Pacientes têm direito ao relatório
psicológico em casos de violência doméstica
As violências vividas
pela psicóloga Nádia Bisch*, de 36 anos, pela advogada Rosa, de 35 anos, e por
mais de 70 mil brasileiras diversas (em 2023) estão descritas na Lei Maria da
Penha. Elas passaram por ameaças, constrangimentos, humilhações, manipulações,
isolamento, vigilância constante, perseguições, insultos, chantagens, violações
da intimidade, ridicularizações, explorações e limitações do direito de ir e
vir.
Quando encontram
forças para denunciar, as vítimas de violência precisam compartilhar dores e
intimidades com profissionais de saúde e de segurança. Tecnicamente preparados
e baseados no compromisso ético de ajudar a pôr fim no ciclo de violência,
esses profissionais se transformam em peças decisivas. O contrário,
infelizmente, também é verdadeiro. A depender da qualidade ou omissões ao longo
da oferta dos serviços, o resultado pode ser o prolongamento da vítima no ciclo
de dor.
Esta reportagem
explora as dificuldades enfrentadas por mulheres vítimas de violência doméstica
a partir do momento em que decidiram utilizar a seu favor os diagnósticos
psicológicos já identificados ao longo de suas sessões de terapia. Apesar de o
relatório ser um direito da vítima submetida ao acompanhamento terapêutico,
alguns profissionais se negam a emiti-lo, seja por desconhecer o direito da
paciente ou por uma interpretação limitada do chamado ‘sigilo profissional’.
COMO SE PROVA
VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA?
Nádia viveu um
relacionamento abusivo, foi vítima de tentativa de feminicídio e de situações
vexatórias com a polícia e as equipes de saúde – e ainda coube a ela reunir
provas. Para a violência física, ela tinha marcas, fotos e exames, mas como
demonstrar a violência psicológica?
Na tentativa de provar
as violências não visíveis, Nádia recorreu à profissional que, desde o
princípio, a ajudou a identificar agressões. Pediu para a sua psicóloga
escrever um relatório com avaliações clínicas sobre seu estado psicológico
durante o relacionamento. O intuito era juntar o documento ao processo e somar
à denúncia.
A profissional recebeu
o pedido com medo e apreensão, e disse que buscaria orientação. A psicóloga
informou ainda que teria sido instruída a ser ‘imparcial’. “Ela não poderia dar
informações específicas ou afirmar que eu sofria violência porque não ouviu o
lado do meu agressor”, conta Nádia.
Nádia começou a
terapia em 2018, após a primeira agressão do parceiro, Thiago. “O ciclo era
muito rápido: ele prometia, se arrependia e eu acreditava, até que eu já não me
reconhecia mais.” O relacionamento chegou ao fim em 2019, quando ela pediu uma
medida protetiva de urgência. Em novembro, Thiago foi preso durante a Operação
Marias, de combate a crimes de violência doméstica, no Rio Grande do Sul, mas
ficou só um dia em cárcere.
Na semana seguinte,
ele tentou matar Nádia. Ela foi a uma
festa, com uma amiga, e ele fez uma emboscada. Apareceu na frente da casa dela
e a prendeu no carro. “Eu lutei durante uma hora, mais ou menos, até um rapaz ver
as minhas pernas para fora do veículo e me ajudar”, relembra.
Após o crime, a
Polícia Militar encaminhou Nádia ao hospital. Ela estava cuspindo sangue,
porque foi asfixiada, e com fratura nos joelhos, mas saiu do consultório com
uma receita de dipirona. Acompanhada de dois militares homens e um escrivão
pouco receptivo, Nádia afirmou que só daria seu relato em uma Delegacia
Especializada de Atendimento à Mulher. A
investida violenta do ex-companheiro foi registrada como tentativa de
feminicídio.
Nádia postou nas redes
sociais e, em seguida, mais de 20 mulheres a procuraram dizendo já terem
sofrido violências do mesmo homem, que foi preso em fevereiro de 2020. Em
agosto último (2024), ele foi condenado a 13 anos de prisão pela tentativa de
feminicídio contra Nádia.
O relato de uma vítima
de violência doméstica tem valor probatório em processos judiciais, isso
significa que é relevante e tem capacidade de influenciar a decisão do juiz. Na
prática, muitas vezes, não é isso que ocorre. Após denunciar, cabe à mulher provar
que está dizendo a verdade. Nisso, o relatório psicológico pode ser um grande
aliado para reiterar a denúncia.
“Instrumentos como
relatórios e laudos têm papel crucial na concretização de elementos que, por
vezes, não são visíveis, mas que não deixam de caracterizar uma violência, como
a psicológica, que, por apresentar aspectos de caráter subjetivo, é constantemente
negligenciada”, diz Thalita Queiroz, analista da Provisão de Serviços no Mapa
do Acolhimento, uma organização com advogadas e psicólogas voluntárias que
ajudam mulheres sobreviventes de violência.
Segundo a conselheira
Clarissa Guedes, do Conselho Federal de Psicologia (CFP), “uma pessoa que
realiza acompanhamento psicológico pode, sempre que quiser, solicitar à
psicóloga relatório dos atendimentos realizados”. Este documento é obrigação do
profissional e um direito do paciente. “Quando a profissional se nega a emitir
um documento, que é seu dever, ela está incorrendo em uma falta ética”,
complementa.
Seja em caso de
violência doméstica, ou não, a obtenção do relatório terapêutico está garantido
no Código de Ética da Psicologia. “Os envolvidos no processo possuem o direito
de receber informações sobre os objetivos e resultados do serviço prestado”, diz
o código.
Todas as formas de
violências cresceram no Brasil no último ano, conforme o Anuário Brasileiro de
Segurança Pública de 2024. A violência psicológica, em especial, teve um salto
de 33,8% em 2023. Acrescentada à Lei Maria da Penha em 2021, esse tipo de violência
se estabelece em uma relação de poder desigual, “que aparece de forma sútil e
difícil de detectar”, explica Darlane Andrade, psicóloga, docente no
Departamento de Estudos de Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia
e pesquisadora do Neim (Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher).
Quando fraturamos um
osso do pé, somos encaminhados ao médico ortopedista. Quando sentimos incômodo
nos olhos, ao oftalmologista. Agora, se apresentamos adoecimento psíquico, o
psicólogo é o profissional capaz de utilizar métodos e técnicas para realizar o
diagnóstico psicológico.
Dificilmente um
relacionamento abusivo não causará danos psicológicos. Não à toa, a
psicologia-clínica, ou terapia, é um recurso amplamente indicado para auxiliar
mulheres a identificar, lidar e romper ciclos violentos. É preciso haver
confiança entre psicólogo e paciente. “A violência psicológica não vai deixar
marcas no corpo, mas acontece de modo sobreposto, acompanhada da violência
moral, patrimonial, até chegar na física e, no ápice, ao feminicídio”, aponta
Darlane.
A advogada Rosa, que
citamos no início desta reportagem, buscou terapia após ser acusada de
alienação parental pelo ex-companheiro. “Procurei uma psicóloga achando que eu
era, realmente, uma alienadora. Acreditando em tudo que o discurso e violência
processual me fez acreditar”. Ela e o ex-parceiro se conheciam havia pouco
tempo. Quando chegou a notícia da gravidez, Rosa sugeriu que ele mudasse para o
apartamento dela.
Com o passar dos dias,
Rosa foi vítima de inúmeras violências. “Percebi que precisava terminar ao
fugir dele dentro da minha própria casa. Daí até o término, foi um grande
processo de fortalecimento com a terapia”, relembra. Rosa também foi vítima de
violência física.
Mesmo após o fim do
relacionamento, Rosa acreditava que seria possível estabelecer uma relação de
parceria com o pai da filha. Tudo mudou quando ele tentou jogar uma chaleira de
água quente nela. Depois disso, o agressor fugiu levando as chaves. “Tive que
substituir as fechaduras da minha porta, mas não tinha como trocar as das áreas
sociais do prédio. Várias vezes eu saía e ele estava do lado de fora parado.”
Rosa sentia muito medo de transitar no prédio e no bairro. Então, pediu uma
medida protetiva.
Dias após ser
notificado pela Justiça, o agressor acusou Rosa de alienação parental.
Orientada pela advogada, ela recorreu à sua rede de apoio, a fim de provar que
foi vítima de violência doméstica e que temia pela sua vida e da filha. Pediu à
sua psicóloga, que a acompanhava há anos, para escrever um relatório
psicológico.
“Foi tudo muito
difícil. A minha psicóloga ficou com medo. Eu realmente esperava que ela me
desse aquela força do ‘vamos juntas’.” Rosa conta que precisou insistir várias
vezes com a profissional e usar o espaço da consulta para construir o documento
em conjunto. “Eu só precisava que ela explicasse como eu reagia
psicologicamente àquele relacionamento e como aquilo me afetava.”
Rosa acumulava
boletins de ocorrência e medidas protetivas arquivadas por falta de provas.
Após o relatório psicológico anexado ao processo, uma ação penal contra o
agressor foi finalmente iniciada.
NÃO HÁ QUEBRA DE
SIGILO NESSES CASOS
Uma usuária do PenhaS
– aplicativo de informação e acolhimento a vítimas de violência, do Instituto
AzMina – relatou ter constatado ao longo das sessões de terapia que havia sido
vítima de violência psicológica enquanto esteve casada. A defesa da usuária em
processo baseado na Lei Maria da Penha pediu para a profissional um relatório
contendo o diagnóstico A profissional negou sob a alegação de quebra de sigilo
profissional.
“O sigilo é quebrado
quando você expõe situações íntimas da paciente. Para produzir um relatório
você pode contar os métodos utilizados em sessão sem fazer nenhuma exposição”,
esclarece Clarissa, conselheira do CFP.
Além disso, existem
diferenças técnicas entre um psicólogo clínico e um perito. O primeiro
acompanha a vítima e, eventualmente, se solicitado, pode elaborar um relatório
sobre as demandas trabalhadas em clínica. Já o perito, ou assistente técnico,
atua em processos judiciais emitindo laudos psicológicos para auxiliar a
justiça a tomar decisões. Ele é contratado para essa finalidade e não conhece
os envolvidos.
RELATÓRIO DEVE
DESCREVER DEMANDAS, SINAIS E SINTOMAS
Uma psicóloga clínica
tem condições técnicas de identificar que uma pessoa atendida está em situação
de violência. Clarissa explica que, ao produzir um relatório psicológico, a
profissional pode descrever as demandas trabalhadas no processo terapêutico, os
sinais e sintomas identificados, tendo em mente que o documento emitido deve
possuir fundamentação técnica e científica e ser coerente à natureza do
trabalho desenvolvido.
“A psicóloga só pode
se referir às questões da pessoa atendida, devendo evitar conclusões taxativas
sobre o suposto autor da violência, considerando que seu trabalho é clínico e
não de perícia”, informa Clarissa, representante do CFP.
As mulheres podem,
inclusive, procurar os conselhos regionais de psicologia (CRP) em suas cidades
para buscar ajuda e tirar dúvidas. O CFP estabeleceu em 2020 normas de
exercício profissional da psicologia em relação às violências de gênero e
possui uma resolução com orientações para elaboração de documentos escritos
produzidos pela psicóloga.
O Conselho Federal e
os Regionais espalhados pelo Brasil são entidades fundamentais na criação de
diretrizes para um atendimento humanizado com mulheres vítimas de violência
doméstica, além de possuírem canais importantes para orientação e denúncia de
má atuação profissional.
É tarefa da psicologia
(e seus profissionais) identificar a violência psicológica, ler o fenômeno do
adoecimento psíquico, inclusive, como consequência da violência doméstica. “Se
não fazemos isso, estaremos cometendo também uma violência institucional, colaborando
para a situação violenta continuar na vida da mulher”, conclui Darlane,
pesquisadora do Neim/UFBA.
Fonte: AzMina
Nenhum comentário:
Postar um comentário