“É preciso devolver os brinquedos aos
nossos filhos”, diz psicólogo
O psicólogo americano,
Jonathan Haidt, autor de um best-seller sobre o tema, conta sua receita contra
a ansiedade juvenil.
Tire esses smartphones
das mãos dos seus filhos, se puder. Bani-los das escolas. Adiar a idade em que
os recebem, controlar a forma como os utilizam, proibir as redes sociais até
aos 16 anos. Punir os produtores que não cooperarem. A existência deles, e a
sua também, florescerá novamente, protegendo você dos predadores online, das
doenças mentais que assolam os adolescentes em todo o mundo e do pesadelo dos
suicídios. Eles voltarão a brincar, a crescer, a ter uma vida social como seres
humanos, até a melhorar as notas na escola. Jonathan Haidt garante isso em seu
livro A geração ansiosa: como a Infância hiperconectada está causando uma
epidemia de transtornos mentais, publicado no Brasil pela editora Companhia das
Letras (2024).
<><> Eis a
entrevista.
• Você denuncia a “Grande reconfiguração
da infância”. O que é isso?
O ser humano é um
mamífero e durante milhões de anos a infância foi baseada na brincadeira, que
serviu para construir competências para a vida adulta. Por volta de 2010, a
situação mudou rapidamente na maioria dos países desenvolvidos: há muito menos
jogo grátis e tudo é baseado em smartphones. Em teoria poderia ter funcionado,
mas na realidade foi um fracasso total. A saúde mental diminui em todo o mundo,
especialmente entre as adolescentes.
• Por que você afirma que os smartphones e
as mídias sociais são os culpados?
Depende das
características das ferramentas e do seu impacto. A pesquisa é complexa, porque
não são como os cigarros, que prejudicam a todos da mesma forma. Milhões de
crianças são prejudicadas de diferentes maneiras. Alguns são vítimas de
extorsão de adultos desconhecidos que desejam imagens sexuais, outros de
desafios no TikTok para se distraírem, da perda de sono, de centenas de
conexões virtuais que tiram tempo das reais, da comparação com outras, do
enfraquecimento dos laços familiares, da falta de luz solar. As crianças
precisam estar ao ar livre e brincar, mas em vez disso passam a maior parte do
tempo a olhar para os seus telefones.
• O livro também critica os pais
superprotetores. O que eles estão fazendo de errado?
Brincar é uma
necessidade biológica para desenvolver o cérebro. Nas décadas de 80 e 90, por
razões de segurança não relacionadas com as redes sociais, começamos a impedir
que os nossos filhos fizessem as coisas que fazíamos quando crianças, ou seja,
brincar e movimentar-se de forma independente. Isto atrofiou o seu
desenvolvimento, mas o declínio na saúde mental acelerou a partir de 2010.
• Que prova você tem?
Nos gráficos, a curva
de doenças mentais e de meninas que se machucaram disparou por volta de 2012.
De repente elas ficaram superconectadas a plataformas que usavam algoritmos
para espalhar conteúdo sobre doenças mentais e automutilação, gerando ansiedade.
Não são impressões, mas dados de internações em pronto-socorro. Uma das causas
é o contágio comportamental, que afeta mais as meninas porque são mais abertas
aos relacionamentos e influenciadas pelos amigos. Para os meninos, os danos vêm
dos videogames e da pornografia. Isso elimina todo o resto da vida e produz
níveis muito elevados de estimulação cerebral. O mundo real não oferece as
mesmas experiências e por isso torna-se enfadonho. Isso gera comportamentos que
interferem no desenvolvimento.
• Você menciona Émile Durkheim e a anomia.
A falta de normas e de sentido em nossas vidas agrava a emergência?
O livro conta a
história de uma tragédia em dois atos: primeiro a perda da infância baseada nos
jogos, depois a afirmação de uma infância baseada nos aparelhos celulares.
Depois de terminar, percebi que havia também um terceiro ato importante, a
perda da comunidade. Devastador para a sociedade americana, a democracia e a
saúde mental. Quando se perdem capital social e confiança cívica, segue-se a
decadência, porque os seres humanos não podem florescer sem relacionamentos.
Durkheim percebeu que a anomia era um problema, e o número de suicídios era
maior entre solteiros do que entre casados, com muitos filhos, pessoas
religiosas.
• Ele cita Pascal, quando disse que no
coração dos homens existe um vazio na forma de Deus. A secularização contribui
para o problema?
O ser humano tem uma
vida espiritual e digo isto como ateu. Por isso, senti que era necessário
estudar também os efeitos que uma existência baseada no telefone tem sobre nós,
adultos, além dos benefícios práticos. Tanto Jesus como a sabedoria antiga de outras
religiões nos convidaram a não julgar, a meditar, porque a calma abre os
corações para a beleza que nos rodeia. A vida nas redes sociais faz exatamente
o oposto: você tem que julgar, rapidamente, e se não o fizer será julgado por
não julgar. Isso leva à degradação.
• Os tiroteios em escolas são em parte
devido a isso?
Não comento casos
específicos porque precisamos saber os detalhes dos autores, mas noto duas
coisas. Primeiro: muitos assassinos apoiam-se uns aos outros através da
internet e inspiram futuras gerações de assassinos. Segundo: nos EUA,
precisamos acordar para a evidência de que os nossos filhos estão tendo um
desempenho espetacular na escola, no trabalho e na sociedade. Eles jogam vidas
fora, e a perda de sentido e de comunidade, combinada com uma cultura da
internet que celebra tudo o que faz você ser digno de nota, motiva esses
comportamentos.
• O livro oferece algumas saídas.
Primeiro, volta ao jogo grátis. Por quê?
A certa altura ficamos
obcecados porque os resultados dos testes dos nossos alunos estavam caindo em
comparação com os estrangeiros. A resposta foi reduzir o recreio, os esportes,
as aulas de arte, pregá-los na cadeira. O resultado é que eles odeiam a escola
e vão ainda pior. Há evidências biológicas e psicológicas que demonstram a
importância da brincadeira não supervisionada.
• Então você gostaria de proibir os
smartphones. Acha que isso é possível?
Não só é exequível
como também está acontecendo à velocidade da luz. Estados inteiros e centenas
de distritos escolares estão se livrando do telefone. Os professores os odeiam.
• Terminadas as aulas, que uso de
telefones deve ser permitido?
As crianças não
precisam destas ferramentas como os adultos. Você não precisa de internet no
bolso 24 horas por dia, e não faz sentido protegê-los de jogos perigosos e
depois colocá-los em contato não supervisionado com adultos desconhecidos que
desejam abusar sexualmente deles. Portanto, nada de smartphones antes dos 14
anos, apenas um telefone para ligações e mensagens. E nada de mídia social até
os 16 anos. Razoável e viável.
• Quais são as responsabilidades das
empresas de smartphones e redes sociais?
Se você fabrica um
produto que prejudica milhões de crianças, deveria parar de vendê-lo ou
consertá-lo para limitar os danos. Por exemplo com verificação de idade, que
pode ser feita através do reconhecimento do dispositivo. Nos EUA, existe a Lei
de Proteção à Privacidade Online das Crianças, mas está desatualizada. Minha
esperança é que os produtores sejam legalmente responsáveis pelo que fizeram e
farão.
• O que é shifting? Entenda a trend da
geração Z para fugir da realidade
A estudante de
antropologia Beatriz*, 22 anos, se lembra de quando era pequena e a noite ia
chegando. Seus avós gostavam de reunir a família para contar histórias
Yanomami. Dentre tantas, existia a Pei Utupë, que, baseada em uma lenda, dizia
que a alma pode viajar para outras realidades por meio dos sonhos.
"Não se trata de
um sonho lúdico, mas, de fato, ir para outra realidade para se comunicar com as
entidades da floresta", explica Beatriz ao Estadão. E essa ideia nunca
saiu de sua cabeça. Aos 14 anos, em uma comunidade da internet, quando ela descobriu
a técnica do shifiting, ou diferente realidade, ou, ainda, DR, para os íntimos,
as coisas começaram a fazer mais sentido para ela.
• O que é shifting?
O shifting é uma
prática que começou a ficar popular nas redes sociais, especialmente no TikTok,
entre adolescentes e jovens adultos, que consiste em tentar "mudar de
realidade" por meio de técnicas de visualização, meditação ou até mesmo
sugestões hipnóticas. Seus praticantes acreditam ser capazes de acessar versões
alternativas da realidade, onde podem viver experiências desejadas, como estar
em um mundo fictício ou com seus personagens favoritos.
A psicóloga Fernanda
Calvetti Corrêa, especialista em psicologia analítica, tem como objeto de seus
estudos o shifting, que tem seus adeptos e seus críticos.
"Há quem acredite
que o shifting é pecado, surto psicótico ou devaneio excessivo ou, ainda, papo
de jovem que não dá conta da própria vida. Mas as pessoas precisam entender que
elas também foram imaturas e se apegaram a temas específicos em sua juventude/adolescência
- a coisas que faziam sentido para elas naquele momento", explica a
psicóloga.
Corrêa, que atende a
várias pacientes que utilizam a prática no dia a dia, diz porém, que a prática
em si, que não tem comprovação científica, não é um problema - desde que isso
não atrapalhe a realidade da pessoa.
• O mundo paralelo
Assim como Beatriz,
Sofia e Stefany* também se interessaram pelo shifiting. "Durante a
pandemia, não podíamos sair de casa. Um dia, vendo o feed do TikTok, descobri a
parte do shifttok (comunidades no TikTok que se dedicando ao tema)",
explica a estudante de administração de 18 anos, Sofia.
O boom ocorreu em
2020, quando fanfics (narrativas criadas por fãs) de Harry Potter tomaram a
rede social de vídeos. "Surgiram vários edits do Draco Malfoy e as pessoas
começaram a se interessar mais e mais pelo universo de Harry Potter",
explicou Sofia.
"Outro ponto
errado: acham que não temos vida ou que ficamos o dia inteiro fugindo da
realidade. Mas nós temos vida social. Eu faço mestrado, amo minha vida. O
shifting faz com que eu entenda melhor minha realidade", afirma Beatriz.
• Quando o shifting pode ser um problema?
Para a psicóloga
Fernanda Calvetti Corrêa, "a maior contra-indicação é para quem acredita
que a realidade desejada é a que deve ser vivida e experimentada como se fosse
uma solução para problemas, ficando viciado em abraçar essa idealização e
tentando ao máximo fugir da realidade dela".
Ela finaliza:
"Pessoas sensíveis emocionalmente que desejam ir e não voltar não podem
ter acesso à prática. O tempo não para em nenhuma realidade. Isso traz diversas
questões mentais negativas".
* Nomes fictícios. As
entrevistadas preferiram não se identificar
Fonte: Entrevista com
Jonathan Haidt, para Paolo Mastrolilli, em
Repubblica/Agencia Estado
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