quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Em Gaza, um ano de guerra gerou traumas e ruínas

"Em 7 de outubro, acordamos com o som de foguetes. O som era terrível, a situação era terrível, aí começamos a assistir ao noticiário e ficamos sabendo o que havia acontecido", relata Warda Younis por mensagem de texto, do norte de Gaza. "Daquele dia em diante, o medo mais profundo começou e nunca mais foi embora."

Desde os ataques do Hamas ao sul de Israel em 2023, nada mais foi o mesmo para os residentes da Faixa de Gaza. Até então, Israel e Egito controlavam rigidamente as fronteiras do enclave. Porém na madrugada de 7 de outubro, militantes liderados pelo Hamas lançaram mísseis e romperam as cercas da fronteira, invadindo comunidades e bases militares no sul de Israel.

Cerca de 1.200 morreram no ataque, e os radicais levaram 250 reféns para Gaza. Os militares israelenses retaliaram no mesmo dia, com pesados ataques aéreos e de artilharia em todo o enclave palestino.

"Perdi minha melhor amiga no terceiro dia da guerra. A casa dela foi completamente bombardeada, e eu me lembro que fiquei tão chocada, mentalmente esgotada", conta Younis, que morava no sétimo andar de um prédio de apartamentos do bairro de Sheikh Radwan, no norte da Cidade de Gaza.

Gaza está familiarizada com o conflito. Israel e o Hamas já travaram quatro guerras desde 2007, quando o grupo tomou o poder da Autoridade Palestina. Ainda assim, muitos não esperavam que a atual durasse tanto tempo e fosse tão devastadora.

De acordo com o Ministério da Saúde de Gaza, que não faz distinção entre civis e combatentes, mais de 41,4 mil foram mortos no enclave no último ano. Outros 96 mil ficaram feridos, e pelo menos 10 mil estão desaparecidos.

<><> "Comemos folhas de árvores e grama"

Os suprimentos de Gaza se esgotaram rapidamente nas primeiras semanas da guerra, quando Israel impôs cerco total. Durante meses, as Nações Unidas chamaram a atenção para o alerta de agências de ajuda humanitária sobre a fome iminente no norte de Gaza, o que foi desconsiderado por Israel.

Younis que não conseguiu encontrar farinha nem pão durante esse período. "Chegamos ao ponto de comer folhas de árvores e grama. Nunca na vida imaginamos que fosse possível comer isso."

Quando os primeiros comboios de ajuda chegaram ao norte, ela testemunhou disputas por comida e itens básicos que terminaram em violência e morte. Durante um tempo, organizações voltaram a realizar lançamentos aéreos, pois a pressão internacional não bastou para convencer Israel a abrir mais passagens para a entrega de ajuda.

"Eu costumava ir ao local onde a ajuda era lançada de balões todos os dias", relata Younis. "Eu corria para pegar alguma coisa, e no fim não conseguia nada, porque tinha bandidos controlando tudo." A disponibilidade de alimentos melhorou desde então, mas para ela o medo e a exposição diária à morte permanecem.

<><> Trauma profundo

Nos últimos 12 meses, Younis e seus três filhos adolescentes foram deslocados nove vezes. Como muitos outros em Gaza, ela perdeu a noção do tempo enquanto buscava refúgio constantemente.

Em meados de outubro de 2023, as Forças Armadas israelenses ordenaram que os habitantes do norte de Gaza se deslocassem para o sul. Mas Younis decidiu permanecer, apesar de ter membros da família para acomodá-la e a seus filhos na cidade de Khan Younis, a cerca de oito quilômetros da fronteira de Gaza com o Egito.

O norte de Gaza agora está quase totalmente isolado do corredor Netzarim, uma estrada com postos de controle militares tripulados por Israel. A maioria dos 2,2 milhões de habitantes do enclave está agora desalojada, amontoada no sul de Gaza, e muitos dependem de assistência e de instituições de caridade, segundo as agências competentes.

Amjad Shawa sempre trabalhou no setor humanitário como chefe do grupo PNGO, que representa ONGs palestinas. Depois de ser evacuado, ele montou um novo escritório em Deir al-Balah, na região central de Gaza, como um centro para as agências de ajuda se reunirem, terem acesso à internet e um teto sob o qual trabalhar. Como muitos outros palestinos em Gaza, ele não queria deixar sua casa e seu escritório na Cidade de Gaza, quando chegaram as ordens de evacuação do Exército israelense, em 13 de outubro.

"Hesitei em sair, mas fomos sob a pressão da minha família. Eu disse a eles que seria apenas por algumas horas e que voltaríamos. Não levei nada de casa. Essas poucas horas, esses poucos dias se tornaram um ano agora."

O assistente social estima que haja cerca de 1 milhão estejam alojados em Deir al-Balah, muitos vivendo em tendas ou abrigos improvisados com lonas e plásticos. Outros encontraram apartamentos ou estão hospedados na casa de parentes.

"Posso ver isso nos rostos deles. A maioria está profundamente traumatizada. Elas perderam tudo. Muita gente perdeu entes queridos. A maioria perdeu sua renda, suas casas."

Shawa crê que muitos querem retornar para o norte de Gaza, mesmo que suas casas tenham desaparecido, mas isso depende de um acordo de cessar-fogo entre Israel e o Hamas.

<><> Trabalho de assistência ajuda a "criar alguma esperança"

Ser um funcionário humanitário em Gaza é arriscado, afirma Shawa. Muitos morreram tentando ajudar outros necessitados ou perderam entes queridos: "Não podemos 'lidar' com isso. E na ausência de qualquer horizonte, às vezes é preciso criar alguma esperança para quem está ao redor."

Para ele, a Gaza onde nasceu e cresceu não existe mais. Mais de 60% das casas do território, já danificadas por guerras anteriores, sofreram novos danos no conflito atual. Escolas, hospitais e empresas também estão em ruínas. As Nações Unidas estimam que os ataques aéreos israelenses e os combates terrestres produziram 40 milhões de toneladas de entulho no território.

O assistente social destaca que muitos perderam a fé na ajuda de outros países e de organizações globais: "O que estamos testemunhando também se deve ao fracasso da comunidade internacional em acabar com essa guerra ou, pelo menos, em proteger os civis."

<><> Famílias marcadas pela perda

Rita Abu Sido e sua família não tinham essa proteção. Os primeiros meses da guerra continuam sendo um borrão para a jovem de 27 anos. Agora, ela está no Egito com sua irmã, Farah, recebem tratamento médico para ferimentos complexos sofridos em Gaza. Elas são as únicas sobreviventes do núcleo de sua família.

"O bombardeio aconteceu à meia-noite de 31 de outubro. Eu estava acordada e disse à minha irmã Farah que poderíamos morrer. Ela se lembra de tudo. Eu só sonho com isso", conta Rita por telefone, do Cairo.

A mãe de Abu Sido, suas duas irmãs mais novas, de 16 e 15 anos, e seu irmão mais novo, de 13, morreram naquela noite em Rimal, no centro da Cidade de Gaza. Ela e a irmã, uma comissária de bordo estagiária que estava visitando Gaza quando a guerra começou, foram levadas para o principal hospital de cidade, o Shifa, sem identificação.

Abu Sido sofreu convulsão pulmonar e queimaduras de terceiro grau, sua irmã teve a pélvis quebrada e ferimentos na coluna vertebral. Com a aproximação dos combates e devido à gravidade dos ferimentos, ambas foram transferidas para o Hospital Europeu em Khan Younis.

"Fiquei mal psicologicamente. depois que soube da perda de toda a minha família. Levei tempo para entender a localidade e a situação. Fiquei agressiva e nervosa."

Com a ajuda de amigos da família, em fevereiro as irmãs conseguiram sair de Gaza pela passagem de Rafah, para tratamento médico e reabilitação no Egito. Abu Sido está recuperando a voz, que perdeu por algum tempo, e sua irmã está fazendo fisioterapia. Mas ela crê que o trauma de perder a família a perseguirá pelo resto da vida.

Embora estejam seguras no Egito, sua situação é precária. A maioria dos habitantes de Gaza que conseguiu escapar para o país vizinho não tem status legal e depende do apoio de parentes ou de instituições de caridade.

Ainda não se sabe se Abu Sido poderá retornar a Gaza: é uma decisão política sobre a qual ela não tem controle. "Voltar a Gaza parece ser um desafio. Levará tempo. A próxima geração, a nossa geração, precisa ter a vontade de reconstruir."

 

¨      Como o 7 de Outubro impactou o Oriente Médio

Após o ataque terrorista do Hamas, o conflito desencadeado em Gaza gerou série de disputas geopolíticas entre países da região, principalmente na Arábia Saudita, Cisjordânia ocupada, Líbano, Síria, Jordânia e Egito.

<><> Arábia Saudita

Como a Arábia Saudita congelou suas negociações para normalizar as relações com Israel após os ataques de 7 de Outubro, o possível acordo se transformou em um trunfo para as negociações de paz entre Israel e Hamas.

Ao mesmo tempo, a guerra em Gaza reacendeu a solidariedade pró-palestinos, segundo Sebastian Sons, pesquisador sênior do think tank alemão Carpo. "Política e economicamente, entretanto, o conflito entre Israel e Hamas é mais visto como uma ameaça direta à ambiciosa transformação socioeconômica saudita", acrescenta Sons.

"Por sua vez, neste último ano a política saudita tem se concentrado em um ato de equilíbrio diplomático", diz o especialista.

<><> Líbano

Logo após os ataques terroristas do Hamas contra Israel, o influente braço armado do Hezbollah no Líbano – classificado como grupo terrorista pela União Europeia – começou a atacar o norte de Israel.

"No começo, o Hezbollah foi criticado por decidir se envolver em um conflito com Israel e arrastar o Líbano para ele", diz Kelly Petillo, pesquisadora de Oriente Médio do think tank Conselho Europeu de Relações Exteriores. "E agora, o Hezbollah também tem desfrutado de um apoio maior da população libanesa desde o 7 de Outubro".

Na opinião da especialista, muitos libaneses estão frustrados com a conduta de Israel em Gaza e a falta de resultados da diplomacia internacional. "Eles começaram a ver o Hezbollah como o único garantidor da solidariedade com os palestinos", diz Petillo.

No entanto, depois de quase um ano do que os analistas chamam de "luta contida" – quando as infraestruturas militares eram o alvo principal – a situação se agravou em setembro, com os assassinatos de vários comandantes do Hezbollah e ataques terrestres no sul do Líbano, no início de outubro.

<><>  Jordânia

A vizinha Jordânia, que assinou um tratado de paz com Israel em 1994, tem andado em uma corda bamba política neste último ano. "Desde o 7 de Outubro, a Jordânia tem tentado equilibrar, de um lado, o forte apoio interno à causa palestina e, de outro, suas relações com Israel", ressalta Petillo.

O rei Abdullah 2° da Jordânia e sua esposa, a rainha Rania, que é de origem palestina, têm repetidamente ressaltado que não estão dispostos a receber mais refugiados palestinos.

"Isso colocaria em risco a causa palestina em geral e é uma violação direta do tratado de paz", explica Petillo.

"No entanto, com a abertura de novas frentes potenciais não apenas no Líbano, mas também na Cisjordânia, a Jordânia se vê diante de seu cenário de pesadelo", sublinha o analista. "Essa situação reacende os temores iniciais que foram sentidos logo após o dia 7 de Outubro, de uma repercussão e subsequente movimento de palestinos para a Jordânia."

<><> Cisjordânia

"A situação na Cisjordânia já era muito tensa antes de 7 de Outubro", diz Peter Lintl, do departamento de África e Oriente Médio do Instituto Alemão para Assuntos Internacionais e de Segurança (SWP, na sigla em alemão).

De acordo com o especialista, a Autoridade Palestina está há anos enfraquecida e colonos judeus têm atacado os palestinos. "O atual governo israelense de ultradireita exacerbou as tensões ao declarar em seu programa de coalizão que a Cisjordânia ocupada, ou como eles a chamam, Judeia e Samaria, só pode pertencer ao povo judeu", afirma. "Tudo isso se intensificou desde 7 de Outubro", acrescenta.

Os colonos extremistas judeus têm agredido brutalmente civis palestinos, enquanto as tensões entre militares israelenses e facções militantes palestinas na Cisjordânia ocupada atingiram um novo auge em setembro.

"A Cisjordânia é um barril de pólvora que pode explodir a qualquer momento", alerta Lintl. "Em tempos normais, você diria que já existe uma situação intolerável, com um número de mortos incrivelmente alto, só que isso está sendo ofuscado pela guerra em Gaza e pelo 7 de Outubro", ressalta.

<><> Síria

"A guerra que eclodiu em 7 de Outubro desviou ainda mais a atenção da imprensa da Síria e do conflito que já dura mais de 13 anos", afirma Lorenzo Trombetta, analista de Oriente Médio e consultor de agências das Nações Unidas baseado em Beirute.

A guerra civil da Síria é cada vez mais dominada por potências estrangeiras, como Rússia, Irã, Turquia, Israel e os EUA, frisa Trombetta. "Todos os atores dizem que estão lutando contra o terrorismo e afirmam almejar estabilidade e segurança", explicou.

Enquanto isso, o presidente sírio, Bashar al-Assad, que vinha sendo amplamente isolado por sua repressão à população síria, tem sido recebido de volta por árabes e europeus. "Internamente, a permanência de Assad no poder não parece mais estar em questão", diz Trombetta.

Neste ano que passou, Assad permaneceu em silêncio sobre os eventos e as consequências do 7 de Outubro, segundo o especialista. "Sua abordagem é de diplomacia silenciosa, longe dos holofotes da imprensa, visando atingir objetivos domésticos de longo prazo."

<><> Egito

De todos os países da região, apenas o Egito usou a crise no Oriente Médio para fortalecer sua importância geopolítica na região, segundo Timothy E. Kaldas, diretor-adjunto do Instituto Tahrir para Políticas do Oriente Médio, em Washington.

"O presidente egípcio, Abdel Fattah el-Sissi, tem cooperado com Israel no transporte de mercadorias para Gaza e ajudado a manter o cerco", explica Kaldas. Além disso, o papel central do Egito nas negociações de cessar-fogo restabeleceu a importância do país no Oriente Médio e no mundo, de acordo com o especialista. "Em troca, Cairo ganhou muito apoio adicional de Washington", disse Kaldas.

A Casa Branca concedeu ao Egito 1,3 bilhão de dólares (R$ 7 bilhões) em assistência militar em 2024. "É a primeira vez que o governo Biden emitiu o valor total", diz Kaldas, acrescentando que no passado Washington retinha uma parte que estava condicionada aos direitos humanos.

Antes de 7 de Outubro, os egípcios estavam muito focados na economia do Egito. Mas os horrendos crimes de guerra cometidos por Israel contra civis palestinos que vivem em Gaza têm dividido a atenção deles", observa Kaldas.

Ele acredita que a opinião pública pode mudar ainda mais, com os egípcios vendo cada vez mais seu governo como parte do problema. "No futuro, será um ato de equilíbrio delicado para a liderança do Egito, pois eles tentarão manter o apoio do Ocidente também", conclui.

 

Fonte: DW Brasil

 

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