Antonio Martins: É preciso um governo Lula
3-B
O governo Lula 3-A
chocou-se contra um iceberg ontem (6/10), ao sofrer uma derrota eleitoral muito
vasta. Sua rota ao desastre segue a de outros governantes que hesitam em
enfrentar as novas forças que oprimem as sociedades – em especial, o rentismo
–, desencantam os eleitores com a democracia e abrem espaço para a ultradireita
e suas diversas formas de antipolítica. O fenômeno espalha-se pela Europa e
Américas. Ocorreu (ou ocorre) com Alberto Fernández na Argentina, Gustavo Boric
no Chile, Emmanuel Macron na França, Olaf Scholz na Alemanha, o Partido
Democratico (ex-PCI) na Itália, os socialistas portugueses, o Syriza na Grécia
e tantos outros.
A eleição ainda não
acabou. Uma vitória — desejável e possível — de Guilherme Boulos na cidade mais
influente do país pode amenizá-lo um pouco. Mas o essencial não mudará. O
resultado abre de imediato a disputa por 2026 e terá efeitos sérios sobre a
governabilidade de Lula, a ponto de abrir-se uma bifurcação. Ou o presidente
opta por manter o caminho que escolheu por volta do terceiro mês de seu mandato
– e neste caso terá ainda menos margem de manobra, pois seus adversários se
fortaleceram; ou rompe o script, resgata os momentos de entusiasmo produzidos
entre a vitória eleitoral e a posse apoteótica e apela à mobilização de suas
bases. A trajetória também será pedregosa, mas permite reconstruir um horizonte
político. É com tal hipótese que este texto trabalha.
Vale examinar
sinteticamente os números do pleito, para dissipar dúvidas sobre o sentido do
resultado. As eleições municipais não refletem exatamente a correlação de
forças entre os partidos (pois o poder local, conservador, pesa de modo
exagerado); mas sinalizam tendências. O gráfico abaixo registra número de
prefeituras obtidas pelos partidos à esquerda, entre 1985 e 2024. Nos primeiros
15 anos após a redemocratização, o volume de prefeitos(as) eleitos(as) cresce
continuamente, passando de 40 a 430. É a época em que surgem novidades
marcantes, como o “modo petista de governar” e, muito especialmente, os
Orçamentos Participativos – hoje, na prática, abandonados. Mas a curva sobe
ainda mais intensamente a partir da primeira chegada de Lula ao governo, e passa
de 430 a 1.610 entre 2000 e 2012. Cai de modo abrupto nas duas eleições
seguintes, com o golpe e os governos Temer e Bolsonaro.
Mas, em clara ruptura
com o que ocorreu nos governos de esquerda anteriores, em 2024 o novo mandato
de Lula não dá impulso relevante aos partidos que o apoiam. O PT aumenta
ligeiramente o número de prefeituras (de 183 para 248, mas ainda assim abaixo
dos 261 eleitos em 2016, ano do golpe contra Dilma). Com o PSB, dá-se o mesmo.
Mas PDT, PCdoB, Rede e PSOL encolhem. No cômputo geral, os seis partidos
alcançam, com Lula na Presidência, 728 eleitos – 10% a menos do que haviam
alcançado sob Bolsonaro, há quatro anos.
Ao contrário de tudo o
que se esperava quando da eleição de Lula 3, os que avançam, em seu mandato,
são o Centrão (no conjunto do país) e a ultradireita (nas capitais e maiores
cidades). PSD (874 eleitos), MDB (843), PP (742), e União Brasil (577), todos
componentes do grande bloco fisiológico-direitista, são de longe os mais
vitoriosos, obtendo 54% das prefeituras. O primeiro – partido de Gilberto
Kassab e do governador de São Paulo, Tarcísio Nunes – teve crescimento de
31,6%. O PL, de Jair Bolsonaro, elegeu 510 prefeitos e destaca-se nas capitais
– por onde ex-presidente circulou de forma intensa, durante a campanha. O
partido venceu em duas delas e está no segundo turno em sete. Também é a força
principal nas 103 maiores cidades, as que têm segundo turno: venceu 10 e
disputará 23 prefeituras. Neste grupo de metrópoles, os seis partidos à
esquerda, somados, venceram apenas quatro disputas e estão no segundo turno em
21.
Para compreender como
se produziu este desastre, é preciso examinar as circunstâncias muito
particulares do cenário político brasileiro desde a terceira eleição de Lula –
e como seu governo tem respondido a elas.
A tarefa de
reconstruir o Brasil em novas bases, com a qual o presidente comprometeu-se de
forma explícita, em discursos ao “governo de transição”, é fascinante,
mobilizadora e… extremamente árdua. Ela pode resgatar milhões de brasileiros da
vida precária a que estão submetidos e dar outra vez sentido à ideia desgastada
de nação. Mas contra ela pesam os interesses dos grupos que extraem a riqueza
das maiorias – e se tornaram, nos últimos anos, cada vez mais imunes às
decisões do Estado brasileiro. O Banco Central “independente” presenteia a cada
ano ao 0,1% mais rico, por meio da taxa de juros, duas vezes o orçamento da
Saúde. As agências “reguladoras” transferem ao grande capital privado as
decisões essenciais sobre serviços públicos como telecomunicações, transportes,
energia elétrica, águas, saúde complementar, mineração, petróleo e gás. A Saúde
e Educação públicas vivem subfinanciamento crônico. Os bancos públicos foram
reduzidos e desfigurados; o BNDES, financeiramente esvaziado; a Eletrobrás,
privatizada; a Petrobrás, extirpada de suas subsidiárias mais importantes; o
Orçamento, loteado em favor das ambições eleitorais dos parlamentares.
Enfrentar esta teia de
interesses exige duas capacidades que Lula tem de sobra: a de articulador
político e a de mobilizador social. Mas embora permaneça exímio no manejo do
primeiro atributo, o presidente descuidou-se do segundo, desde que chegou ao
Palácio do Planalto. Os períodos presidenciais do lulismo nunca convocaram as
maiorias a exercer pressão sobre as instituições e fortalezas conservadoras –
ao contrário do que ocorreu, por exemplo, com Hugo Chávez na Venezuela, López
Obrador no México ou Gustavo Petro na Colômbia. As consequências desta escolha
não apareceram com clareza nos dois primeiros mandatos, quando a situação
econômica era mais favorável e, principalmente, não havia ultradireita
organizada no país. A partir de 2022 tudo havia mudado.
Forma-se um círculo de
impotência que começa na recusa a tensionar o poder conservador e termina no
desencanto com a política e na produção de mais combustível para o
(neo)fascismo. Funciona assim:
1. Livres de pressão
popular, as instituições mantêm seu papel de guardiãs dos privilégios.
(Passados dois anos, Lula não foi capaz de impor ao BC a queda na taxa de
juros, de recuperar a Eletrobrás ou a BR Distribuidora, e sequer de nomear um
dos 13 membros do conselho de gestão da Vale).
2. A preservação da
desigualdade e das injustiças frustra, obviamente, a sociedade. (O governo
sequer tentou reverter a contrarreforma trabalhista de Michel Temer, e propôs,
aos precarizados em empresas-plataforma, um projeto infame, que despertou sua
ira).
3. O desencanto das
maiorias com a democracia agora encontra um canal: o mercado eleitoral da
ultradireita, onde surgem e continuarão se multiplicando os Nikolas, os Pablo
Marçal, os Bruno Engler, as Cristina Graemi, os Lucas Pavanato e tantos outros.
A penalização de Marçal é certamente necessária, mas de muito pouco servirá. A
esta altura está perfeitamente claro que, enquanto não for interrompido, o
círculo da impotência continuará gerando monstros… cada vez mais populares!
Em nenhum outro
terreno da ação de Lula este fenômeno é tão absurdo quanto no “ajuste fiscal”
liderado e conduzido pelo ministro Fernando Haddad. Aqui, o governo não
precisou de adversários. Agiu e continua agindo para limitar a si próprio,
provavelmente por cegueira e submissão ideológicas. Bloqueou o meio mais ágil
de que dispõe para melhorar as condições de vida das maiorias e iniciar a
reconstrução do país; privou-se precisamente do instrumento que as instituições
conservadoras teriam mais dificuldades para sabotar.
O exame crítico
detalhado do “arcabouço fiscal” proposto em abril de 2023 e das propostas de
“orçamento com déficit zero” apresentadas em setembro daquele ano e de 2024
está feito nestes textos. O que importa aqui é examinar um aspecto particular:
como o governo teria podido, caso se visse livre destas duas amarras, abrir uma
nova agenda nacional e colocar na defensiva as forças que sempre quiseram
limitá-lo.
O gasto público social
é, num país carente e desigual, uma ferramenta decisiva para proteger as
maiorias e engajá-las num projeto político. É o que pode alimentar, por
exemplo, um plano de reconstrução da indústria; a universalização do
saneamento, com despoluição dos rios urbanos e áreas costeiras; a escola
pública em período integral; a transição energética; a execução de um novo
projeto para a Amazônia, que mantenha a floresta em pé; um SUS capaz de
oferecer, também, consultas e exames sem fila de espera; o respaldo aos bancos
públicos, para livrar da agiotagem privada as famílias e empresas endividadas.
O gasto público social pode, além disso, dar ao Estado condições de empregar
com dignidade – salários e direitos – as milhões de pessoas necessárias para
realizar estas tarefas.
O gasto público social
precisa, como todas as despesas do Orçamento, de aprovação do Congresso. Mas
tanto a lógica política quanto a experiência concreta demonstram que mesmo os parlamentares
contrários à esquerda têm enorme dificuldades em contestá-lo – e terminam
cedendo aos governos que o propõem. Quem votaria contra, por exemplo, um
projeto para conceder, com recursos do Estado, direitos essenciais – férias
remuneradas, seguro-acidente e seguro-doença – aos trabalhadores das empresas
de aplicativos? Que deputado ou senador se oporia à contratação de um milhão de
professores(as) de múltiplas disciplinas, médicas(os), psicólogos(as),
enfermeiros(as), fisioterapeutas, merendeiras(os) ou agentes culturais para
estabelecer a educação integral na escola pública e para ampliar o atendimento
no SUS? Os que se atrevessem sofreriam decerto consequências graves em seus
redutos.
Todo este imenso
potencial de transformação da vida e da política foi limado pela política
fiscal do governo. O “ajuste fiscal” jamais fez parte do programa do governo
Lula. Foi introduzido de contrabando, no primeiro trimestre de 2023. Integra
uma espécie de “programa oculto” de todos os governos neoliberais. Levou
Emmanuel Macron a impor ao Parlamento, na França, a elevação da idade mínima
para aposentadorias – e a abrir caminho para Marine Le Pen. Fez Olaf Scholz
eliminar os subsídios ao diesel usado pelos agricultores alemães em seus
tratores – apenas para abrir espaço a vitórias inéditas dos neonazistas.
Amputou os braços do governo Lula, até levá-lo à derrota deste domingo. A
Reforma Agrária está parada, como não se cansa de alertar João Pedro Stédile. O
Executivo desistiu de enfrentar o “novo ensino médio”, que oferece um ensino de
segunda categoria às maiorias, para economizar tostões. O subfinanciamento do
SUS prossegue. As verbas do ministério do Meio Ambiente para combater a
devastação ambiental serão, em 2025, menores que as do primeiro ano de
Bolsonaro. Etc etc etc. O que o “ajuste fiscal” ainda fará com o Brasil até
2026?
As eleições não
terminaram. As cartas centrais estão sobre a mesa. Em 6/10, houve uma clara
vitória da forças políticas e sociais mais retrógradas. Há sinais muito
evidentes de que ela está relacionada ao fracasso do governo Lula 3-A.
Virá Lula 3-B? Como se
viu ao início, as condições agora são mais difíceis. Gilberto Maringoni lembra,
a partir do exemplo de Franklin Roosevelt, que as decisões mais centrais de um
governo – aquelas que sacodem o senso comum antes estabelecido – devem ser
tomadas nos primeiros cem dias. No entanto, a reconstrução nacional, num país
tão regredido quanto o Brasil, sempre será capaz de empolgar.
Lula conserva
popularidade relevante. Sua liderança e capacidade de apelo e sensibilização
são incomparáveis. Terá a abertura à mudança e o espaço mental necessários para
refletir a sério sobre os resultados deste domingo e sobre seu próprio governo?
Se a resposta for não, a tendência é o Executivo acionar o piloto automático e
tentar aguentar-se até o fim de seu período. O preço será um enorme sofrimento
– para as maiorias e, ao fim e ao cabo, para o próprio presidente. Nesse caso
pode ser recomendável, para quem acredita num futuro digno para o Brasil, sair
em busca de outros meios de viabilizá-lo.
Mas se Lula estiver
disposto a promover um giro em seu mandato, a enfrentar com habilidade e manha
(mas também com valentia e audácia) as forças que o mantêm até agora
acorrentado – aí, sim, teremos dois anos de ótimas emoções pela frente.
Fonte: Outras Palavras
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