Baixada Fluminense e os políticos armados
na terra dos assassinatos
“Se houver covardia,
vai ser três vezes pior! Vou meter o [Batalhão de] Choque, o Bope e o Bac”,
vocifera um homem branco ao microfone sem fio, trajando um colete balístico
sobre sua blusa polo alva, enquanto caminha ao lado de um caveirão da Polícia
Militar do Rio de Janeiro (PMERJ).
“É aqui, ó, o caveirão
aqui! Não tem história irmão: se vier, vai tomar no…”, prossegue ele, ao passo
que o blindado roda lentamente pelo bairro Jardim Leal, em Duque de Caxias, o
principal município da Baixada Fluminense. O homem ao microfone é ninguém menos
que Marcelo Dino, o deputado estadual e então candidato a vice-prefeito da
cidade pelo União Brasil, em dupla com o político Celso de Alba. Eles não foram
eleitos.
Ao microfone o então
candidato a vice-prefeito de Duque de Caxias, Marcelo Dino (União Brasil)Ao
microfone o então candidato a vice-prefeito de Duque de Caxias, Marcelo Dino
(União Brasil)
A cena foi filmada por
moradores no dia 26 de setembro deste ano, a poucos dias das eleições
municipais, e faz parte da bravata do político contra traficantes que,
supostamente, estariam tentando impedi-lo de realizar sua campanha em
determinadas favelas de Duque de Caxias. Antes de estar envolvido com a
política, Marcelo já era policial militar, situação cada vez mais comum no
Brasil: nestas eleições, ao menos 6,6 mil candidatos são militares ou ligados a
forças de segurança. A reportagem procurou o candidato, que não respondeu.
• Violência é tradição na política da
Baixada
O uso de armas ou a
instrumentalização do aparato policial para construir sua imagem política é uma
tradição da política da Baixada. Segundo José Cláudio Alves, sociólogo e
professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), esse fazer
político ligado ao belicismo tem uma história que vem lá da década de 1930, com
o Tenório Cavalcanti, deputado federal da região que andava pelos bairros com
uma metralhadora à qual apelidou carinhosamente de Lurdinha. Soma-se a isso o
aumento dos conflitos por terras durante a década de 1950 e o recrudescimento
da repressão na ditadura militar e você tem um cenário no qual a arma se torna
um artefato basilar da política na Baixada, conforme explica o pesquisador.
<><> Por
que isso importa?
• Desde 1988, os municípios da Baixada
Flumimense registraram 89 assassinatos ou tentativas contra políticos e pessoas
que trabalham com política, como jornalistas, blogueiros e assessores.
“Ter armas e dominar
essa dinâmica violenta que a arma possibilita a imposição de vontade, de
resolução de conflitos, de participar de confrontos, isso tudo começa a
projetar, a ser como uma espécie de credencial para essas pessoas construírem
trajetórias políticas. Hoje essas figuras se lançam candidatos, se projetam com
essa plataforma do ‘bandido bom é bandido morto’, do ‘vamos armar a população’,
que estabelece violência para enfrentar a violência, como se isso fosse
possível, como se de fato resolvesse alguma coisa”, conclui.
Houve um total de 89
casos de assassinato ou atentado a políticos entre 1988 e o primeiro semestre
de 2024 na Baixada, segundo um levantamento que a Agência Pública fez a partir
de uma base de dados do pesquisador Huri Paz, do Afro-Cebap, e outra do Instituto
Fogo Cruzado. Algumas dessas histórias mostram como o próprio porte de arma dos
políticos da região gera maior insegurança na região e dita o tom das campanhas
eleitorais.
• A coronhada que custou caro
Às vezes, o político
morre por consequência da sua própria arma. Nelson Gomes de Souza, vulgo Nelson
Lilinho, tinha 52 anos quando, em 16 de dezembro de 2015, foi morto na rua
Tancredo Neves, no bairro Tomazinho, em São João do Meriti (RJ), após um conflito
iniciado por ele mesmo.
Segundo o processo
relativo ao crime, a situação começou por volta do meio-dia, quando ele,
ex-vereador do município pelo Partido Social Cristão (PSC), secretário e
policial militar reformado, parou seu Saveiro branco no meio de uma curva da
rua ao notar seu amigo que fora da Polícia Civil Francisco José Costa Machado
na frente de seu estabelecimento, o “Lava Jato do Chiquinho”.
O carro parado
atrapalhou o trânsito, obstruindo o caminho do ônibus dirigido pelo guarda
municipal José Carlos Luiz da França, que, segundo consta em seu
interrogatório, atuava como agente de trânsito havia três anos. Naquela manhã,
França dirigia o transporte da prefeitura, com crianças das escolas de todo o
município. O guarda então começou a buzinar e tirar fotos do Saveiro, o que
instigou uma discussão entre ele, que gritava de dentro do ônibus, e Lilinho,
que decidiu pôr o cabelo curto e o bigode grosso para fora do carro a fim de se
justificar melhor.
A porta do motorista
ficou aberta e, conforme os testemunhos coletados pelos policiais, enquanto os
dois debatiam, chegou um terceiro veículo: uma moto CG vermelha 2014 com dois
ocupantes, pega de surpresa pela obstrução da via. Ela colidiu contra a porta
do carro, fazendo com que caísse. O condutor da moto, Rodrigo de Siqueira
Moura, preocupava-se em levantar a motocicleta e checar o estado do veículo
enquanto Alexandre Magno de Aquino Sampaio, o garupa, armava uma discussão com
Lilinho.
Foi então que o
motorista do Saveiro irritou-se e puxou uma pistola calibre 40. Os motoqueiros
saíram. O político permaneceu junto ao dono do lava-jato e o guarda municipal
discutindo o que havia acabado de acontecer. Machado, preocupado, aconselhou-o
a ir embora, pois acreditava que os dois voltariam armados para vingar-se da
humilhação. Dito e feito. Um Kadett azul-marinho surgiu pela rua, dele saiu o
garupa da moto, que teria disparado contra Lilinho, ferido fatalmente com dois
tiros no rosto e um nas costas. As
crianças que estavam no ônibus se assustaram ao ouvir o estampido da
pistola.
A família do condutor
da moto ligou para a Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense e explicou
que o rapaz estava disposto a se entregar desde que descobriu que estaria
envolvido com o assassinato do ex-vereador. Todavia, tenha colaborado com a
Justiça e explicado não ter conhecimento do que seu amigo pretendia fazer, foi
condenado e preso, enquanto o garupa permaneceu foragido até 2017, quando foi
preso em Minas Gerais em decorrência da divulgação de seu rosto no portal de
procurados.
• A arma que sumiu
Outras vezes, a posse
de arma não impede alguém de ser executado por opositores. Assessor parlamentar
na prefeitura de Queimados, também na Baixada Fluminense, Clayton Damaceno
Pereira (sem partido) passara parte do ano de 2023 iniciando sua pré-campanha
para vereador do município, mirando a eleição de 2024. Ao seu lado nas
investidas por comunidades e bairros da cidade, Paula Ribeiro Menezes Costa
atuava como sua coordenadora de campanha.
Segundo todas as
testemunhas próximas a ele ouvidas pela polícia, Clayton era muito bem quisto
pelos bairros em que passava. Homem alto, de porte atlético, o político atuava
também como empresário do ramo de roupas na Uruguaiana, o principal camelódromo
do centro da cidade do Rio de Janeiro. Contudo, a extensão de suas boas
relações e a facilidade de trânsito mesmo pelas regiões mais tensas da cidade
levantavam suspeitas entre a população local.
No inquérito da
Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense, consta o relato de Eric,
sobrinho de Clayton, que explica que a região do bairro Inconfidência tinha a
fama de ser influenciada por uma milícia e que milicianos buzinavam para seu
tio quando o viram caminhando pela rua. Todavia, embora as suspeitas fossem
fortes e vivessem na boca do povo, o suposto envolvimento nunca fora
oficialmente reconhecido pela Justiça ou por ele mesmo, que, em vida, sempre
negara.
Sua trajetória
findou-se no dia 28 de outubro de 2023, quando, ao passar parte da noite
conversando com sua coordenadora de campanha, amigos e familiares numa loja de
açaí no bairro Inconfidência, onde morava com sua esposa e filha de 10 anos de
idade, foi executado por dois atiradores que pularam de motocicletas. Nos
laudos cadavéricos do político e da sua coordenadora constam, respectivamente,
como causa da morte: “ferimentos transfixantes de tórax e abdome com lesões em
pulmão esquerdo, coração, fígado e baço” e “ferimento penetrante de crânio com
lesão encefálica”.
Cruzando relatos de
testemunhas com imagens de câmeras, a polícia concluiu que a autoria do crime
seria de três rapazes com passagem por envolvimento com tráfico: Cleiton
“Binho” Alves Francisco, Anderson “Parazinho” Correia Ramos e Lucas
“Monstrinho” de Souza Ignacio. A motivação, segundo a Justiça, seria que eles
teriam agido em nome da facção Comando Vermelho em retaliação ao suposto
envolvimento de Clayton com milícias.
Assim que os
motoqueiros e os executores saíram em disparada, um sobrinho de Clayton, que
estava na casa de sua tia ali perto, voltou correndo para a loja de açaí. Ele
encontrou o tio perto de morrer, sangrando no chão. Sabendo que ele costumava
carregar consigo uma pistola em coldre, vasculhou a cintura dele e retirou de
lá a arma, levando-a para casa de seu agora falecido tio. Essa situação foi
toda relatada aos policiais que tomaram o depoimento.
Ao fim, a arma do
político assassinado, que não chegou a ser usada para defesa durante o ataque
devido ao fator surpresa, sumiu. “Indagado acerca do destino da arma, o
depoente disse que a levou para a casa de seu tio e que, chegando lá, alguém a
tirou de suas mãos, mas que não se recorda quem foi.”
Atirar é como cantar
Há ainda vezes em que
a arma é um objeto tão comum para os políticos que eles já estão preparados
para trocar chumbo para tentar salvar a sua vida. André Luís de Oliveira
Cristino, vulgo Andrezinho do Japeri, estava na última semana de sua primeira
campanha pelo Partido Republicano Progressista (PRP) para prefeito de sua terra
natal na Baixada Fluminense, quando sofreu uma emboscada quase fatal.
À época com 39 anos de
idade, Andrezinho tinha vasta experiência na PMERJ: ele já tinha vivido um
cadinho de tudo, tendo sido atirador de ponta do Exército pelos cinco anos em
que serviu; policial do 14º Batalhão, por onde trabalhou no Complexo Prisional
de Gericinó; membro do Batalhão de Operações Especiais (Bope); dono de empresa
de rastreamento de veículos e pessoas sequestradas; e segurança do político e
empresário Benedito Amorim, que fora prefeito de Itaguaí, cidade contígua a
Japeri, entre 1993 e 1996.
Embora legalmente um
policial não possa trabalhar como segurança privado em seu horário de folga,
Andrezinho iniciou seu aprendizado sobre política ao acompanhar a campanha de
Benedito: “Acho que quase 100% [naquela época] fazia segurança. O custo de vida
de um policial militar é alto. Não pode morar em qualquer lugar, entendeu? Ele
tem que andar de carro. Hoje em dia, tá mais alto, [pois] o policial hoje
militar tem que andar de carro blindado”, justifica.
Seu desempenho como
segurança chamava atenção de Benedito, pois se diferenciava dos outros graças
ao treinamento que recebeu do Exército e do Bope. Segundo ele mesmo descreve, o
político ficava impressionado com a frieza e o profissionalismo dele, sempre
com a arma em mãos, observando qualquer variante no meio urbano, preparado para
um ataque-surpresa em potencial. Sua vida, nessa época, envolvia pouco sono e
muita tensão.
“Tiro é dom. É igual
cantar. O cara tem a voz boa, ele só precisa ouvir para aprender as notas, né?
Ele já canta [naturalmente]”, explica.
O dito dom facilitou
sua vida e fez com que sua progressão de carreira dentro da polícia fosse
simples e mais ágil do que para outros colegas que almejavam alcançar o panteão
de soldados do Bope. Isso, por sua vez, ajudava-o a conseguir bicos externos, afinal,
a fama de policial desse batalhão sobressai no cenário da segurança privada e
até mesmo no mercado de palestras.
E foi também o tal
dom, em sua avaliação, o que o salvou na madrugada de 23 de setembro de 2016.
Ele havia recebido uma carta de intimidação para abandonar a campanha política
poucos dias antes, quando, naquela noite, acompanhado de seu motorista, na casa
dos 40 anos de idade, e do profissional de colagem de adesivos de campanha,
cuja idade, conforme lembra, não passava dos 20 anos, Andrezinho pretendia
parar numa lanchonete para pagar a comida deí seus dois funcionários e
comemorar o fim do longo expediente daquela sexta-feira. Estavam os três dentro
da Pajero blindada, com o automóvel parado na rua Santo Antônio, próximo do
largo da Chacrinha, a postos para dar ré e seguir para o estabelecimento que
visavam quando um Honda City parou à frente e dele saíram quatro rapazes que
passaram a atirar contra.
Andrezinho sempre
carregava consigo uma espingarda, escondida no interior do carro. Ele abriu o
vidro do passageiro e por uma pequena fresta passou o cano da arma e desferiu
dois tiros, percebendo que talvez fosse melhor trocar para uma arma mais
apropriada para média-longa distância. Guardou a arma de calibre alto e pegou
uma pistola, tornando a atirar pelo mesmo feixe de janela. A troca de tiros
durou poucos minutos. O silêncio no carro indicava o nervosismo de seus
companheiros, tensos com os ribombos de pólvora. O segurança notou que os
rivais haviam recuado suas armas e estavam imóveis. Aproveitou a folga e
ordenou que o motorista atravessasse a barreira rumo ao posto da Polícia
Militar.
Quando retornaram
acompanhados das autoridades, encontraram apenas um boné azul perfurado e duas
poças de sangue no chão, indicando que, de fato, ele havia ferido dois dos
quatro atiradores. “A gente começou a investigação [informal] no outro dia;
[dois homens] tinham dado entrada num hospital. Tinha sido dois baleados. Eu
fiquei sabendo que vieram a óbito, mas assim, não sei onde foi o enterro, não
sei de nada.”
Desde então, não
voltou a concorrer a cargos eletivos, mas segue na pretensão de se candidatar a
prefeito de Japeri na próxima eleição municipal, em 2028.
Fonte: Por Matheus
Moura e Leonardo Coelh, da Agencia Pública
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