Terra arrasada: fogo no Pantanal deixa
animais resgatados sem ter para onde ir
Em agosto, uma onça
pintada apelidada de Miranda foi resgatada com queimaduras de segundo grau nas
patas em uma fazenda no município sul mato-grossense que dá seu nome. Fugindo
do fogo que devasta o Pantanal, o animal
atravessou locais em chamas e pisou em cinzas ainda quentes. Após 43
dias de tratamento intenso em Campo Grande, a onça Miranda foi libertada na
região em que foi resgatada, mas não se sabe se ela terá comida e abrigo porque
a área em que vivia foi uma das regiões que mais sofreu com incêndios no
estado.
“Podemos até soltar a
Miranda, mas para onde?”, questionou a veterinária Jordana Toqueto durante o
tratamento da onça. A veterinária trata de animais silvestres no Hospital
Veterinário Ayty, localizado dentro do Centro de Reabilitação de Animais
Silvestres (CRAS), do governo do Mato Grosso do Sul. “Está tudo queimado. Ela
vai ter comida? E não somente ela. Vai ter lugar com garantia de alimentação
para esses outros animais que estamos reabilitando? Porque perdeu toda a
vegetação”.
O hospital veterinário
recebe animais resgatados do tráfico, vítimas de atropelamentos e do fogo e
atua no tratamento e reabilitação das espécies até que estas estejam prontas
para a soltura na natureza. De janeiro até o final do mês de agosto, o local havia
recebido 23 animais resgatados de áreas queimadas do Pantanal. Desse total, 14
haviam morrido em decorrência dos ferimentos e complicações causadas pelo fogo.
Em audiência pública
no Senado em setembro, Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do
Clima, afirmou que se o cenário se mantiver o mesmo – mudanças climáticas
associadas à baixa precipitação, altas temperaturas e perda de cobertura
vegetal por queimadas e desmatamento –, o Pantanal pode deixar de existir até o
fim deste século. Outros pesquisadores são menos otimistas e apontam que a
perda total do bioma pode ocorrer entre 2060 e 2070. “É terrível imaginar que
isso possa acontecer, obviamente, por ação humana”, pontuou a ministra.
No Pantanal, cerca de
85% dos incêndios ocorrem em áreas privadas, explicou a ministra, que ressaltou
ainda a ilegalidade do uso de fogo, já que
a queima controlada está proibida no Pantanal durante os meses de seca.
No estado do Mato
Grosso do Sul, que concentra 65% do bioma, a área queimada entre 1º de janeiro
e 25 de setembro chegou a 1,4 milhão de hectares, segundo dados do Laboratório
de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). No total, 13% do bioma já foi consumido pelo fogo este ano.
A antecipação da época
dos incêndios chama a atenção das autoridades. Desde o início deste ano, 19
produtores e empresas do agronegócio passaram a ser investigados pelo
Ministério Público de Mato Grosso do Sul suspeitos de provocarem queimadas
criminosas em Corumbá (MS). O município, localizado na fronteira do Brasil com
a Bolívia, é o segundo mais afetado pelo fogo este ano no Brasil, com o
registro de 4.500 focos de incêndio entre 1º de janeiro e 8 de setembro.
Márcio Ferreira Yule,
coordenador do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais
(Prevfogo) do Ibama em Mato Grosso do Sul, explica que, por meio de análise de
imagens de satélite e perícias nos locais da ignição, o órgão é capaz de identificar
os responsáveis pela destruição. “Antes de colocar fogo, a pessoa tem que
pensar muito, porque ela será responsabilizada”, completa.
De janeiro a setembro,
o Ibama aplicou R$ 115,9 milhões em multas relacionadas à destruição de áreas
no Pantanal. Foram autuados 14 fazendeiros e uma empresa envolvida em um
incêndio que destruiu o equivalente a 18 mil campos de futebol, como mostrou
reportagem publicada pela Repórter Brasil.
• Fazenda multada por fogo
Entre os produtores
responsabilizados está Armando Pereira Ferreira. No dia 26 de agosto, ele foi
multado pelo Ibama em R$ 10,6 milhões por conta de um incêndio que, de acordo
com o órgão, teve início na Fazenda Nossa Senhora de Fátima, uma de suas propriedades
no Pantanal sul-mato-grossense. A multa aplicada foi a segunda maior registrada
contra um fazendeiro na atual temporada de fogo no bioma.
O incêndio ultrapassou
os limites da fazenda e atingiu 101 mil hectares no total, segundo o relatório
de fiscalização, obtido pela reportagem via Lei de Acesso à Informação (LAI). É
uma área equivalente à da cidade de Paris.
Luiz Haroldo Cunha
Marques, analista ambiental do Ibama que acompanhou o caso, explica que 80% da
área queimada era formada por palmeiras carandá, uma vegetação típica do
Pantanal “É muito comum aqui na região essas áreas que eram formadas por
Carandazais e que hoje são pastos”, ressalta.
Ferreira morreu em
junho de 2022. Segundo Marques, em casos como esse, a responsabilização recai
sobre o responsável pela administração do espólio do produtor.
A representante legal
do espólio de Armando Ferreira, segundo processos judiciais consultados pela
Repórter Brasil, é a sua viúva, a também pecuarista Ana Maria Soriano Artilha
Ferreira. O produtor deixou também quatro filhos, todos proprietários de fazendas
destinadas à criação de gado.
Entre as propriedades
da família está a Fazenda Vó Pilar, localizada em Bataguassu (MS), atualmente
administrada por Ana Maria Ferreira. A fazenda é fornecedora da unidade da JBS
em Nova Andradina (MS). Informações de Guias de Trânsito Animal acessadas pela
Repórter Brasil mostram o fornecimento de gado para o frigorífico em setembro,
uma semana depois do incêndio na Fazenda Nossa Senhora de Fátima.
A qualidade dos
animais criados por Ana Maria Ferreira em outra propriedade, a Fazenda Mimosa,
em Ivinhema (MS), é destacada em depoimento de um comprador da Friboi, do grupo
JBS, em matéria publicada em junho deste ano. Na ocasião, 96 novilhas foram abatidas,
produzindo “carnes de altíssima qualidade” com rastreabilidade e certificação
para “padrões mais exigentes de mercados internacionais”, como os Estados
Unidos.
Ana Maria Soriano
Ferreira afirmou, por meio de sua advogada, que a Fazenda Nossa Senhora de
Fátima já foi herdada pelos filhos e que não pertence mais à ela e ao produtor
Armando Ferreira. A pecuarista disse também que a propriedade está arrendada e
que acredita que a multa do Ibama deverá ser destinada ao arrendatário. Até o
fechamento desta reportagem, no entanto, a autuação e o embargo ainda estavam
em nome de Armando Ferreira.
Em nota, a JBS disse
que a Fazenda Nossa Senhora de Fátima nunca foi fornecedora direta da empresa e
que a propriedade “fica a 503 km de distância da Fazenda Mimosa e a 543 km da
Vó Pilar, estas sim fornecedoras da JBS, que cumprem todos os requisitos da
política de compra de matéria-prima da Companhia”. O frigorífico também afirmou
que “recebeu dos representantes do espólio de Armando Pereira Ferreira, que
administram as propriedades citadas, a informação de que nos últimos dois anos
não houve nenhuma movimentação de animais da Nossa Senhora de Fátima para as
outras duas fazendas”. Questionada pela reportagem, a JBS não esclareceu quais
mecanismos possui para identificar e monitorar a conformidade ambiental de seus
fornecedores indiretos.
• Ossos expostos e queimaduras de 3º grau
Com queimaduras de
terceiro grau nas patas, anemia, desidratação e 28 quilos abaixo do peso ideal,
outra onça-pintada, apelidada de Antã,
foi resgatada de uma área destruída pelo fogo. O animal vivia no Passo do Lontra,
localidade próxima a Corumbá (MS), que é destino turístico de pesca e
observação da fauna. Com os incêndios que tomaram a região, parte do habitat
dos animais foi transformado em cinzas. Em setembro, quase um mês após seu
resgate e com o pulmão comprometido pela fumaça, Antã teve uma parada cardíaca
e não resistiu.
“Os resgates das
onças, dos cervos e dos veados é muito impactante porque há uma queima dos
cascos, você vê os ossos expostos”, explica Fabiane Gonçalves de Souza,
coordenadora de ações de resgate e salvamento de fauna do Ibama no Pantanal
sul-mato-grossense. “Você quer ajudar o animal, mas ele não tem condições. Em
casos assim, ele não vai sobreviver”, desabafa.
O Pantanal é lar de ao
menos 1,2 mil espécies de vertebrados
identificadas. Parte dessas integra a Lista de Espécies da Fauna Brasileira
Ameaçadas de Extinção, caso da onça-pintada, da ariranha, do cervo-do-pantanal
e do tamanduá-bandeira.
Uma pesquisa publicada
na revista científica Nature estimou em 17 milhões o número de animais
vertebrados mortos nos incêndios que ocorreram no bioma em 2020. “Isso dá uma
média de 2 a 3 animais mortos por hectare no Pantanal. É um número assustador”,
resume Walfrido Moraes Tomas, pesquisador de fauna selvagem da Embrapa Pantanal
e coordenador do estudo.
Além dos animais de
maior porte, outras espécies como serpentes, lagartos, formigas, aranhas,
abelhas e cupins, são completamente calcinados nas queimadas ou que morrem
dentro de tocas. “Eles têm um papel no ecossistema muito relevante. Quando vem
um fogo deste, afeta todo mundo e começa a alterar a cadeia ecológica inteira.
Isso é uma coisa grave e não sabemos qual é o impacto”, avalia o pesquisador da
Embrapa Pantanal. “Essa desestruturação
de um ecossistema interior é, para mim, o maior problema”.
• Sinergia catastrófica
Os incêndios no
Pantanal são intensificados pela crise climática. Segundo o Ministério do Meio
Ambiente e Mudança do Clima (MMA), o Brasil vive a pior estiagem em 75 anos.
Além dos efeitos globais, causas regionais também contribuem para o
alastramento do fogo. Drenagem de áreas úmidas, degradação de mananciais,
erosão de solo e assoreamento de rios nos planaltos pantaneiros afetam a
distribuição de água nas planícies do bioma, exemplifica Walfrido Moraes Tomas,
pesquisador da Embrapa.
Em nível local, o
fator humano é o responsável pelo começo do fogo. “É quem risca um fósforo para
acender um fogo, tomando uma decisão equivocada”, pontua. “Todos esses fatores
estão interagindo em sinergia para gerar um evento desse, que é um incêndio catastrófico”,
resume Tomas.
Fonte: Repórter Brasil
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