É verdade que a Bíblia condena o divórcio?
Embora divórcios sejam
condenados pela Igreja Católica e, em diferentes graus, malvistos pela maior
parte das denominações evangélicas, há passagens bíblicas que os permitem, em
casos específicos.
E no entendimento de
alguns religiosos com mentalidade mais contemporânea, as justificativas
bíblicas para a dissolução do casamento podem ser ampliadas, dado o contexto de
hoje, a situações de violência doméstica, vícios de um dos cônjuges ou qualquer
situação grave que impossibilite a convivência plena e harmônica sob o mesmo
teto.
Repleto de normas e
regras presentes na ancestral sociedade de Israel, o livro do Deuteronômio,
provavelmente do século 6 a.C., traz uma passagem emblemática sobre o assunto.
“Caso um homem tome uma mulher e a despose e, mais tarde, encontrando nela qualquer
coisa que o envergonhe, deixe de olhá-la favoravelmente, redija para ela uma
ata de repúdio e a entregue, mandando-a embora de sua casa”, diz o trecho.
Que prossegue dizendo
que no caso de ela se casar com outro e se tornar viúva, o primeiro marido não
pode envolver-se com ela novamente.
Embora seja uma
passagem recorrentemente trazida quando a discussão é divórcio na Bíblia, é
preciso lembrar do contexto em que ela foi escrita e a quem foi dirigida.
Como pontua o pastor
batista e teólogo Yago Martins em seu recém-lançado livro Igrejas que Calam
Mulheres, o texto do Deuteronômio reflete a sociedade judaica da época. Ou
seja: “não fala à mulher sobre o homem, mas ao homem sobre a mulher”.
Na interpretação
contemporânea, portanto, é legítimo que se entenda a passagem como algo válido
também com os papéis invertidos, uma vez que a sociedade atual é, pelo menos em
teoria e princípios, baseada na igualdade entre homens e mulheres.
• Permissão
Martins lembra ainda
que a lei do Antigo Testamento “nem ordena nem admite o divórcio em geral, mas
somente regula sua prática para o antigo Israel”. Assim, o trecho não é uma
“ordem para o divórcio, apenas uma permissão”.
O teólogo entende que
o trecho serve para proteger as mulheres, pois cria um instrumento que garante
a elas um distanciamento do primeiro marido nessas situações de separação e
novo casamento.
Mas não é o único
trecho a mencionar o assunto, evidentemente. No Evangelho de Mateus, há uma
passagem que novamente retoma o tema. No trecho, Jesus é questionado pelos
mestres da lei sobre ser correta ou não a dissolução do casamento. Embora eles
evoquem a escritura presente em Deuteronômio, Jesus busca a resposta no livro
do Gênesis, o que narra a criação do mundo.
E argumenta que Deus
fez homem e mulher para se tornarem “uma só carne”. “Não separe, pois, o homem
o que Deus uniu”, adverte.
Na réplica, seus
interlocutores recordam o costume judaico que permite o divórcio. Jesus rebate
dizendo que há casos em que há “dureza” nos corações. E finaliza dizendo que
“se alguém repudia sua mulher, exceto em caso de união ilegal, e se casa com
outra, é adúltero”.
Há um paralelo desta
mesma história no Evangelho de Marcos, como aponta a teóloga Tereza Maria
Pompeia Cavalcanti, professora aposentada na Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
“[Nele,] Jesus afirma
que Moisés permitiu o divórcio ‘por causa da dureza do coração de vocês’. Mas
acrescenta que desde o início da criação, ‘Deus os fez homem e mulher. Por isto
o homem deixará seu pai e sua mãe e os dois serão uma só carne. Portanto, o que
Deus uniu, o homem não deve separar’”, cita ela, à BBC News Brasil.
O teólogo Martins
comenta que essa polêmica se origina no fato de que Jesus “queria abordar o
padrão de Deus para o matrimônio” e não “a concessão para o divórcio”. “O
divórcio não era um mandamento, mas uma permissão”, pontua.
À BBC News Brasil, a
teóloga, filósofa e biblista Zuleica Aparecida Silvano, freira da Congregação
das Filhas de São Paulo, professora na Faculdade Jesuíta de Filosofia e
Teologia e integrante da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica, explica
que, no judaísmo a expressão uma seo carne é interpretada “como sendo o filho
ou a filha”, ou seja, o produto da união do casal.
“[Assim,] os pais
nunca poderão se separar de seus filhos, dado que algo do pai e da mãe continua
nos filhos. Mas não é interpretada [a expressão] como sendo o casal”, afirma
ela.
• Abandono
Também no Antigo
Testamento, o livro do Êxodo aborda o divórcio sob uma outra perspectiva.
Na passagem, há o
exemplo de um homem que toma para si uma segunda escrava — mas a regra adverte
que se ele reduzir o alimento, a vestimenta ou a coabitação com a primeira, ou
mesmo não providenciar para ela essas três coisas, “ela poderá sair gratuitamente,
sem nada despender”.
Novamente, a lógica
patriarcal daquela sociedade precisa ser levada em conta na interpretação.
Portanto, a visão mais contemporânea do cristianismo aplica a mesma ideia ao
casamento hoje em dia: se um dos cônjuges abandona o outro, de alguma forma,
sentimental ou materialmente, ou ainda promove a violência dentro do
relacionamento, a vítima poderia “sair gratuitamente” dessa situação.
Já na primeira das
cartas enviadas por Paulo à comunidade cristã de Corinto, há a advertência “aos
que são casados” para que “a mulher não se separe do seu marido” e “se está
separada não se case de novo ou reconcilie-se com o marido”. E também para que “o
marido não repudie a sua mulher”.
O contexto daquela
situação, vale lembrar, era que mulheres cristãs vinham tendo dificuldades na
manutenção de seus relacionamentos com maridos pagãos. E muitas vinham optando
pelo divórcio na ideia de seguir uma vida religiosa.
“Paulo fala da
possibilidade de divórcio se houver discussões entre os casais por causa de
religião, ou seja, no caso que um dos cônjuges é de uma tradição religiosa
gentílica ou judaica e o outro, ou a outra, adere a Jesus Cristo”, explica
Silvano.
“Se não é possível
viver em paz, assim é melhor se separarem. Isso se chama, no Código de Direito
Canônico, de ‘privilégio paulino’, mas somente nos casos quando uma pessoa se
casa com alguém de outra religião não cristã.”
• Machismo histórico
Em conversa com a BBC
News Brasil, Martins ressalta que “o grande ponto” que gera a falta de consenso
é o fato de que as pessoas tendem a “escolher pedaços da Bíblia”.
“Todo mundo gosta de
algum pedaço da Bíblia”, ressalta ele, defendendo uma interpretação que
considere o todo e o contexto.
“Quando falamos sobre
casamento, existem pequenas coisas que envolvem essa estrutura. Mas o centro
disso é o amor, a entrega da minha vida em amor e cuidado. É o básico de um
relacionamento”, afirma ele.
Silvano entende que
havia um machismo que deixava desigual a relação entre homens e mulheres sobre
o tema na época de Jesus — e, segundo o entendimento dela, isso teria motivado
o posicionamento dele como contrário à prática. A especialista lembra que no
judaísmo, “o homem poderia dar carta de divórcio para a mulher” em algumas
ocasiões.
"A grande crítica
que Jesus faz do divórcio nos evangelhos era por causa dessa disparidade, ou
seja, os homens tinham o direito de colocar qualquer motivo para se divorciar e
a mulher não”, comenta ela.
Esta é a principal
crítica que faz a filósofa e teóloga feminista Ivone Gebara, freira agostiniana
e autora de, entre outros, As Incômodas Filhas de Eva na Igreja da América
Latina.
“[A Bíblia] menciona
que as mulheres encontradas em adultério podem ser reenviadas por seus maridos,
mas o contrário não é afirmado”, ressalta ela, à BBC News Brasil. “[Nos textos
sagrados] o homem é sempre preservado, mesmo sendo adúltero.”
No Evangelho de
Mateus, conforme lembra a teóloga Cavalcanti, admite-se “o divórcio, no caso em
que houver adultério”. O trecho diz que “quem quer que repudie sua mulher —
exceto em caso de união ilícita — expõe-na ao adultério”, o que permite
compreender que em caso de adultério um divórcio seria aceitável.
No entendimento de
religiosos mais abertos à organização social atual, essas passagens devem ser
interpretadas de modo igualitário entre os gêneros, deixando a supremacia entre
homem e mulher como uma questão do contexto histórico de quando tais textos foram
escritos. É o que Martins, por exemplo, argumenta em seu livro.
• Católicos e protestantes
“A Bíblia menciona,
sim, a questão do divórcio. Jesus toca nesse assunto nos evangelhos e diz que
isso tudo é possível, [pois] Moisés permitiu que as pessoas se divorciassem por
causa ‘da dureza dos corações’”, afirma à BBC News Brasil o historiador e teólogo
Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Ele lembra, contudo,
que isso gera “uma divisão entre católicos e protestantes” quanto ao
entendimento. Para os católicos, como o casamento é um sacramento, “é algo
indissolúvel”.
“Já para os
protestantes, é uma bênção dada em um culto que sela a união entre homem e
mulher. Então [o divórcio] é possível mesmo que a justificativa seja a dureza
do coração. É possível que se quebre essa aliança por N motivos, e isso não
significa o fim, significa a possibilidade reconstituição de uma nova família”,
argumenta Moraes.
Segundo o professor, a
dissolução de um casamento em igrejas não católicas é facilitada sobretudo
“quando há algum elemento que envolva adultério”.
“Então a parte
vitimada estaria de alguma forma liberada dos seus votos porque a outra parte
foi infiel”, explica.
“As igrejas [não
católicas] aproveitam isso para fazer campanhas, para de alguma forma doutrinar
pessoas que estão recomeçando suas vidas e, nesse sentido, parece que os
evangélicos conseguem dar um passo adiante em relação aos católicos”,
acrescenta ele.
Moraes conta que a
Igreja Universal, por exemplo, já teve encontros para pessoas divorciadas que
funcionavam como uma espécie de “campanha do amor”. “Era exatamente para as
pessoa que estavam ali numa situação em que precisassem encontrar um novo
parceiro, uma nova parceira.
Nesse sentido, as
igrejas evangélicas herdeiras de uma tradição protestante se adaptaram melhor a
essa ideia [do divórcio], inclusive acolhendo esses que se divorciaram e aí
implantando novamente o ideal de uma família feliz”, diz.
Fonte: BBC News Brasil
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