Após um ano de guerra, o que aconteceu com
o bairro Brasil em Gaza?
Em novembro de 2022, a
seleção brasileira enfrentou a Suíça pela Copa do Catar, em jogo
que daria a classificação ao Brasil para as oitavas de final do mundial, graças
a um gol de Casemiro aos 38 minutos do segundo tempo.
Enquanto milhões de
brasileiros torciam pela seleção no Brasil, algumas dezenas de palestinos se somavam à
nossa torcida, diretamente da Faixa de Gaza.
Eram os moradores do
bairro Brasil, localizado ao sul da cidade de Rafah, quase na
fronteira com o Egito.
"A fumaça de
narguilé e de cigarro subia pelo ar no salão do Shabab Rafah Sports Club, um
dos principais clubes de futebol do território palestino", relatou o
jornal O Globo, à época.
"Do lado de fora,
a representação do Brasil na cidade de Ramallah, na Cisjordânia, sede da Autoridade
Nacional Palestina (ANP), ajudou a montar um telão para transmitir o jogo em
árabe, cercado de bandeiras do Brasil."
"Acho que vai ser
1 a 0 para o Brasil", dizia Ali Wassi, morador de Rafah de 30 anos, que
estava no clube torcendo para o Brasil ganhar o jogo e também a Copa.
Tudo isso faz apenas
dois anos, mas parece outra vida.
O bairro Brasil em
Rafah, onde cerca de 70 palestinos se reuniram naquela segunda-feira para
assistir à seleção brasileira, já não existe mais.
Imagens de satélite,
enviadas pela Planet Labs a pedido da BBC News Brasil, mostram que o bairro foi
praticamente inteiramente reduzido a escombros, após a incursão do exército israelense em Rafah em maio deste ano, como parte da resposta de Israel
aos ataques do Hamas em 7
de outubro de 2023.
Israel justifica a
destruição pela necessidade de retomar o controle da fronteira com o Egito
e destruir túneis que
seriam usados para contrabando de armas e militantes.
Segundo a Organização
das Nações Unidas (ONU), desde o início do conflito, 41,5 mil palestinos já morreram, 96 mil ficaram feridos, 1,9 milhão foram forçadamente
deslocados e 495 mil enfrentam níveis catastróficos de insegurança alimentar.
Do lado israelense,
são mais de 1,2 mil mortes, incluindo as vítimas dos ataques de 7 de outubro, e
cerca de 5,4 mil feridos, conforme dados atualizados até 25 de setembro.
No Líbano, já são pelo
menos 1,6 mil vidas perdidas e 6
mil feridos, segundo dados da agência de migração da ONU de 3 de outubro.
"O que é possível
ver pelas imagens de satélite é que a maior parte de Gaza se tornou
inabitável", diz Nadia Hardman, pesquisadora dos direitos de refugiados e
migrantes da Human Rights Watch (HRW), uma organização não governamental de
defesa dos direitos humanos.
Relatório recém-publicado pelo
Centro de Satélites das Nações Unidas (Unosat), mostra que 66% de todas as
construções em Gaza haviam sido destruídas até setembro deste ano, incluindo
mais de 227 mil moradias.
"Há uma
destruição tão generalizada que será incrivelmente difícil para as pessoas
voltarem aos seus lares", diz Hardman, que avalia atualmente se a ação de
Israel em Gaza se enquadra no crime de guerra de deslocamento forçado.
"Um dos elementos
[para a configuração desse crime] é se as pessoas poderão voltar após serem
evacuadas, o que parece cada vez mais improvável diante da ausência de
infraestruturas civis e do fato de que os meios de sobrevivência foram
completamente dizimados", diz a pesquisadora.
"É chocante ver o
nível de destruição e [pensar] quantos anos serão necessários para reconstruir
e quantas toneladas de escombros terão de ser retiradas."
·
A origem do bairro
chamado Brasil
Em Gaza, muitos
bairros e campos de refugiados levam o nome de países – como a Vila Suíça, o
Campo Canadá e o bairro saudita, por exemplo.
"Há todo tipo de
projetos habitacionais, construídos em períodos diversos", observa Sam
Rose, diretor da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da
Palestina (UNRWA, na sigla em inglês) em Gaza.
"E o que é
interessante, mas também trágico, é que muitos desses projetos são um produto
da destruição ocorrida durante conflitos."
Esse é o caso do
bairro Brasil — também chamado de Al Brazil ou Campo Brasil em diferentes
documentos da ONU e de organizações humanitárias —, cujo nome remonta à Guerra
do Sinai, em 1956.
Com o fim da Segunda
Guerra Mundial, o Estado de Israel foi criado em
14 de maio de 1948, após uma determinação da Organização das Nações Unidas pela
partilha do antigo mandato mandato britânico da Palestina entre judeus e
palestinos.
No dia seguinte,
explode uma guerra, com Israel sendo atacada por três frentes diferentes, pelos
exércitos de Egito, Síria, Iraque, Jordânia, Líbano e Arábia Saudita. Neste
primeiro conflito, os Estados árabes saem derrotados.
Uma segunda guerra
eclode em 1956, quando uma coalizão formada por Israel, Grã-Bretanha e França
invade o Egito por conta da nacionalização do Canal de Suez — rota comercial que liga os mares Vermelho e Mediterrâneo
— pelo presidente egípcio Gamal Abdel Nasser.
"Então é criada
pela ONU a primeira Força de Emergência das Nações Unidas [Unef, na sigla em
inglês], enviada para guarnecer a fronteira entre Egito e Israel depois da
Guerra do Sinai de 1956, para evitar a eclosão de uma nova guerra", diz
Dennison de Oliveira, professor titular do Departamento de História da
Universidade Federal do Paraná (UFPR).
"É nesse contexto
que o Brasil participa dessa força de paz, junto a efetivos do Canadá,
Colômbia, Dinamarca, Finlândia, Índia, Indonésia, Noruega, Suécia e
Iugoslávia", afirma o especialista em história militar.
Oliveira observa que,
em 1956, o Brasil era presidido por Juscelino Kubitschek, que tinha uma
perspectiva desenvolvimentista na política interna e ambições diplomáticas no
âmbito internacional.
À época, o Brasil
também gozava de prestígio externo, por conta de seu papel de destaque na
criação da ONU em 1945 e da atuação das Forças
Expedicionárias Brasileiras (FEB) na Itália,
durante a Segunda Guerra Mundial.
"Somando o
prestígio internacional do Brasil à época, com a ambição presidencial de ter um
papel mais destacado no cenário internacional, surge a ideia de criação do
batalhão que passou à história como Batalhão Suez", diz o pesquisador.
Embora a tropa
brasileira seja conhecida como Batalhão Suez, sua zona operacional foi situada
no sul da Faixa de Gaza, tendo como missão vigiar e manter a integridade da
Linha de Demarcação de Armistício (ADL, na sigla em inglês) e de uma zona
neutra entre os territórios do Egito e Israel.
O efetivo brasileiro
foi aquartelado na cidade palestina de Rafah, onde estavam localizados o Campo
Rafah, da ONU, e o Campo Brasil, do Batalhão Suez.
"O batalhão tinha
180 homens em média, que lá ficavam em regime de rodízio. Então, a cada seis
meses, trocava-se metade do efetivo", diz Oliveira.
Ao longo dos quase
onze anos, de 1957 a 1967, que durou o Batalhão Suez, teriam passado pelo
batalhão 6.300 brasileiros, que faziam basicamente serviço de guarda e
vigilância, impedindo que pessoas não autorizadas dos dois lados cruzassem a
fronteira, observa o pesquisador.
"Foi uma operação
que deu muito certo, porque durante a mais de uma década que nossos soldados
estiveram lá, não eclodiram guerras no Oriente Médio."
·
Lições de 'sacanagem'
em árabe
Gerson Oliveira de
Almeida, de 79 anos e veterano do Batalhão Suez, onde serviu de agosto de 1964
ao mesmo mês do ano seguinte, lembra com orgulho da atuação brasileira em Gaza.
Durante seu tempo de
serviço, ele conta que ficou no comando das comunicações da 9ª Companhia do
Batalhão, lotada na fronteira entre Egito e Gaza.
O aposentado lembra
vividamente da miséria em que, já naquela época, viviam os palestinos.
"Eles eram muito,
muito pobres, e iam para a cerca da 9ª Companhia e do batalhão para arrumar
alguma coisa", lembra Gerson, que foi à missão com 19 anos.
"Pelas regras,
nós não podíamos dar comida a eles, então eu e outros colegas íamos para o
rancho [refeitório, local de alimentação dos militares] e as sobras nós
guardávamos assim num papel e levávamos para a cerca, colocávamos do lado de
fora e eles avançavam para comer."
"Era uma situação
horrível. E se não tivesse papel para colocar, se a gente colocasse [a sobra de
comida] na própria areia, eles pegavam e comiam. Era chocante, uma miséria
muito grande."
Apesar desse cenário
desolador, Gerson conta que chegou a fazer amizade com um árabe chamado
Salomão, que ensinou a ele o básico da língua árabe.
"Ele ia na cerca
e dizia 'Cabo Gerson, cabo Gerson, vai aprender arabic hoje?'
e eu dizia 'Vou sim, Salomão, espera aí que vou pegar meu banquinho para sentar
com você na cerca'."
O
"professor" sentava do lado de fora e o brasileiro do lado de dentro
da cerca, lembra o boina azul, membro da Associação dos Integrantes do Batalhão
Suez do Rio de Janeiro (Abis-RJ).
"Ele me ensinou a
pedir comida e também descambava—– desculpe a expressão — para a parte de
sacanagem, o que era muito normal e natural. Então a gente perguntava: 'Como é
que eu falo assim com uma mulher?' e ele dizia em árabe. Então aprendi muita coisa
assim, na beira da cerca."
Os palestinos que
conviveram com os soldados brasileiros também guardaram boas lembranças daquela
época.
Kamal al Akras, um
morador do bairro Brasil que falou ao jornal Folha de S.Paulo em reportagem de
2015, lembrava, rindo, de quando, aos 14 anos, foi com amigos até a cerca do
Campo Brasil assistir a uma partida entre soldados brasileiros e indianos — o jogo,
tenso e disputado, terminou em pancadaria.
"Todos gostavam
dos brasileiros. Eram os únicos que iam a todos os eventos, todas as festas, e
não somente às brasileiras."
O fim da missão
brasileira foi marcado pelo início da Guerra dos Seis Dias, quando, em 5 de
junho de 1967, forças militares israelenses atacaram as posições brasileiras na
ADL.
Na ocasião, foi morto
o cabo Carlos Adalberto Ilha, única vítima brasileira por fogo inimigo em mais
de dez anos de missão, lembra o professor da UFPR.
As posições
brasileiras foram ocupadas pelas tropas israelenses. Alguns dias depois, em 13
de junho, ocorreu a evacuação do contingente brasileiro.
Estava encerrada a
participação brasileira na primeira força de paz da ONU.
Akras contou à Folha
que, tempos depois de tomar o controle de Gaza na Guerra dos Seis Dias, os
israelenses teriam tentado mudar o nome da vizinhança de Al Brazil para Al
Nahla.
A expressão em árabe
quer dizer "abelha de mel" e homenagearia um judeu que teria morrido
no local e teria sido encontrado com tâmaras doces ainda intactas, preservadas
em seu bolso, semanas depois.
"Os moradores não
permitiram e mantiveram o nome em homenagem aos brasileiros, que eram muito
queridos", disse o palestino ao jornal.
·
O bairro Brasil e suas
muitas destruições
Sam Rose, da UNRWA,
conta que, antes da guerra, Rafah era uma cidadezinha de fronteira poeirenta,
com cerca de 90% da população formada por refugiados de 1948.
"O bairro Brasil
era formado por muitos prédios baixos, de dois ou três andares, onde pessoas
muito pobres viviam em condições de superlotação", diz Rose.
"Não estamos
falando de favelas, ou algo do tipo, mas de blocos de concreto cinza, sem
qualquer acabamento, e onde quem tinha algum dinheiro construía um quarto extra
aqui ou ali."
Rose observa que parte
dessa má qualidade das construções se devia ao fato de que, por sua proximidade
com a fronteira com o Egito, o bairro Brasil já foi muitas vezes destruído em
conflitos entre israelense e palestinos. Então os prédios ali eram relativamente
recentes.
A última grande
destruição aconteceu em 2004, após a chamada Segunda Intifada, levante dos
palestinos contra a ocupação israelense ocorrido a partir de 2000.
Naquela ocasião, quase
75% das moradias do bairro foram demolidas por escavadeiras israelenses e
estruturas de lazer locais, como um zoológico e um estádio de futebol, foram
destruídas.
Em maio de 2024, o
bairro já reconstruído abrigava milhares de refugiados vindos do centro e norte
de Gaza, fugindo dos ataques israelenses em retaliação aos atentados do Hamas.
Com uma população de
cerca de 280 mil pessoas antes do início da guerra em outubro, Rafah passou a
abrigar cerca de 1,4 milhão nos meses seguintes, segundo as Nações Unidas.
"Rafah havia se
tornado então [em maio deste ano] a única área segura, que não havia sido alvo
das mesmas operações militares que outras áreas [ao norte e centro de
Gaza]", lembra Nadia Hardman, da Human Rights Watch.
"Então o que
tínhamos era a maioria da população apinhada em abrigos não adequados para essa
finalidade, numa situação humanitária desastrosa — sabemos que as Forças de
Defesa Israelenses [FDI] têm usado a fome como uma arma de guerra", diz a pesquisadora.
"Então foi
assustador quando ficou claro que haveria uma operação militar de grande
proporção em Rafah, para supostamente, livrar a área do Hamas."
Segundo o jornal
israelense The Times of Israel, a 162ª Divisão das Forças de Defesa Israelenses
primeiro tomou o controle dos arredores orientais da cidade de Rafah e da
travessia da fronteira com o Egito no início de maio.
No segundo estágio da
operação, cerca de uma semana e meia depois, a divisão tomou o controle do
bairro Brasil.
"O que Israel diz
é que, quando eles tomaram controle do Corredor Filadélfia [rota de 14 km na
fronteira entre a Faixa de Gaza e o Egito], eles descobriram diversos túneis de
contrabando, alguns tão grandes que seria possível dirigir um carro através
deles. Tudo isso está documentado", diz Rose, da UNRWA.
"Muitos desses
túneis são construídos dentro de casas, então Israel argumenta que, para
retomar o controle da fronteira e impedir o contrabando de armas e
guerrilheiros, é preciso demolir todas as casas nessa região", completa o
diretor.
"Se eles vão
mantê-la ou não como uma zona tampão [área neutra que separa forças inimigas]
ainda é algo a ser visto, porque esse é um dos pontos sensíveis nas negociações
pelo cessar-fogo."
·
Ibrahins, Mahmouds e
Salomões
Com o avanço da guerra
no Oriente Médio para o Líbano e a entrada do Irã no conflito, Nadia Hardman,
da Human Rights Watch, teme pelos moradores de Gaza deslocados forçadamente,
cujo sofrimento agora está mais distante dos olhos do mundo.
"A atenção da
mídia segue em frente, mas a gravidade da situação continua a mesma. É preciso
lembrar o mundo que as violações [de direitos] continuam, que as pessoas em
Gaza ainda não têm nenhum lugar seguro para ir, que as condições de
habitabilidade foram destruídas."
Questionado se será
possível um dia reconstruir o bairro Brasil, Sam Rose, da UNRWA, lembra que
isso já foi feito antes. Mas pondera que o nível de destruição atual é sem
precedentes.
"A abordagem que
tivemos no passado não vai funcionar. Antes reconstruímos centenas ou alguns
milhares de casas. Agora estamos falando de centenas de milhares de casas [em
Gaza como um todo]", destaca Rose.
"Só o processo de
remoção de escombros deve levar uma década. E há a questão de quem vai fazer
isso, quem vai financiar — porque estamos falando de dezenas de bilhões de
dólares — e onde as pessoas vão viver e como vão receber os serviços de que necessitam
enquanto Gaza é reconstruída."
Gerson Oliveira de
Almeida, o boina azul quase octogenário, lamenta a destruição do bairro onde um
dia serviu em missão de paz.
"Eu penso o
seguinte: o que o Hamas fez foi altamente indigesto, jamais deveria ter
ocorrido. Mas vejo como bastante desproporcional o que Israel está fazendo ao
povo palestino", diz o militar aposentado.
"Me sinto
frustrado de ter ficado lá um ano buscando a paz e agora ver esse morticínio
total. Fico pensando nos Ibrahins, Mahmouds, Salomões que eu conheci. Pessoas
comuns, segregadas a uma terra seca e infértil, enquanto o judeu do outro lado
tinha tudo na terra dele."
"Então é tudo
muito desproporcional. É muito triste."
Fonte: BBC News Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário