semelhante aos bairros das outras zonas que
mais votaram em Nunes, também possui passado operário-industrial e
representa estratos sociais ascendentes.
Embora seja a segunda
eleição de Guilherme Boulos para a prefeitura de São Paulo,
fica evidente sua força nos votos, uma vez que consegue manter uma base estável
e abrir leques de diálogo que antes eram pouco prováveis, como com Datena e
a jornalista Leda Nagle. Entretanto, ficou claro que a esquerda
vinculada aos espaços acadêmicos, mais rica, centralizada na Zona Oeste,
pouco saiu da sua própria bolha. Enquanto isso, candidatos da direita
reforçaram suas bases e ainda consolidaram votos em regiões em franca disputa –
mas que a esquerda mesmo pouco as disputa, ao menos como poderia e deveria.
Em outras cidades,
como o Rio de Janeiro, será importante observarmos a próxima gestão
de Eduardo Paes (PSD), visto que ganhou em primeiro turno na
metrópole que conta com um Game of Thrones das disputas do crime
organizado, como falou Bruno Paes Manso em entrevista para Átila
Iamarino em seu canal no YouTube. Outra cidade que deve apresentar pontos
interessantes é Cuiabá que, apesar de ter eleito o candidato
bolsonarista, Abilio Brunini (PL), teve uma disputa acirrada com o
candidato petista, Lúdio Cabral (PT). É relevante em se tratando
de uma capital do Centro-oeste, onde normalmente existe mais espaço para as
direitas.
·
Como analisa o fenômeno Pablo Marçal na
capital paulista, mas também em outras regiões brasileiras, onde eleitores
acompanharam a campanha dele, apesar de ele não ter sido eleito para disputar o
segundo turno das eleições municipais?
Lucas Chiconi Balteiro
– Pablo Marçal surfou no Bolsonarismo. Está claro pelos votos que herdou do ex-presidente Jair
Bolsonaro nas eleições anteriores, já que os territórios de predomínio
desses votos se relacionam, com ênfase nas áreas mais privilegiadas e ricas
das Zonas Norte e Leste de São Paulo. Entretanto, chama
atenção o avanço dos votos de Marçal para regiões periféricas, nas
duas zonas, o que talvez coloque uma camada ainda maior de complexidade no
caldeirão bolsonarista, de extrema-direita. Acredito que a força do
candidato nas redes sociais, juntamente com seu discurso empreendedor e
religioso também proporcionam o avanço de votos nesses territórios.
Em outras regiões do
país, chama atenção o caso de Fortaleza, maior metrópole nordestina, que
esteve em risco de eleger o candidato bolsonarista
do PL, André Fernandes, de apenas 26 anos de
idade. Fortaleza é um sinal de que as esquerdas não estão podendo
brincar em serviço, visto que metade dos votos foram para o candidato
bolsonarista. Ainda que seja uma vitória importante para o PT nesse
momento, sendo a única capital onde venceu em 2024, é evidente que André Fernandes e
seus aliados conquistaram poder e devem fazer barulho pelos próximos anos. Será
fundamental uma articulação precisa por parte das esquerdas no Ceará.
Também é possível que o efeito Marçal reforce os elos políticos com o
Centro-oeste, sua região de origem (Goiânia), especialmente pelo agronegócio e
o setor imobiliário.
Também vimos em São
Paulo uma relação quase direta de apoio do candidato por parte do PCC, uma
organização criminosa nativa da cidade, que foi inclusive mencionada pelo
governador Tarcísio de Freitas durante o período de votação no
domingo, ao fazer associação com Guilherme Boulos.
·
A que atribui a rejeição eleitoral aos candidatos
de esquerda ou do PT?
Lucas Chiconi Balteiro
– O antipetismo instaurado na época do impeachment (golpe)
contra a presidenta Dilma Rousseff foi central e ainda reverbera
na metrópole. É muito certo que foi um dos principais golpes da perda
de Fernando Haddad para João Dória nas eleições
de 2016. Era comum ouvir pessoas que diziam respeitar e admirar Haddad por seu
trabalho e trajetória intelectual, mas não darem seus votos a ele por ser
do Partido dos Trabalhadores (PT). Viralizou a chamada de atenção
de Mano Brown feita para Haddad naquela época, ao dizer que
a esquerda se fechou no campo intelectual e mais rico – que é muito evidente
nos votos à esquerda no Centro e na Zona Oeste, onde estão
concentradas algumas famosas universidades e por isso é o lar de muitos
professores, pesquisadores e estudantes vinculados a elas. Existe uma
arrogância por parte desses grupos que já estão disseminando memes ao dizer que
não há nada para fazer em São Paulo que não seja ir embora – pela derrota
de Guilherme Boulos.
No caso de Guilherme
Boulos (PSOL), infelizmente existe a alcunha de “invasor” a ser vencida, ou
driblada, pelo trabalho do candidato junto aos movimentos sociais de luta por
moradia. O tema da habitação é muito sensível em um país onde mais de 80% das construções
são feitas sem o auxílio de profissionais da arquitetura e engenharia, segundo
dados do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR). As classes
ascendentes, oriundas de outras gerações e sobretudo brancas, conquistaram
privilégios de poder comprar boas casas e em localizações que, se no momento da
compra não eram, vieram a se tornar estratégicas e valorizadas. Com a
ignorância em relação aos problemas socioespaciais do país, fez com que esses
grupos fizessem a disseminação da meritocracia pela conquista das suas vidas,
expressas na materialidade das casas, ou seja, tratam os mais pobres, sobretudo
negros, como “vagabundos” que não querem trabalhar para obterem as mesmas
conquistas, quando na verdade sabemos que o buraco é mais profundo.
Outro ponto é a gestão
da máquina e como as direitas operam de forma massiva, seja por meio das
igrejas ou outros espaços de socialização. Também são imperativas as obras
desnecessárias ou feitas às pressas para impressionar, como o famoso
recapeamento de asfalto, além das emendas parlamentares. A sociedade ainda cai
muito nesse tipo de ilusão e passa a se contentar com pouco em termos políticos
– o que se relaciona com aqueles que foram para a abstenção conforme a descrença no sistema político.
·
No artigo “As esquerdas derrapam nas esquinas da
cidade”, você acentua a complexidade social dos
territórios. Como essa complexidade se manifestou nas eleições municipais de
São Paulo? Pode dar alguns exemplos?
Lucas Chiconi Balteiro
– No caso de São Paulo, existe uma graduação na quantidade de votos à
esquerda, que aumenta conforme chega nas periferias, o que indica que são áreas
mais disputadas. Territórios intermediários, como a região do Ermelino
Matarazzo, Itaquera, Cidade Líder e Sapopemba, oscilam
entre votos mais à esquerda ou à direita a depender de cenários maiores. São
lugares que consolidaram muita infraestrutura nas últimas décadas, ainda que
sejam entendidos enquanto periféricos no contexto macro da metrópole.
Entretanto, evidenciam um hibridismo grande por suas posições estratégicas e
por abrigar famílias de classes médias em menor número quando comparado com
bairros mais centrais.
·
Você também menciona que territórios
consolidados pelo trabalho operário tornaram-se ambientes híbridos. Pode
descrever o que caracteriza esses ambientes hoje?
Lucas Chiconi Balteiro
– São regiões da metrópole que, embora tenham sido chamadas de
periferias há quase cem anos, pela sua posição de cinturão industrial ao redor
do centro mais consolidado na época, atualmente usufruem de muita infraestrutura
pública e privada e estão ao redor do núcleo central, o que as consolidou como
vetores de expansão. Em um cenário capitalista, significa que são áreas muito
dinâmicas em termos econômicos, com centralidades variadas,
muito investimento dos setores imobiliários e um franco mercado
consumidor. Por outro lado, nos últimos 30, 40 anos, perderam números
expressivos de população pobre e negra, o que significa que a valorização
não foi tão democrática quanto pode parecer, expulsando os
mais vulneráveis que não têm condições de viver nessas áreas. Esse
movimento inchou ainda mais o que seriam as periferias contemporâneas, surgidas
em meados dos anos 1970 por meio de loteamentos precários e da autoconstrução
(quando a própria família é responsável pela construção da sua casa, normalmente
aos finais de semana), bem mais distantes da região central da metrópole.
·
Como os partidos políticos atuam nesses
ambientes híbridos?
Lucas Chiconi Balteiro
– O antigo PSDB sempre mantinha bases sólidas nessas regiões,
como é o caso da Mooca, o bairro da Zona Leste mais próximo ao Centro de
São Paulo. Eram frequentes articulações de cunho social e cultural, como festas
e encontros em geral que buscam reunir lideranças e representantes locais que
englobam empresários da região. Atualmente, é comum esbarrar com membros
do MBL em bares e restaurantes, sobretudo
do Tatuapé e Jardim Anália Franco. Existem parcerias entre
os representantes do movimento político e os empresários, beneficiando a
divulgação de ambos, o que acaba por construir raízes sólidas no território.
Enquanto isso, a esquerda parece se reunir de maneira mais tímida e bem menos
frequente na região. Não por acaso, a Sede do Sindicato dos Metroviários
de São Paulo, que foi um espaço importante das esquerdas em pleno Tatuapé,
praticamente não teve apoios consistentes para seu tombamento (instrumento de
preservação cultural e histórica), longe do que poderia ter tido, em vista dos
frequentes barulhos que a ala intelectual faz na imprensa quando espaços
afetivos da Zona Oeste estão em risco de demolição.
A Sede do
Sindicato dos Metroviários foi demolida quase que em silêncio, com barulho
e articulação somente por parte dos sindicalistas e apoios mais próximos.
Parece que lugares como o Tatuapé causam uma espécie de
constrangimento pelo status de ascensão social, como se trabalhadores não
pudessem ter alcançado ou desejado esse cenário, tanto que é muito comum ver
pessoas da academia que preferem ir em bares considerados “pé sujo” para se
afirmarem mais de esquerda do que quem frequenta estabelecimentos mais
sofisticados, “gourmetizados”.
Acredito que uma coisa
é cair na ilusão neoliberal do capitalismo, de que conseguimos tudo por mérito individual, abrindo mão
de disputar o Estado e as políticas públicas, assim como achar que somos o 1% apenas pelos bens de consumo.
Outra coisa, bem diferente, é lutarmos por dentro do sistema para que, dentro
do possível, o maior número de pessoas tenha acessos e oportunidades de
ascender socialmente, sobretudo por um viés coletivo e de bem-estar social
para todos, sem ingenuidades perante o sistema capitalista que nos organiza e
nos deprime.
·
Que tipo de ações políticas e sociais
emergem desses ambientes?
Lucas Chiconi Balteiro
– Em grande medida, são ações políticas que atuam em conjunto ou por meio
dos espaços privados, tanto com relações fortes com o comércio local, quanto
por empresas maiores, como construtoras e incorporadoras. Em casos mais específicos,
já ocorreram ações de cunho político em momento de revisão de Plano
Diretor e Zoneamento dentro de estandes de vendas de empreendimentos
imobiliários, com iniciativa de vereadores locais. Também é comum ações
políticas de caridade, vinculadas a instituições religiosas, o que reforça a
ideia de caridade versus justiça
social. Em muitos casos, diferente do que as
esquerdas imaginam, esses eventos não são tão homogêneos em tipos de
frequentadores ou mesmo opressores a minorias. São ambientes que apresentam
contradições.
·
Por que esses ambientes híbridos são ainda
pouco compreendidos pela academia?
Lucas Chiconi Balteiro
– É importante frisar que a academia não é mais um espaço homogêneo e
existem novos pesquisadores, entre professores e estudantes, que rompem com a
hegemonia tradicional, seja por serem de origens populares, seja por não compactuar
com a manutenção do status quo elitista que sempre estruturou
certas instituições. Então, as críticas que faço são direcionadas aos grupos
mais tradicionais ou que ainda flertam com os tradicionais, que tratam a cidade
e a sociedade como cobaias, marionetes, onde todos supostamente são alienados e
possuem gostos duvidosos – na moda, na arquitetura, na política, na música etc.
Quando novas vozes e representações emergem nos espaços de poder e ganham
evidência, a hegemonia se sente tensionada a novos movimentos e precisa abrir
espaços – não sem conflitos e disputas. O hibridismo desses territórios
demonstra complexidades que muitos pesquisadores não estão dispostos a
enfrentar nos dias de hoje. É mais fácil reduzir, simplificar, categorizar,
zonear, desagregar, ao invés de tratar o território como elemento conjunto,
complexo, coletivo, contraditório, como defendia Milton Santos em “O retorno do território”, nos anos 1990.
As esquerdas criticam
muito as respostas fáceis e simplistas que a direita oferece aos problemas
complexos, mas na prática, prefere reduzir muita coisa a um modelo
Centro-Periferia simplista que pouco se interessa em observar nuances,
contradições, complexidades que fogem à regra. É necessário um olhar mais atual
para a sociedade e seus territórios, que seja mais flexível com questões que
sempre tratamos de maneira pejorativa, como a ascensão social – seria mais
justa se não fosse pelo capitalismo? É o que precisamos aprofundar e pôr em
prática.
·
Nos territórios paulistas, onde
encontram-se os pobres? É possível afirmar que eles deram uma guinada da
esquerda para a direita, como muitos analistas afirmam? Sim ou não e por quais
razões?
Lucas Chiconi Balteiro
– Em São Paulo, os grupos pobres se localizam principalmente em
periferias distantes das áreas centrais, mas também em enclaves de pobreza
internos aos centros, como é o caso dos cortiços e ocupações de moradia em
prédios vazios – situação comum à outras metrópoles, como Rio de
Janeiro, Porto Alegre, entre outras.
E não é possível fazer
essa afirmação [de que deram uma guinada à direita] justamente pelas
complexidades socioterritoriais que envolvem as abstenções que já mencionamos e
a disputa acirrada dos votos nas regiões periféricas. Uma grande referência
sobre estudos periféricos paulistanos é o professor Tiaraju D’Andrea, da Unifesp, que exalta com propriedade a força da
trajetória dos movimentos sociais periféricos e como suas bases ainda são
bastante consideráveis nessas regiões – caso da manutenção de grande parte do
voto desse eleitorado. Quando a imprensa diz que um candidato “levou” uma
determinada região, está se baseando em uma cartografia muito superficial e que
apenas considera o candidato vencedor, mas sem olhar para outras nuances do
território.
·
Quais os riscos do estereótipo “pobre de
direita”?
Lucas Chiconi Balteiro
– É um estereótipo semelhante ao de “classe média burra”, como se ser de
esquerda fosse sinal literal de inteligência, enquanto a direita estaria
associada à estupidez e manipulação. São falas perigosas pela sua condição
traiçoeira, por serem facilmente manipuláveis e distorcidas no cotidiano da
população, sobretudo em tempos de notícias falsas (fake news),
inteligência artificial, pós-verdade e excesso rápido de informações. É muito
fácil atingir, ofender e provocar desconfortos com essas falas, o que cria
afastamentos difíceis de serem contornados depois.
·
Quais são os estereótipos criados pela
esquerda e pela direita que mais afastam e aproximam as pessoas do campo
progressista e da direita?
Lucas Chiconi Balteiro
– A direita cria estereótipos que, normalmente, tentam essencializar o
trabalho intelectual das esquerdas, onde tratam muitos enquanto “esquerda
caviar”, “esquerda cirandeira” e coisas do tipo, como se as esquerdas fossem
somente esses grupos – no caso de São Paulo, hipsters de
Santa Cecília e Vila Madalena; no Rio de Janeiro, os hipsters de
Laranjeiras. O próprio Tiaraju D’Andrea chamou atenção para o erro de agir dessa maneira, diante
da fala de Vladimir Safatle ao dizer que a esquerda não tem nada a dizer para as
periferias, sendo que as periferias são parte
fundamental da esquerda. Portanto, fica claro que a esquerda perdeu o
protagonismo de lideranças periféricas para os espaços hegemônicos da
intelectualidade, entregando a liderança para figuras herdeiras oriundas desses
locais. A direita também acaba por marginalizar os movimentos de moradia, com a alcunha de “invasores”. Nesse caso, a direita se afasta
daqueles que não têm resolvidas suas condições de moradia, como se o Brasil
fosse justo e não tivesse um problema grave de habitação em todas as regiões.
Enquanto isso,
a esquerda acaba abrindo mão de disputar as classes médias ao
tratá-las sempre na chave da alienação, como se não soubessem que são classes
trabalhadoras, não herdeiras. Elas sabem disso. A construção da moral desses
grupos por meio do trabalho evidencia essa consciência, mas grupos de esquerda
ainda surfam no estereótipo de que as classes médias pensam
ser elites e, por sua vez, não saberiam que são trabalhadoras. Fora
isso, alimentam alguns estigmas que provocam muito desconforto desnecessário,
por exemplo: na arquitetura, o movimento moderno é dos mais estudados e
valorizados por suas grandes contribuições ao país, com razão. Entretanto,
qualquer coisa que foge desse estilo, acaba sendo jogada na ordem do “brega”,
“cafona”, “ridículo”, de ordem inferior, o que claramente demonstra elitismo
por parte de setores privilegiados da academia que sempre se promoveram nas
suas relações sociais entre famílias, empresas, instituições de classe etc.
Pior é quando esses grupos proferem falas como “o Nordeste é meu país”, mas sem
sequer saberem o que é a região nordeste na realidade e as razões pelas quais
votam, ainda em maioria, no PT – que não é por questões de raça,
sexualidade e liberdade religiosa (sem generalizar, claro).
Já no caso de movimentos de esquerda das periferias, em alguns casos, existem afastamentos em relação às classes
médias trabalhadoras, o que é compreensível e precisamos respeitar, já que a
condição de periférico, para mim, é imperativa para que eu tenha respeito por
esses sujeitos, já que formam a base da pirâmide social. Ainda assim, acredito
que seja necessário construir alianças se o objetivo final for o mesmo, no
sentido de combatermos desigualdades e ofertarmos
melhores condições de vida aos trabalhadores – com óbvia prioridade
aos trabalhadores periféricos, sobretudo negros.
·
Por que “a ideia de ricos versus pobres se
tornou pouco realista, ou palpável, diante das transformações das últimas
décadas”? Que visão seria mais fidedigna com a realidade?
Lucas Chiconi Balteiro
– É fundamental que tenhamos ciência das desigualdades sociais em diferentes escalas
no país. Primeiro, quando falamos que São
Paulo é desigual,
entre bilionários e populações faveladas, é uma verdade.
Entretanto, entre os dois polos sociais extremos existe a maior parte da cidade
e da sua população, em um leque muito variado de setores, sobretudo
de classes médias (no plural). Bilionários são o 1% mais rico? Com certeza. Mas isso não significa que aqueles que têm
renda superior a 10 ou 20 mil reais por mês sejam pobres. Longe disso. Quando
olhamos para a desigualdade regional, o Norte e
o Nordeste se tornam periferias nacionais, já que a divisão social do
trabalho nessas regiões é diferente do que nas
regiões Sul e Sudeste. Principalmente, no eixo Rio-São
Paulo. Mudam os números de educação, saúde, investimentos no espaço urbano, no
poder de compra das famílias, nos privilégios acumulados por diferentes gerações,
nas oportunidades de trabalho e, consequentemente, na ascensão social. E claro,
a concentração de poder das elites políticas e econômicas no Sudeste, o que
hierarquiza o país como um todo.
Não é à toa que
cidades como Salvador e Belém tenham metade das suas
populações, respectivamente, vivendo em favelas, em condições de vulnerabilidade. Bairros ricos dessas cidades
não se sobressaem aos bairros de classe média de São Paulo, por exemplo, ou
mesmo periferias de São Paulo que contam com mais infraestrutura do que suas
congêneres em cidades do Norte e do Nordeste. Essas diferenças
têm condições de influenciar no imaginário popular sobre as desigualdades, de
quem é “rico” ou “pobre”, a depender do ambiente em que vive, da qualidade
construtiva da sua casa, da qualidade urbanística do bairro, da oferta de comércio
e serviços e, respectivamente, o acesso de cada um a toda essa infraestrutura
disponível. Por esse motivo, ao enfrentarmos o problema das desigualdades
no campo político, precisamos ser mais estratégicos, mais assertivos e claros,
ao invés de dizermos que as classes médias são “pobres plus”, ou “burros” por
não entenderem que não são trabalhadores. Elas sabem que são trabalhadoras,
tanto que João Dória se elegeu pelo slogan de “João
Trabalhador”. Se o trabalhador for sempre associado à condição de pobreza,
então estamos assumindo que não existem chances de qualquer tipo de ascensão?
·
Deseja acrescentar algo?
Lucas Chiconi Balteiro
– Acredito que ainda veremos muitas discussões e novas informações a
respeito do cenário político. É evidente que a preservação da memória das bases
da esquerda é de fundamental importância, mas não significa que o campo precise
voltar aos anos 1970. Novas gerações surgiram e com elas, novas ideias,
objetivos e perspectivas, assim como tecnologias e maneiras de ver o mundo. É
preciso respeitar a pluralidade de modos de vida para aprendermos como chegar
nas pessoas ao convencermos que, aquilo que almejamos para o mundo (para o
bairro, para a cidade, para o estado e o país) é benéfico para o bem-estar
coletivo. E mais: que o bem-estar coletivo, da maioria, é benéfico para
cada um de nós individualmente. Sejamos estratégicos.
Fonte: Entrevista com
Lucas Chiconi Balteiro, por Patricia Fachin, para IHU
Nenhum comentário:
Postar um comentário