Em Gaza, um ano de guerra gerou traumas e
ruínas
"Em 7 de outubro,
acordamos com o som de foguetes. O som era terrível, a situação era terrível,
aí começamos a assistir ao noticiário e ficamos sabendo o que havia
acontecido", relata Warda Younis por mensagem de texto, do norte de
Gaza. "Daquele dia em diante, o medo mais profundo começou e nunca
mais foi embora."
Desde os ataques do Hamas ao sul de Israel em 2023, nada mais foi o mesmo para os residentes da Faixa de Gaza. Até
então, Israel e Egito controlavam rigidamente as fronteiras do enclave.
Porém na madrugada de 7 de outubro, militantes liderados pelo Hamas lançaram mísseis e romperam as cercas da fronteira,
invadindo comunidades e bases militares no sul de Israel.
Cerca de 1.200
morreram no ataque, e os radicais levaram 250 reféns para Gaza. Os militares
israelenses retaliaram no mesmo dia, com pesados ataques aéreos e de artilharia
em todo o enclave palestino.
"Perdi minha
melhor amiga no terceiro dia da guerra. A casa dela foi completamente
bombardeada, e eu me lembro que fiquei tão chocada, mentalmente
esgotada", conta Younis, que morava no sétimo andar de um prédio de
apartamentos do bairro de Sheikh Radwan, no norte da Cidade de Gaza.
Gaza está
familiarizada com o conflito. Israel e o Hamas já travaram quatro guerras desde
2007, quando o grupo tomou o poder da Autoridade Palestina. Ainda assim, muitos
não esperavam que a atual durasse tanto tempo e fosse tão
devastadora.
De acordo com o
Ministério da Saúde de Gaza, que não faz distinção entre civis e combatentes,
mais de 41,4 mil foram mortos no enclave no último ano. Outros 96 mil ficaram
feridos, e pelo menos 10 mil estão desaparecidos.
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"Comemos folhas de árvores e grama"
Os suprimentos de Gaza
se esgotaram rapidamente nas primeiras semanas da guerra, quando Israel impôs
cerco total. Durante meses, as Nações Unidas chamaram
a atenção para o alerta de agências de ajuda humanitária sobre a fome iminente no norte de Gaza, o que foi desconsiderado por Israel.
Younis que não
conseguiu encontrar farinha nem pão durante esse período. "Chegamos ao
ponto de comer folhas de árvores e grama. Nunca na vida imaginamos que fosse
possível comer isso."
Quando os primeiros
comboios de ajuda chegaram ao norte, ela testemunhou disputas por comida e
itens básicos que terminaram em violência e morte. Durante
um tempo, organizações voltaram a realizar lançamentos aéreos, pois a pressão
internacional não bastou para convencer Israel a abrir mais passagens para
a entrega de ajuda.
"Eu costumava ir
ao local onde a ajuda era lançada de balões todos os dias", relata Younis.
"Eu corria para pegar alguma coisa, e no fim não conseguia nada,
porque tinha bandidos controlando tudo." A disponibilidade de alimentos
melhorou desde então, mas para ela o medo e a exposição diária à morte
permanecem.
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Trauma profundo
Nos últimos 12 meses,
Younis e seus três filhos adolescentes foram deslocados nove vezes. Como muitos
outros em Gaza, ela perdeu a noção do tempo enquanto buscava refúgio
constantemente.
Em meados de outubro
de 2023, as Forças Armadas israelenses ordenaram que os habitantes do
norte de Gaza se deslocassem para o sul. Mas Younis decidiu permanecer,
apesar de ter membros da família para acomodá-la e a seus filhos na cidade de
Khan Younis, a cerca de oito quilômetros da fronteira de Gaza com o Egito.
O norte de Gaza agora
está quase totalmente isolado do corredor Netzarim, uma estrada com postos de
controle militares tripulados por Israel. A maioria dos 2,2 milhões de
habitantes do enclave está agora desalojada, amontoada no sul de Gaza, e muitos
dependem de assistência e de instituições de caridade, segundo as agências
competentes.
Amjad Shawa sempre
trabalhou no setor humanitário como chefe do grupo PNGO, que representa
ONGs palestinas. Depois de ser evacuado, ele montou um novo escritório em Deir
al-Balah, na região central de Gaza, como um centro para as agências de ajuda
se reunirem, terem acesso à internet e um teto sob o qual trabalhar.
Como muitos outros palestinos em Gaza, ele não queria deixar sua casa e seu
escritório na Cidade de Gaza, quando chegaram as ordens de evacuação do
Exército israelense, em 13 de outubro.
"Hesitei em sair,
mas fomos sob a pressão da minha família. Eu disse a eles que seria apenas
por algumas horas e que voltaríamos. Não levei nada de casa. Essas poucas
horas, esses poucos dias se tornaram um ano agora."
O assistente social
estima que haja cerca de 1 milhão estejam alojados em Deir al-Balah, muitos
vivendo em tendas ou abrigos improvisados com lonas e plásticos. Outros
encontraram apartamentos ou estão hospedados na casa de parentes.
"Posso ver isso
nos rostos deles. A maioria está profundamente traumatizada. Elas perderam
tudo. Muita gente perdeu entes queridos. A maioria perdeu sua renda,
suas casas."
Shawa crê que
muitos querem retornar para o norte de Gaza, mesmo que suas casas tenham
desaparecido, mas isso depende de um acordo de cessar-fogo entre Israel e o
Hamas.
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Trabalho de assistência ajuda a "criar alguma esperança"
Ser um funcionário
humanitário em Gaza é arriscado, afirma Shawa. Muitos morreram tentando ajudar
outros necessitados ou perderam entes queridos: "Não podemos 'lidar'
com isso. E na ausência de qualquer horizonte, às vezes é preciso criar alguma
esperança para quem está ao redor."
Para ele, a Gaza onde
nasceu e cresceu não existe mais. Mais de 60% das casas do território, já
danificadas por guerras anteriores, sofreram novos danos no conflito atual.
Escolas, hospitais e empresas também estão em ruínas. As Nações Unidas estimam
que os ataques aéreos israelenses e os combates terrestres produziram 40
milhões de toneladas de entulho no território.
O assistente social
destaca que muitos perderam a fé na ajuda de outros países e de organizações
globais: "O que estamos testemunhando também se deve ao fracasso da
comunidade internacional em acabar com essa guerra ou, pelo menos, em proteger os
civis."
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Famílias marcadas pela perda
Rita Abu Sido e sua
família não tinham essa proteção. Os primeiros meses da guerra continuam sendo
um borrão para a jovem de 27 anos. Agora, ela está no Egito com sua irmã,
Farah, recebem tratamento médico para ferimentos complexos sofridos em Gaza.
Elas são as únicas sobreviventes do núcleo de sua família.
"O bombardeio
aconteceu à meia-noite de 31 de outubro. Eu estava acordada e disse à minha
irmã Farah que poderíamos morrer. Ela se lembra de tudo. Eu só sonho com
isso", conta Rita por telefone, do Cairo.
A mãe de Abu Sido,
suas duas irmãs mais novas, de 16 e 15 anos, e seu irmão mais novo, de 13,
morreram naquela noite em Rimal, no centro da Cidade de Gaza. Ela e a
irmã, uma comissária de bordo estagiária que estava visitando Gaza quando a
guerra começou, foram levadas para o principal hospital de cidade, o Shifa, sem
identificação.
Abu Sido sofreu
convulsão pulmonar e queimaduras de terceiro grau, sua irmã teve a pélvis
quebrada e ferimentos na coluna vertebral. Com a aproximação dos combates e
devido à gravidade dos ferimentos, ambas foram transferidas para o Hospital
Europeu em Khan Younis.
"Fiquei mal
psicologicamente. depois que soube da perda de toda a minha família. Levei
tempo para entender a localidade e a situação. Fiquei agressiva e
nervosa."
Com a ajuda de amigos
da família, em fevereiro as irmãs conseguiram sair de Gaza pela passagem de
Rafah, para tratamento médico e reabilitação no Egito. Abu Sido está
recuperando a voz, que perdeu por algum tempo, e sua irmã está fazendo
fisioterapia. Mas ela crê que o trauma de perder a família a perseguirá pelo
resto da vida.
Embora estejam seguras
no Egito, sua situação é precária. A maioria dos habitantes de Gaza que
conseguiu escapar para o país vizinho não tem status legal e depende do apoio
de parentes ou de instituições de caridade.
Ainda não se sabe se
Abu Sido poderá retornar a Gaza: é uma decisão política sobre a qual ela não
tem controle. "Voltar a Gaza parece ser um desafio. Levará tempo. A
próxima geração, a nossa geração, precisa ter a vontade de reconstruir."
¨ Como o 7 de Outubro impactou o Oriente Médio
Após o ataque
terrorista do Hamas, o conflito desencadeado em Gaza gerou série de disputas
geopolíticas entre países da região, principalmente na Arábia Saudita,
Cisjordânia ocupada, Líbano, Síria, Jordânia e Egito.
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Arábia Saudita
Como a Arábia Saudita
congelou suas negociações para normalizar as relações com Israel após os
ataques de 7 de Outubro, o possível acordo se
transformou em um trunfo para as negociações de paz entre Israel e Hamas.
Ao mesmo tempo, a
guerra em Gaza reacendeu a solidariedade
pró-palestinos, segundo Sebastian Sons, pesquisador sênior do think
tank alemão Carpo. "Política e economicamente, entretanto, o
conflito entre Israel e Hamas é mais visto como uma ameaça direta à ambiciosa
transformação socioeconômica saudita", acrescenta Sons.
"Por sua vez,
neste último ano a política saudita tem se concentrado em um ato de equilíbrio
diplomático", diz o especialista.
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Líbano
Logo após os ataques terroristas do Hamas contra Israel,
o influente braço armado do Hezbollah no Líbano – classificado como grupo terrorista pela União
Europeia – começou a atacar o norte de Israel.
"No começo, o
Hezbollah foi criticado por decidir se envolver em um conflito com Israel e
arrastar o Líbano para ele", diz Kelly Petillo, pesquisadora de Oriente Médio do think
tank Conselho Europeu de Relações Exteriores. "E agora, o
Hezbollah também tem desfrutado de um apoio maior da população libanesa desde o
7 de Outubro".
Na opinião da
especialista, muitos libaneses estão frustrados com a conduta de Israel em Gaza
e a falta de resultados da diplomacia internacional. "Eles começaram a ver
o Hezbollah como o único garantidor da solidariedade com os palestinos",
diz Petillo.
No entanto, depois de
quase um ano do que os analistas chamam de "luta
contida" – quando as infraestruturas militares eram o alvo
principal – a situação se agravou em setembro, com os assassinatos de
vários comandantes do Hezbollah e ataques terrestres no sul do Líbano, no
início de outubro.
<><> Jordânia
A vizinha Jordânia,
que assinou um tratado de paz com Israel em 1994, tem andado em uma corda bamba
política neste último ano. "Desde o 7 de Outubro, a Jordânia tem
tentado equilibrar, de um lado, o forte apoio interno à causa palestina e,
de outro, suas relações com Israel", ressalta Petillo.
O rei Abdullah
2° da Jordânia e sua esposa, a rainha Rania, que é de origem palestina,
têm repetidamente ressaltado que não estão dispostos a receber mais refugiados
palestinos.
"Isso colocaria
em risco a causa palestina em geral e é uma violação direta do tratado de
paz", explica Petillo.
"No entanto, com
a abertura de novas frentes potenciais não apenas no Líbano, mas também na
Cisjordânia, a Jordânia se vê diante de seu cenário de pesadelo",
sublinha o analista. "Essa situação reacende os temores iniciais que
foram sentidos logo após o dia 7 de Outubro, de uma repercussão e subsequente
movimento de palestinos para a Jordânia."
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Cisjordânia
"A situação na
Cisjordânia já era muito tensa antes de 7 de Outubro", diz Peter Lintl, do
departamento de África e Oriente Médio do Instituto Alemão para Assuntos
Internacionais e de Segurança (SWP, na sigla em alemão).
De acordo com o
especialista, a Autoridade Palestina está há anos enfraquecida e colonos judeus
têm atacado os palestinos. "O atual governo israelense de ultradireita
exacerbou as tensões ao declarar em seu programa de coalizão que a Cisjordânia
ocupada, ou como eles a chamam, Judeia e Samaria, só pode pertencer ao povo
judeu", afirma. "Tudo isso se intensificou desde 7 de Outubro",
acrescenta.
Os colonos extremistas
judeus têm agredido brutalmente civis palestinos, enquanto as tensões entre
militares israelenses e facções militantes palestinas na Cisjordânia ocupada
atingiram um novo auge em setembro.
"A Cisjordânia é
um barril de pólvora que pode explodir a qualquer momento", alerta Lintl.
"Em tempos normais, você diria que já existe uma situação intolerável, com
um número de mortos incrivelmente alto, só que isso está sendo ofuscado pela
guerra em Gaza e pelo 7 de Outubro", ressalta.
<><> Síria
"A guerra que
eclodiu em 7 de Outubro desviou ainda mais a atenção da imprensa da Síria e do conflito que já dura mais de 13 anos", afirma
Lorenzo Trombetta, analista de Oriente Médio e consultor de agências das
Nações Unidas baseado em Beirute.
A guerra civil da
Síria é cada vez mais dominada por potências estrangeiras, como Rússia, Irã,
Turquia, Israel e os EUA, frisa Trombetta. "Todos os atores dizem que
estão lutando contra o terrorismo e afirmam almejar estabilidade e segurança",
explicou.
Enquanto isso, o
presidente sírio, Bashar al-Assad, que
vinha sendo amplamente isolado por sua repressão à população síria, tem
sido recebido de volta por árabes e europeus. "Internamente, a
permanência de Assad no poder não parece mais estar em questão", diz
Trombetta.
Neste ano que
passou, Assad permaneceu em silêncio sobre os eventos e as consequências
do 7 de Outubro, segundo o especialista. "Sua abordagem é de
diplomacia silenciosa, longe dos holofotes da imprensa, visando atingir
objetivos domésticos de longo prazo."
<><> Egito
De todos os países da
região, apenas o Egito usou a crise no Oriente Médio para
fortalecer sua importância geopolítica na região, segundo Timothy E. Kaldas,
diretor-adjunto do Instituto Tahrir para Políticas do Oriente Médio, em
Washington.
"O presidente
egípcio, Abdel Fattah el-Sissi, tem cooperado com Israel no transporte de
mercadorias para Gaza e ajudado a manter o cerco", explica Kaldas.
Além disso, o papel central do Egito nas negociações de cessar-fogo
restabeleceu a importância do país no Oriente Médio e no mundo, de acordo com o
especialista. "Em troca, Cairo ganhou muito apoio adicional de
Washington", disse Kaldas.
A Casa Branca concedeu
ao Egito 1,3 bilhão de dólares (R$ 7 bilhões) em assistência militar em
2024. "É a primeira vez que o governo Biden emitiu o valor total",
diz Kaldas, acrescentando que no passado Washington retinha uma parte
que estava condicionada aos direitos humanos.
Antes de 7 de Outubro,
os egípcios estavam muito focados na economia do Egito. Mas os horrendos crimes
de guerra cometidos por Israel contra civis palestinos que vivem em Gaza têm
dividido a atenção deles", observa Kaldas.
Ele acredita que a
opinião pública pode mudar ainda mais, com os egípcios vendo cada vez
mais seu governo como parte do problema. "No futuro, será um ato de
equilíbrio delicado para a liderança do Egito, pois eles tentarão manter o
apoio do Ocidente também", conclui.
Fonte: DW Brasil
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