O autoengano do tempo breve
“Não há outra luz, nem
outra noite. Este sol, esta lua e estas estrelas são os mesmos que os teus
ancestrais aproveitaram e que manterão os teus netos.” Inspirada no romano
Cícero, essa é uma das passagens mais emblemáticas contidas no ensaio
Philosopher, c’est apprendre à mourir, de autoria do filósofo francês Michel de
Montaigne.
Ele tratou de colocar
em realce o exercício da reflexão como uma forma de afastar o medo diante do
perecimento e como um modo de os seres humanos aprenderem a morrer, para que
então desfrutassem da sabedoria de saber viver. Enfatizou: “o estudo e a contemplação,
de alguma forma, retiram a nossa alma do corpo e, ao ocupá-la fora dele, geram
uma situação de aprendizado e de semelhança com a morte; toda a sabedoria e
todo o discurso do mundo, finalmente, confluem para esse ponto de nos ensinar a
não temer a morte.”
Quando completou 62
anos, Simone de Beauvoir disse que começou a sentir os sinais do que era ser
uma pessoa idosa, e então, para tratar do assunto com profundidade, escreveu o
livro Velhice. As pessoas, ao saberem de seu interesse pelo tema, diziam-lhe que
não se preocupasse, pois ela “não era velha”, ao que Beauvoir replicava: que
estava a escrever o livro “exatamente para quebrar a conspiração do silêncio
sobre o assunto.” Conspiração do silêncio, isso é mesmo assim: a invisibilidade
cotidiana de idosos; as pessoas idosas que se apegam a posições de poder
negando-se a abandonar o palco, muitas vezes, sob o apoio e o mutismo de
interesses ocultos; o não dito de uma “indústria da juventude e da beleza” que
promete o prolongamento da vida, e ignora os insuperáveis limites do tempo
biológico da existência humana, o tempo breve.
É um dado adquirido
que o desenvolvimento científico na medicina, um regime nutricional criterioso
e um modo de vida equilibrado prologam a vida, mas a ideia de uma “eterna
juventude”, além de ser irreal, estigmatiza a idade cronológica, fazendo com
que determinados comportamentos sejam vistos como caricatos. E ridículos. É
preciso perceber que, a certa altura da vida, vai sendo possível realizar uma
retrospectiva do tempo vivido sem incorrer em autocomplacência, pois o
testemunho individual converte-se no inventário das experiências de muitos, de
todos que, pertencendo a uma geração, “dissolvem-se” nas características de uma
época.
Há vários episódios
que se revelam tristes na esfera pública, sob a perspectiva das considerações a respeito do tempo e do
aprendizado acerca do saber morrer. Dois são mais visíveis.
Um diz respeito ao
ocaso físico e cognitivo de lideranças políticas que se negam a sair de cena.
Contra todas as evidências, insistem num protagonismo que se lhes escapa, a
todo momento, através do andar inseguro, dos esquecimentos constantes e do
olhar disperso, enfim, através da perda de funcionalidades. Um segundo episódio
refere-se ao comportamento de políticos e militares que são senhores das
guerras, promotores de aniquilamentos humanos, déspotas de conquistas e da
imposição de suas vontades pelas armas.
Em ambos os casos, os
personagens desconhecem o significado do “aprender a morrer” e se comportam
como se fossem viver para sempre. Agem nos marcos do tempo histórico, mas
esquecem que o seu tempo de vida é biológico, isto é, cronologicamente, têm a
finitude brevemente delimitada diante de si. Reina a conspiração do silêncio de
um mundo que não aprendeu a (con)viver (Faixa de Gaza, Sudão, Haiti, Iêmen…),
onde a barbárie, após anos de declínio secular, se tem manifesto de duas
maneiras.
Em primeiro lugar, por
meio do colapso dos sistemas de regras e comportamentos morais pelos quais as
sociedades fazem a gestão das relações entre os seus membros e, em menor
medida, entre os seus membros e os de outras sociedades. Em segundo lugar, por
meio da reversão do que, mais especificamente, podemos chamar de projeto do
Iluminismo, ou seja, o estabelecimento de um sistema geral das referidas regras
de comportamento moral, consubstanciado nas instituições dos Estados e voltado
ao progresso racional da humanidade.
Boa parte das
atrocidades cometidas, nas atuais guerras, decorrem da combinação entre o
colapso dos sistemas de normas morais e da reversão do ideário
racional-humanista do Iluminismo. Colapso e reversão levados a cabo por agentes
políticos que, ao ignorarem o tempo biológico, a vida concreta das
pessoas, não demonstram sensibilidade em
relação às catástrofes humanitárias que muitas das suas ações produzem.
Em um de seus poemas,
António Ramos Rosa diz-nos: “onde mora a memória obscura, onde/onde esse cavalo
persiste um relâmpago de pedra/onde o corpo se nega, onde a noite ensurdece.”
Mesmo sem ter a percepção do fato, pode dizer-se que o trovador português realçou,
com a sabedoria da agudeza poética, a atual conspiração do silêncio, que, não
tomando em conta o tempo breve, ignora o saber (con)viver e é prisioneira do
autoengano.
Fonte: Por Ivonaldo
Neres-Leite, no Jornal GGN
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