quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Moisés Mendes: ‘O transe provocado pelo vasto mundo do emendão’

Em busca de calmantes, as esquerdas se agarram a informações que já foram transformadas em manchetes e rendem análises fáceis e rápidas, tão perfeitas como se fossem produzidas por inteligência artificial.

A primeira manchete, do Estadão de ontem, informava: “Centrão domina eleições e elege prefeitos nas cidades que mais receberam emendas parlamentares”.

E outra manchete, na mesma linha, é essa de hoje do Globo: “Emenda Pix turbina taxa de reeleição de prefeitos, que foi de 89% nas 178 cidades mais beneficiadas”.

A conclusão mais elementar: o governo, submetido à extorsão das emendas, acabou engordando o porco do centro, da direita e da extrema direita, ou disso tudo que cabe no que se chama de centrão ampliado e expandido.

Mas o estrago da dinheirama das emendas explica tudo o que aconteceu na eleição? Ajuda a explicar, mas serão ingênuos os que se agarrarem apenas a esse consolo.

As emendas só existem sob controle da direita porque a direita tem a maior base política, agora aumentada em todo o país. E essa base só existe a partir das eleições, começando pelas municipais, que formam quadros, vereadores, prefeitos.

As eleições para governadores, assembleias, Congresso e presidente da República completam o serviço. Funciona assim desde muito antes das emendas PIX e secretas.

A base do centrão e da extrema direita é montada a partir das eleições municipais, que são, claro, diferentes das eleições para legislativos, governadores e presidente.

São diferentes, mas são o começo, a base paroquial de tudo o que vem depois. O que a direita conseguiu agora foi aumentar esse poder, que repercute mais adiante em representação no Congresso.

E, com mais poder no Congresso, mais capacidade de extorsão, mais emendas, mais dinheiro, há mais votos, mais poder municipal, estadual e nacional. E mais formação de líderes e fortalecimento das estruturas que os sustentam.

Essa direita à la Kassab pode até não eleger o presidente da República, como vivem repetindo como consolo. Mas mantém um governo, como faz agora com Lula, sob controle quase absoluto das suas vontades, na coalizão dentro do Planalto e nas sabotagens dentro do Congresso.

Essa direita forte começa com a eleição do vereador dono do mercadinho de Cacequi e do prefeito criador de bois em campos de queimadas na região de Piracicaba. É assim nessas cidades e em pelo menos 80% do território nacional sob comando dessa gente.

O eleitor médio do PSD, que não liga muito para ideologia numa disputa municipal, pode não imaginar Kassab como presidente. Mas a maioria torce para que Kassab tenha base e muito poder para interferir na escolha do presidente e participar depois dos mecanismos de controle do governo. Como já tem hoje em Brasília e terá muito mais amanhã.

Mas se as emendas não explicam tudo, o que afinal desvenda por completo o crescimento do que ainda chamam de centro e da velha direita na eleição? São respostas que dependem muito de pesquisa e estudo e menos de chutes e calmantes.

Nos chutes possíveis, podem dizer que a eleição municipal, com suas feições próprias, finalmente livrou a direita da sombra de Bolsonaro e mostrou que o eleitor pouco quis saber de Lula.

Que a polarização se diluiu. Que o Brasil redescobriu o centro e que as esquerdas, por cansaço, envelhecimento, omissões e desgaste, vão se conformando, desde 2020, com o tamanho que tinham antes do PT.

Poderemos estar entrando numa distopia regressiva, no vasto mundo fumacento do centrão-emendão de Kassab, com um cenário próximo do que existia nos tempos de Arena e MDB, com as suas muitas nuances e graduações.

Estamos no meio de um transe do que parece ser um mundo pré-PT, com as muitas Arenas paroquiais 1, 2 e 3, com os variados MDBs dos autênticos, moderados e infiltrados e com as turmas do entorno, nas esquerdas que já foram classistas e agora são fortes por suas vozes identitárias.

Esse é o cenário. As emendas que engordaram o porco de Kassab na eleição só existem porque a direita já é forte, impositiva e faminta e fica com quase tudo. E as esquerdas se encolhem.

Essa direita apenas se fortaleceu um pouco mais agora na base de onde emerge, nos municípios de todos os tamanhos, incluindo as capitais. Que não se subestime o tamanho desse estrago daqui a dois anos.

 

¨      O maior enigma do Brasil. Por Emir Sader

A esquerda triunfou no Brasil, com a derrota do bolsonarismo, a eleição de Lula e o bom governo que ele realiza. A economia voltou a crescer, o nível de emprego aumenta, há um processo efetivo de distribuição de renda, de diminuição das desigualdades e da miséria.

O país continua enfrentando problemas de pobreza, de pessoas abandonadas nas ruas, de violência e de segurança pública. Mas conseguiu superar o pior momento, quando Dilma foi derrubada por um processo de lawfare – de judicialização da política –, assim como Lula preso, o que permitiu que Bolsonaro chegasse à presidência do Brasil.

Entretanto, o país encara esses problemas e outros a partir de uma situação mais favorável. Lula foi eleito novamente presidente do país, derrotando Bolsonaro, apesar de não ter maioria no Congresso e ter que fazer alianças com partidos de centro, além de ter herdado um presidente do Banco Central neoliberal.

Este mandato de Lula, priorizando fortemente a implementação de políticas sociais, se caracteriza claramente como um governo antineoliberal. O governo tem estabilidade política, e Lula se projeta externamente como o mais importante diplomata do século atual. E, internamente, se reafirma como o maior dirigente político da história do país.

O Brasil tem muitos desafios pela frente, mas, além de contar com a força política e o prestígio de Lula, poderá, talvez, contar com a reeleição dele como presidente, permitindo que governe pelo que lhe resta deste mandato e por mais um. O que seria fundamental, considerando que o país ainda precisa de um projeto estratégico, que permita ao Brasil passar do antineoliberalismo ao pós-neoliberalismo, isto é, superar o período marcado pela hegemonia neoliberal para outro período histórico, que ainda não está claro como poderá ser.

Isso não significa que o governo tenha um programa que lhe permita enfrentar os grandes problemas que o país encara. O governo tem colocado em prática medidas antineoliberais, sem dispor de um projeto de longo prazo e de maior profundidade.

A economia do Brasil continua tendo no capital especulativo sua espinha dorsal. Revela a atração que a ainda alta taxa de juros exerce, canalizando recursos para a especulação financeira e não para os investimentos produtivos.

Essa situação bloqueia a possibilidade de o país retomar um ciclo de crescimento e expansão econômica, apesar da superação da estagnação. A recuperação, pelo governo, do controle do Banco Central pode ser um elemento importante para elevar o ritmo de crescimento da economia.

Porém, o maior enigma do país reside no fato de que Lula faz um bom governo, mas as pesquisas não lhe dão um resultado favorável, proporcional ao sucesso do seu governo no plano econômico. Bolsonaro está derrotado, mas o bolsonarismo sobrevive, sem que se entendam suficientemente as razões para isso. Nem o governo de Bolsonaro deixou uma herança positiva, nem o sucesso do governo Lula se reflete em um grau de aprovação amplamente majoritário na opinião pública.

O resultado das eleições municipais reflete essa situação. A direita, entre o bolsonarismo, o Centrão e outras expressões da direita e da extrema-direita, saiu vitoriosa em todo o país. Ainda sem o resultado do segundo turno, o PT manteve resultados razoáveis, dado o previsível enfraquecimento do partido a nível nacional.

Isso significa que o prestígio da liderança de Lula no país não se traduz amplamente em resultados favoráveis ao PT. O partido precisa passar, urgentemente, por um processo de renovação a nível nacional, promovendo novas gerações. Antes disso, é preciso decifrar esse enigma de como o prestígio de Lula e do próprio partido não se traduzem em um apoio nacional amplamente majoritário. É indispensável decifrar esse enigma para que esteja garantido o futuro da esquerda no Brasil.

 

¨      A eleição municipal e o governo Lula. Por Jeferson Miola

Há quem argumente, no governo e no PT, que o resultado saído das urnas no último domingo é favorável ao governo, porque os partidos que ocupam ministérios e formam a base no Congresso saíram-se vitoriosos.

A realidade concreta, no entanto, não é bem assim.

A eleição municipal consagrou a vitória daqueles partidos fisiológicos e oportunistas que participaram e apoiaram ativamente o governo fascista-militar do Bolsonaro e que agora comandam áreas relevantes no governo Lula sem, contudo, qualquer lealdade política e programática a ele.

Gilberto Kassab, o camaleônico presidente do PSD, não deixa dúvidas a esse respeito. “Meu projeto é Tarcísio. Eu vou estar alinhado com o projeto que seja compatível com o projeto do Tarcísio, seja ele governador ou presidente”, declarou.

Tratam-se de partidos políticos que parasitam todos os governos, de qualquer lado do espectro ideológico, e que se afiguram como o principal fator do atraso, da corrupção e da pilhagem dos fundos públicos e do orçamento nacional.

Esse campo da direita adesista, junto com a extrema-direita oposicionista, obteve 25,4 milhões votos a mais em relação à eleição municipal de 2020, um crescimento de 49,7%.

De outra parte, o bloco partidário de esquerda e centro-esquerda, no seu conjunto, estacionou em relação à eleição municipal de 2020, com crescimento ínfimo de 1,8%, significando 400 mil votos a mais.

A vitória, portanto, daqueles partidos neoliberais, conservadores e fisiológicos mais beneficia a direita aboletada no governo do que o próprio governo, que aumenta o poder de pressão e chantagem. E aumenta, também, a capacidade de obstruir a concretização do programa pelo qual Lula foi eleito em 2022.

Argumenta-se, além disso, que o resultado eleitoral foi positivo para o PT porque o Partido do presidente Lula passou de 183 prefeituras conquistadas em 2020 para 248 em 2024.

O dado é correto, mas é preciso se considerar, no entanto, que 92,3% das cidades [188] nas quais o PT venceu possuem até 20 mil habitantes, outras 41 [16,5%] têm entre 20 mil e 50 habitantes e 15 [6%] até 100 mil habitantes.

Ou seja, um melhor desempenho nos grotões, em contraste com conquistas irrisórias nos centros urbanos mais populosos e de maior relevância na disputa política, cultural e ideológica do país.

Nos maiores centros, o PT conquistou apenas duas [0,8%] das 178 cidades com população entre 100 mil e 200 mil, somente duas [0,8%] das 158 cidades com mais de 200 mil habitantes, e nenhuma capital.

No segundo turno o PT disputa a eleição em 11 municípios com mais de 200 mil habitantes, o que pode representar uma oportunidade para atenuar esta realidade.

Mas, se para o PT e para o campo de esquerda e centro-esquerda o resultado da eleição foi desfavorável, pode-se dizer que também terá sido eleitoralmente prejudicial para o governo Lula e para sua reeleição em 2026?

Ainda que seja precipitado cravar uma resposta, pode-se deduzir que para Lula, pessoalmente, o resultado pode não ser comprometedor.

Isso porque pesquisas mostram que:

[i] o eleitor lulista não é, automaticamente, um eleitor petista; e que

[ii] o eleitor lulista tem perfil mais conservador que progressista, e vota em candidatos da direita conservadora e reacionária que integra o governo, e, inclusive, até na extrema-direita.

Em certo sentido, o lulismo enquanto fenômeno eleitoral é um “ativo privativo” do Lula, mais além do PT ou do conjunto da esquerda. O eleitorado do Lula não é fielmente aderente ao campo da esquerda como o eleitorado do Bolsonaro é fiel a candidaturas direitistas e extremistas.

Lula raciocina pragmaticamente com esta realidade. À luz da paisagem desenhada pela eleição municipal, ele deverá reconfigurar o arranjo de governabilidade para tocar a segunda metade do seu mandato e construir sua reeleição em 2026 mesmo que ao preço de entregar ainda mais nacos de poder e de orçamento a Kassabs da vida.

A questão é saber se essa escolha compensará eventuais perdas de base social e eleitoral que poderá se deslocar para o extremismo caso o governo não consiga responder às dramáticas urgências da maioria do povo brasileiro que não se alimenta de aumentos anunciados do PIB, como dizia Maria da Conceição Tavares.

 

¨      Por mais Lula no segundo turno. Por Bepe Damasco

O resultado em si do primeiro turno das eleições municipais para o PT ficou mais ou menos dentro do esperado. Não podemos esquecer da tática do partido de apoiar aliados e não lançar candidatos na maioria das capitais e outras cidades importantes.

Em relação ao número de prefeituras conquistadas pelo partido, houve um avanço de 39%, passando de 179 municípios em 2020 para 248 agora. O PT vai disputar o segundo turno em quatro capitais e mais nove cidades com mais de 200 mil eleitores. Houve crescimento também na quantidade de vereadores eleitos na eleição de domingo passado: foram 3.118 petistas, mais 550 do que há quatro anos. 

Quero repetir aqui algo que chamei a atenção em artigo recente: eleições municipais têm pouca influência nos pleitos presidenciais, seja porque a definição de voto em âmbito municipal se dá a partir de parâmetros específicos, ou pelo desencanto provocado pelos dois primeiros anos de mandato de boa parte dos prefeitos.

Contudo, já era esperada a insistência da imprensa comercial em vincular uma eleição à outra, ainda mais porque o resultado favoreceu a direita e a extrema-direita. Mas, se esta régua fosse válida, o PT não teria vencido nenhuma eleição presidencial, já que nas municipais que as antecederam o partido nunca chegou na frente em termos de prefeitos eleitos.

Mas, cabe destacar que ficou bem aquém do esperado o impulsionamento de candidaturas a partir de sua identificação com Lula e com o governo federal. Em geral, trouxe pouco retorno eleitoral ser do "time do Lula". Os motivos para que isso tenha ocorrido são variados e já são tema de artigos e debates por parte de militantes e dirigentes da esquerda brasileira e certamente darão "pano para manga."

Aqui quero focar em um ponto para a discussão: a tímida participação de Lula no primeiro turno. Antes, é importante fazer duas ressalvas: 1) Lula tem uma agenda pesada como presidente da República que efetivamente trabalha muito, ao contrário de seu antecessor. 2) Sem maioria no Congresso Nacional e dependente de uma aliança frágil com partidos conservadores para ter um mínimo de governabilidade, Lula se cerca de cuidados para não ferir susceptibilidades políticas entre os aliados, trazendo consequências negativas para seu governo.

Isto posto, ainda assim o excesso de cautela na política nem sempre é a melhor estratégia. Alguma dose de ousadia muitas vezes é bem-vinda. O receio de associar o nome do presidente e do governo a candidaturas eventualmente derrotadas, como defende gente do círculo mais próximo do presidente, é um temor que faz pouco sentido. 

Ganhar ou perder eleição deve ser visto com naturalidade. O mundo não acaba se o partido do mandatário sai derrotado. Faz parte do jogo.

Na Europa e nos EUA, presidentes e primeiros-ministros pedem votos para seus partidos em eleições em meio de mandato, mesmo diante da ameaça de não vencer. Como exemplo caseiro, podemos citar o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que colou em Ricardo Nunes desde o início de campanha, assumindo riscos.

Claro que Lula não deve virar cabo eleitoral 24 horas por dia, como nos seus tempos de dirigente do PT e nem embarcar em canoa irremediavelmente furada, mas é muito importante para o campo progressista que o freio de mão puxado do primeiro turno não se repita no segundo turno.

 

Fonte: Brasil 247



 

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