quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Avanço de pesquisas, inovação farmacológica e olhar para prevenção são esperança no combate à epidemia da obesidade

Por décadas, a obesidade foi tratada socialmente como consequência de uma suposta falha de caráter e falta de força de vontade, o que provocava sentimento de culpa nas pessoas e até mesmo impedia que elas procurassem ajuda profissional para o manejo do peso. Contudo, principalmente nos últimos 20 anos, mitos, estigmas e paradigmas têm sido quebrados. E, ao somar neste contexto os avanços de ciência e a demanda por soluções, o mundo entrou de vez em uma nova era da obesidade.

“O reconhecimento da obesidade como doença é muito recente se a gente for comparar com outras doenças crônicas como a diabetes, que já é reconhecida como doença há mais de 100 anos. Ela é a irmã mais nova das doenças crônicas”, destaca Priscila Mattar, endocrinologista e vice-presidente da área médica da Novo Nordisk Brasil. “Isso também exerce um papel na dificuldade de aceitação da obesidade como doença e na superação do estigma.”

O estigma muitas vezes era retroalimentado pela falta de conhecimento da própria ciência sobre a doença, uma vez que não se sabia os mecanismos envolvidos na condição. Mas hoje, a medicina avançou o suficiente para compreender que a doença tem natureza multifatorial. Fatores genéticos, epigenéticos, ambientais, psicossociais e econômicos influenciam no desenvolvimento da obesidade.

As descobertas das pesquisas permitiram também uma grande evolução não apenas na maneira como a doença é abordada nos consultórios clínicos, como também no progresso das terapias. As novidades permitiram uma verdadeira revolução, diminuindo o gap que existia entre os tratamentos medicamentosos e a cirurgia bariátrica e aumentando o arsenal disponível para profissionais e pessoas encararem os desafios da obesidade.

E essa nova era chega em boa – e necessária – hora. Um estudo apresentado no Congresso Internacional da Obesidade (COI), realizado por pesquisadores da Fiocruz Brasília, sugere que 48% dos adultos brasileiros viverão com obesidade até 2044. Os números também são alarmantes entre crianças e adolescentes: o Atlas Mundial da Obesidade 2024 projeta que o Brasil pode ter 50% das crianças e adolescentes entre 5 e 19 anos com excesso de peso – com obesidade ou sobrepeso – até 2035.

Diante desse cenário, esta última reportagem da série especial feita em parceria entre Futuro da Saúde e Novo Nordisk traça um panorama histórico e aponta, na visão dos especialistas, o que podemos esperar para um futuro próximo.

•        Falta de tratamento mudou ao longo dos anos

Durante muito tempo, os médicos se limitavam à recomendação de mudanças de hábitos de vida, como a adoção de dietas restritivas e a inclusão da prática de atividade física na rotina. Os resultados eram pouco animadores, uma vez que a adesão por si só era muito difícil e mesmo nos casos em que isso ocorria, a perda de peso não era satisfatória para o paciente, que acabava se frustrando.

“O maior desafio era que, há 30 anos, já sabíamos que dieta e exercício físico podem não funcionar a longo prazo. Os pacientes perdiam peso e acabavam recuperando tudo de novo. Os remédios que nós tínhamos ofereciam perdas de peso que variavam de 4% a 6%, o que era muito decepcionante para o paciente”, ressalta Walmir Coutinho, professor de endocrinologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Puc-Rio) e ex-presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (ABESO) e da World Obesity Federation.

Ele conta que embora a medicina tenha se convencido a trabalhar com esse percentual, que já apresentava algum impacto positivo na saúde do indivíduo, “era muito difícil convencer um paciente que pesava 100 quilos a chegar a 95 quilos e se dar por satisfeito com isso.”

Por outro lado, os medicamentos disponíveis no mercado eram poucos e em sua maioria agiam como supressores de apetite. No entanto, devido aos efeitos colaterais significativos e ao potencial para abuso, seu uso foi progressivamente regulado e limitado.

“Mexiam muito com o humor e até mesmo com pressão arterial. Além disso, eram fármacos aprovados para uso por apenas 12 semanas, algo completamente inadequado para o tratamento de uma doença crônica”, relembra Cintia Cercato, endocrinologista e integrante do grupo de obesidade do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).

Outro ponto relevante, segundo Mattar, era a própria falta de capacitação profissional. Formada há 25 anos, ela salienta que ao longo da residência em endocrinologia, pouco teve contato com a doença e acredita que a falta de terapias eficazes contribuía para o ciclo vicioso, que inclui o estigma e a falta de cuidado e acolhimento nos serviços de saúde: “Ao longo da minha graduação, a carga horária sobre obesidade foi quase zero, e vejo que isso ainda não mudou. Tínhamos quatro, cinco ambulatórios de diabetes, com especificidades, mas o mesmo não acontecia com a obesidade.”

•        Descoberta de novos hormônios

Foi justamente quando os hormônios ligados à sensação de fome e saciedade começaram a ter sua ação desvendada com mais clareza, principalmente a partir de 1994, que esse cenário começou a mudar e novos recursos terapêuticos foram apresentados ao público. “Começamos a ter uma maior compreensão sobre a regulação da fome e da saciedade e, então, houve todo esse avanço no conhecimento da fisiopatologia da doença”, pontua Cercato.

A leptina, hormônio responsável por sinalizar ao hipotálamo que o corpo tem energia suficiente e, assim, reduzir a fome, foi a primeira a ser investigada e a inaugurar um novo marco na compreensão da relação entre cérebro e obesidade, graças à pesquisa conduzida pelo cientista molecular Jeffrey Friedman.

Além dela, fazem parte desse grupo outros hormônios, como grelina, insulina e GLP-1, considerados protagonistas até então na relação entre cérebro, fome e obesidade. Em comum, eles chegam ao hipotálamo – região do cérebro responsável por regular diversas funções do corpo, como apetite e equilíbrio energético. Foi essa compreensão que viabilizou a chegada de medicamentos agonistas para o tratamento da obesidade, ou seja, que “imitam” ou “estimulam” a ação de uma substância natural do corpo ao se ligar a um receptor.

“Estamos falando de medicamentos que são cópias de hormônios produzidos no nosso intestino. É basicamente uma área que há 25 anos, 30 anos não era muito conhecida. Você sabia que tinha uma série de hormônios intestinais, mas não os efeitos específicos. Com essas descobertas, temos a pedra fundamental, temos um caminho”, analisa Mattar, que destaca ainda o fato de que as descobertas combinam eficácia e segurança, um grande desafio na área até então.

De 2014 para cá, os órgãos reguladores internacionais já aprovaram uma série de abordagens que funcionam como cópias idênticas de hormônios que o próprio corpo produz e inibem não só a fome, como também regulam áreas do hipotálamo. Para Walmir Coutinho, o momento é histórico: “Nos últimos dois, três anos, tivemos um salto muito grande de qualidade e eficácia dos remédios antiobesidade. Hoje, estamos trabalhando com medicamentos que oferecem uma faixa de perda de peso de 17% a 22%. Esse é um momento histórico no tratamento da obesidade, onde finalmente podemos oferecer ao paciente fármacos com sucesso terapêutico.”

São exemplos reais dos avanços da ciência, que indicam que há espaço para mais descobertas que buscam se aproximar dos efeitos estimados de perda de 30% do peso com a intervenção cirúrgica – solução relevante dentro do leque de opções. “A cirurgia bariátrica é importante, porque estamos falando de perfis de pacientes distintos. Há o paciente que é candidato a tratamento farmacológico, o que é candidato a cirurgia bariátrica e aquele que é candidato aos dois tratamentos associados. Hoje temos mais opções terapêuticas, e cada vez mais seguras, para poder delinear e oferecer ao nosso paciente diferentes possibilidades de tratamento”, indica Cercato.

Para ela, a chegada de novos medicamentos abre caminho para um futuro de terapias combinadas, com resultados ainda melhores e maior bem-estar do paciente.

•        Além do peso

Em paralelo a essa evolução farmacológica, um paradigma importante foi modificado graças ao maior conhecimento sobre a doença: a ideia de que apenas o peso não é determinante para um indivíduo desenvolver a doença. “A maneira como essa gordura se distribui pelo organismo é mais importante do que o peso propriamente dito”, afirma Coutinho.

Ao aprofundar as pesquisas, foi possível perceber que a composição corporal e o tipo de gordura presente têm uma influência muito maior no quadro de obesidade e em possíveis comorbidades e desfechos negativos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que pessoas com obesidade têm maiores chances de desenvolver doenças crônicas não transmissíveis como diabetes tipo 2, hipertensão, condições cardiovasculares e esteatose hepática (gordura no fígado).

Um dos principais fatores transformadores das novas classes de medicamentos antiobesidade é justamente a atuação sobre essas comorbidades. Estudos já mostram benefícios cardiovasculares, renais e no controle glicêmico. E novas pesquisas estão a todo o vapor. “Até então, tínhamos drogas que focavam muito na importância da perda de peso, mas esses novos medicamentos não são apenas emagrecedores, são realmente para tratar a obesidade”, ressalta Cercato.

O próximo passo deve ser a investigação sobre o potencial da combinação de diferentes moléculas, com diferentes ganhos secundários, como aponta Mattar: “Estamos lapidando o caminho para encontrar soluções cada vez melhores. Existe uma gama desses hormônios intestinais e o que estamos fazendo agora é combiná-los para aumentar a potência, sempre olhando para a necessidade do paciente.”

Além dos hormônios, cientistas têm se debruçado também no entendimento de quais traços genéticos estão associados à obesidade, na expectativa de que a descoberta ajude no desenvolvimento de novas abordagens. Um dos caminhos tem sido aprofundar os estudos sobre a conexão entre a doença e os sistemas neurais. Outro que vem ganhando destaque é a epigenética, que observa mudanças funcionais no genoma que não envolvem alterações na sequência de DNA, mas que regulam a expressão gênica e podem ser influenciadas por fatores ambientais, comportamentais e do desenvolvimento.

Nesse nicho, há inclusive a ideia de entender como hábitos maternos ainda durante a gestação podem estar relacionados ao aumento do risco de o bebê desenvolver obesidade ao longo da vida. Hoje, já se sabe, por exemplo, que o canal do parto, o aleitamento e o contato da pele da mãe com o bebê influenciam na microbiota – que por sua vez tem tido sua relação com a obesidade aprofundada e as evidências indicam que existe associação.

A própria Sociedade Brasileira de Pediatria definiu focos de ação nessa área como estratégia de prevenção contra a obesidade infantil, de acordo com manual lançado em 2019. Um estudo brasileiro analisou três estudos de coortes no país e constatou que o parto cesárea está associado a uma prevalência 50% maior de obesidade ao longo da infância e adolescência.

•        Políticas de prevenção são ferramenta para o futuro

Para o futuro, frente ao desafio de aumento da incidência de doenças crônicas global, a sociedade precisará atuar em diversas frentes. Enquanto a ciência evolui em termos de entendimento da obesidade e avança no desenvolvimento de soluções, a adoção de estratégias de prevenção e promoção de um estilo de vida saudável deverá assumir papel preponderante na visão holística do problema.

Isso inclui uma lógica intersetorial, com atores da saúde, educação, cultura e outros atuando juntos. Programas de prevenção, políticas de alimentação saudável e exercícios e até mesmo planejamento urbano entram nessa conversa. Até mesmo a taxação de ultraprocessados e de bebidas açucaradas, prevista na Reforma Tributária, são um exemplo de iniciativa neste sentido.

Cercato relembra o histórico do Brasil no enfrentamento da obesidade e pontua que é preciso construir políticas públicas que contemplem esse desafio: “Antes, o Brasil se destacava na América Latina em termos de políticas públicas, fomos um dos primeiros países a instituir regras de rotulagem com a listagem dos ingredientes. Hoje, saímos desse lugar de pioneirismo. Existe muito trabalho a ser feito para melhorar as políticas públicas no campo da prevenção em relação à obesidade.”

Para Mattar, o investimento em ações de modificação de estilo de vida é indispensável, e deve vir acompanhado de estratégias de educação para a população como um todo. “Parece clichê, mas na verdade é a fórmula para combater essa pandemia de obesidade. E essa prevenção deve começar ainda no consultório de pediatria. Acredito que estamos avançando nesse sentido”, conclui.

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

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