quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Marcos Honorio: Do Rio Araguaia ao Mar Mediterrâneo, a Palestina será livre

Em abril de 1972, militares do Exército Brasileiro entraram na região do Araguaia após a descoberta de que se desenvolvia no território a preparação para uma guerra de guerrilha que intentava derrubar a ditadura empresarial-militar e deflagrar um movimento revolucionário que tomasse o poder. A repressão não podia definir o efetivo guerrilheiro, a sua localização precisa ou a extensão de sua influência entre os moradores locais.

A essa altura, os destacamentos guerrilheiros haviam se infiltrado por toda margem do Rio Araguaia. Dentre as cidades envolvidas na preparação guerrilheira, há uma que se avulta pelos paralelismos históricos possíveis e, atualmente, inevitáveis. A Palestina, município situado na margem esquerda do Rio Araguaia, era uma das localidades envolvidas no confronto entre comunistas e a reação que, ao final de 1974, lançara três campanhas militares para desmantelar a organização da resistência que lutava contra a ditadura e o capitalismo.

Existem apenas duas abordagens à disposição de quem resiste. A primeira consiste em uma “resistência passiva”, onde o oprimido simplesmente reafirma a sua existência – mesmo que parcial e restringida – diante do opressor, tentando fazer sobreviver seus costumes, suas tradições, seu território e todo conjunto de significações que constituem seu ideário coletivo, sem buscar a destruição do responsável pela sua situação de opressão.

A outra tática que se pode inscrever na luta contra as opressões é a da “resistência ativa”, onde o oprimido lança sobre o opressor a violência maturada na sua cólera, contra-atacando e ativamente esforçando-se para abolir a dominação. Os guerrilheiros do Araguaia escolheram a via da resistência ativa ao tentarem derrubar o regime fascista através das armas.

Desde o início da criminosa ocupação israelense na Palestina que fica às margens do Rio Jordão, o movimento de resistência árabe que surgiu se valeu de uma combinação de táticas para ora tentar impedir que Israel levasse a cabo a sua “solução final”, martirizando até o último palestino, ora tentar impor derrotas militares aos seus algozes em retaliação às brutalidades que sofriam.

Refiro à resistência palestina de forma difusa porque não compreendo a ação de resistir somente como a formação de grupos paramilitares que pretendam lutar pela via das armas contra Israel. A resistência passiva de uma mãe ou avó palestina que lega aos seus filhos ou netos a cultura de seu povo é também importante na luta contra a tentativa de limpeza étnica em curso em Gaza. É admissível que nós tenhamos alguma predileção no que diz respeito à tática eleita pelos palestinos na luta contra o sionismo – porém, não se deve dizer desprezíveis os meios que encontram o flagelado povo palestino para continuar existindo, sejam eles quais forem.

Entretanto, houve uma inflexão tática entre os grupos da resistência palestina a partir da Operação Dilúvio de al-Aqsa, deflagrada há um ano, quando o Hamas lançou uma série de ataques ao território israelense. Desde então, Israel vem colocando em prática um genocídio contra a população palestina comprimida em Gaza e na Cisjordânia, além de violar a soberania de outros países da região.

Durante a terceira campanha do Exército Brasileiro no Araguaia, os militares passaram a utilizar o terror como ferramenta de coerção. A sofrida população da região foi acossada pelos fascistas que chegaram à conclusão de que tudo era permitido para exterminar a guerrilha. Sobre as matas densas da região, aviões lançaram napalm na tentativa de atingir os guerrilheiros.

Nos estágios finais da incursão militar que aniquilou a guerrilha, Osvaldão, um dos mais destacados combatentes do Araguaia, a quem a população local atribuía a habilidade de se transformar em animais quando avistado pelas tropas do Exército, foi assassinado por um bate-pau recrutado pelos militares, pendurado em um helicóptero e exibido para a população como uma insígnia da derrota do movimento insurgente. Depois, o valente guerrilheiro foi decapitado por um sargento e o seu corpo foi deixado na mata. Osvaldão é um mártir em meio a tantos outros que lutaram no Araguaia.

A postura cínica de parte expressiva da esquerda brasileira diante do genocídio em curso em Gaza estremece quem quer que se solidarize com as lutas dos povos oprimidos ao redor do mundo. Em nome de um suposto pragmatismo (que camufla a atonia ideológica do campo progressista) é considerado admissível ter posições vacilantes acerca da questão palestina. Com o distanciamento que nos trará o tempo, será possível medir quão deletéria foi a reticência daqueles que se mantiveram calados diante do tema que eu elejo como o mais importante para o painel das lutas contra o colonialismo em nosso tempo.

Para além de torcer para que os palestinos adquiram a habilidade de transfigurarem-se em pássaros – da forma como Osvaldão era capaz – para se esquivar das bombas, que solução resta? São duas: jamais condenar a legítima resistência do povo palestino, que após décadas de tormento sem que se alcançasse solução pelos canais diplomáticos e do direito internacional, bravamente decidiu desafrontar seus carrascos, não se furtando do emprego da violência na tentativa de libertar-se e não deixar de propagar o que acontece em Gaza, tendo em vista que a cortina ideológica da burguesia impede que o genocídio palestino seja divulgado na sua completude.

Do Rio Araguaia ao Mar Mediterrâneo, a Palestina será livre.

 

¨      Gaza — um desafio moral. Por Reginaldo Nasser

Desde 07 de outubro de 2023, a partir dos massacres liderados pelo Hamas que causaram a morte de mais de mil israelenses, entre militares e civis, a ação militar israelense, na sequência, colocou-nos diante de um processo histórico sem precedentes. Do alto de sua longa experiência na luta contra o racismo nos EUA, a ativista Angela Davis não poderia definir melhor o momento em que passamos a viver: “A Palestina é um teste moral para o mundo”.

Mas, a história dos palestinos da Faixa de Gaza não começa no dia 07 de outubro de 2023 como querem aqueles que fazem tábula rasa da história. Desde 2007, os 2,5 milhões de habitantes, sendo 75% de refugiados, vivem em condições desumanas num território de 360 km2 sob cerco de Israel por terra, mar e ar com privação de água, remédios e alimentos. Trata-se, sem dúvida nenhuma, de um caso exemplar de necropolítica, uma política de morte planejada de uma determinada população de forma lenta, progressiva e fulminante.

Se isso não bastasse, a partir do dia 07 de Outubro, os palestinos passaram a reviver uma trágica lembrança: Nakba ( catástrofe em árabe) de forma mais intensa do que no passado. São, pelo menos, 42 mil pessoas mortas (cerca de 16.700 crianças), mais de 96 mil pessoas desaparecidas, mais da metade das casas de Gaza (danificadas ou destruídas) e 50% da infraestrutura de saúde inutilizada.

Gaza é uma verdadeira distopia. Uma hora após eu escrever esse artigo, notem bem, não é um dia, o que já seria catastrófico, acrescente aos números acima mais 15 pessoas mortas (6 crianças) . Mas, para chegar a esses números horrorosos, houve a convergência de três fatores: a intencionalidade do governo israelense, o apoio de potências e a condescendência da comunidade internacional.

Políticos e militares israelitas fizeram numerosas declarações atribuindo culpabilidade coletiva aos palestinos em Gaza pelo assassínio em massa de israelenses. Benjamin Netanyahu convocou o inimigo bíblico de Israel, Amaleque. “Agora vá e fira Amaleque”, “destrua tudo o que eles têm, e não os poupe; mate homem, mulher, criança boi e ovelha, camelo e jumento”. O Ministro de Defesa de Israel, Yoav Gallant, ordenou um “cerco total” à Faixa de Gaza. Não haverá eletricidade, disse ele, nem comida, nem combustível.

Além da intencionalidade, outro elemento importante para que o genocídio se torne realidade é o apoio político e material. Israel é o maior destinatário da ajuda militar dos EUA na história, recebendo US$251 bilhões ajustados pela inflação desde 1959. Além disso, os US$18 bilhões enviados, desde 7 de outubro de 2023, é de longe a maior ajuda militar enviada a Israel em um ano, mesmo depois que a Corte Internacional de Justiça ordenou medidas provisórias para interromper o genocídio em Gaza.

No que se refere ao papel da comunidade internacional, é verdade que Israel nunca foi tão criticado como atualmente, seja no nível diplomático, como nas instituições internacionais (ONU, Tribunal Penal Internacional, Corte Internacional de Justiça), mas, por outro lado, não houve nenhuma atitude concreta de qualquer Estado que pudesse interromper as ações de Israel. O que nos faz lembrar, não por acaso, as fortes analogias da colonização da Palestina com o caso do apartheid na África do Sul e, portanto, e que este regime racista foi derrubado apenas quando houve medidas econômicas de sanções e boicote.

Por outro lado, é preciso reconhecer também que, pela primeira vez, a chamada “questão Palestina” tornou-se global, a tal ponto que chegou a colocar a guerra da Ucrânia em segundo plano nas disputas internacionais. Grandes manifestações populares ganharam as ruas não apenas nos países árabes, mas em todos os continentes, sobretudo, nos governos que mais apoiam Israel, como é o caso dos dos EUA, Inglaterra e Alemanha, principalmente.

Nesse sentido, cabe mencionar, em particular, a dimensão que tiveram os protestos estudantis que se iniciaram nos EUA e se espalharam para universidades europeias, canadenses e australianas. Não é de se estranhar que a repressão aos movimentos nas Universidades fosse de tamanha brutalidade, afinal de contas as bombas e aviões guiados por tecnologias militares sofisticadas são o resultado de pesquisas custeadas e projetadas pelo Pentágono nas Universidades.

Além de protestar contra o genocídio, os estudantes conseguiram, em um grau sem precedentes, colocar na pauta internacional a proteção das vidas palestinas, a reivindicação de um Estado palestino e o fim das parcerias das Universidades com o complexo militar-industrial dos EUA, uma verdadeira maquina de guerra responsável, direta ou indiretamente, pela destruição de grande parte das vidas no mundo.

É verdade que a questão palestina tem as suas particularidades históricas e sua complexidade geopolítica que é preciso conhecer a fundo, mas isso não é uma precondição para que possamos repudiar, em alto e bom tom, um genocídio que se naturaliza aos nossos olhos, basta despertar o sentimento de justiça.

 

¨      Um mundo que perdeu o coração. Por Leonardo Boff

Acompanhando o atual curso do mundo, seja a nível internacional, seja a nível nacional, notamos um verdadeiro tsunami de ódio, de mentiras, de exclusões, de verdadeiros genocídios e extermínios em massa como na Faixa de Gaza, que nos deixa perplexos. Até onde pode chegar a maldade humana? Não há limites para o mal. Ele pode chegar até o auto-extermínio dos seres humanos.

Pensando em nosso país, as mortes, os assassinatos de jovens negros nas comunidades periféricas, as crianças vítimas de balas perdidas seja da polícia (que mata) seja de facções criminosas, os diários feminicídios e as centenas de estupros de meninas e de mulheres, o esquartejamento de sequestrados, deixam uma cidade inteira como o Rio de Janeiro continuamente sob o medo e ameaças. Está perdendo todo o seu glamour. Assim sucede em quase todas as grandes cidades de nosso país, tido por Sérgio Buarque de Holanda como “cordial” (Raízes do Brasil).

Entretanto, a maioria dos intérpretes não leu o rodapé ao termo “cordial” onde ele observa: “a inimizade pode ser tão cordial como a amizade, nisso que uma e outra nascem do coração” (n. 6). Portanto, o brasileiro está mostrando, especialmente, sob o governo do Inelegível, a inimizade entre amigos e nas famílias, a banalidade do palavrão, dos maus costumes e da mentira: tudo sendo “cordial” por nascer de um coração “cordial”(perverso).

Ao nível internacional o cenário se revela ainda mais atroz. Com o apoio irrestrito e cúmplice dos EUA e vergonhoso da Comunidade Europeia que traiu seu legado dos direitos do cidadão, da democracia e de outros valores civilizacionais, estão se perpetrando verdadeiros crimes de guerra contra 40 mil civis e inegáveis genocídios de cerca de 13.800 crianças inocentes na Faixa de Gaza, todos pelo governo de extrema direita de Benjamin Netanhyau. Trata-se de uma retaliação totalmente desproporcional a outro crime, não menos horrendo do grupo terrorista Hamas.

Benjamin Netanhyau permite tais genocídios porque não tem coração, não se coloca no lugar das mães e das vítimas inocentes. Não lhe importa se para matar um líder do Hezbollah tenha que, num bombardeio, vitimar dezenas de outras pessoas. O ódio o tornou cruel e sem piedade. Crimes semelhantes estão ocorrendo na guerra que a Rússia move contra a Ucrânia com milhares de vítimas, com a destruição de uma antiga cultura-irmã e com incontáveis vítimas inocentes. Paremos por aqui nessa via-sacra de horrores que tem mais estações do que aquela do Filho de Deus carregando sua cruz.

A pergunta é como isso ocorre à luz do dia sem que haja uma autoridade reconhecida que pudesse parar esse extermínio de gente e de inteiras cidades? Qual a raiz subjacente a esta iniquidade? A história no passado conheceu extermínios, até feitos em nome de Deus como no terrível livro dos Juízes da Bíblia judaico-cristã e em tantas guerras de outrora. Mas nós as excedemos em crueldade em todos os níveis.

Israel matou mais de 207 funcionários da ONU, bombardeou hospitais, escolas, universidades, mesquitas e destruiu 80% de Gaza. Hoje corremos o sério risco de uma guerra total entre as potências militaristas em disputa pela hegemonia do mundo, o que realizaria o princípio de nossa autodestruição.

Sustendo a interpretação de que tudo isso se tornou possível porque perdemos o coração, o esprit de finesse (a gentileza de Pascal) e a dimensão da anima (a sensibilidade de C.G. Jung). A cultura moderna se construiu sobre a vontade de poder como dominação, usando a razão, desgarrada do coração e da consciência, traduzida em tecno-ciência para o nosso bem e mais para fins bélicos.

Como notava o Papa Francisco na Laudato Sì: “o ser humano não foi educado para o reto uso do poder… porque não foi acompanhado quanto à responsabilidade, aos valores e à consciência” (n.105). A razão estabeleceu seu despotismo na forma de racionalismo, rebaixando outras formas de conhecer e de sentir a realidade. Assim o sentimento (pathos) foi recalcado no falso pressuposto de que atrapalharia a objetividade da análise. Hoje é evidente que não há objetividade absoluta. O sujeito pesquisa com seus pressupostos e com seus interesses de forma que sujeito-objeto estão sempre imbricados.

O fato é que a dimensão do coração e da cordialidade foi reprimida. Abstraindo do cérebro reptiliano que é o mais antigo, o cérebro límbico constitui a nossa real base fundamental. Ele surgiu com os páleo-mamíferos entre 150-200 milhões de anos atrás e nos mamíferos superiores há 40-50 milhões de anos com os quais temos o condomínio. Somos mamíferos racionais, portanto, seres de sentimento.

O cérebro límbico é a sede de nossas emoções, seja de ódio, de ira e outras negatividades, mas principalmente nele se alberga o mundo das excelências, do amor, da amizade, da empatia, dos valores, da ética e da espiritualidade. O cérebro neocortical irrompeu com o ser humano há 7-8 milhões de anos e culminou há cerca de 100 mil anos com o surgimento do homo sapiens do qual somos herdeiros. É o mundo da razão, dos conceitos, da linguagem, na ordenação lógica das coisas.

Portanto, ele compareceu tardiamente. Mas com seu desenvolvimento fundou o reino da razão. Mas importa não esquecer que se trata de um único cérebro que envolve estas três dimensões sempre relacionadas (na versão do cérebro triuno de MacLean: reptíliano, límbico, neocortex). A concentração excessiva na racionalidade com a qual dominamos o mundo, a mulher (patriarcado) e a natureza à custa do sentimento, causou os desacertos socio-históricos, cujas consequências nefastas estamos colhendo.

É urgente unir o cérebro neocortical (razão/logos) com o límbico (coração/phatos), o coração enriquecendo os projetos racionais com humanidade e sensibilidade; inversamente investir razão, vale dizer, conferir direção e justa medida ao mundo dos sentimentos e do coração. Só assim encontraremos o equilíbrio necessário. Porque afogamos o sentimento de mútua pertença, de que todos, sem exceção, somos humanosnos transformamos em cruéis genocidas (face à nossa espécie) e ecocidas (face à natureza).Temos escravizado,submetido e discriminado nossos irmãos e irmãs.

Pelo fato de não termos resgatado a dimensão do coração, do espírito de finura (Pascal), da sensibilidade essencial (anima) entrou em falência o humanismo ocidental, liberal-capitalista. A assim chamada “ordem baseada em regras” (que sempre mudam conforme as conveniências dos poderosos) se mostrou uma falácia.

Como advertiu uma alta funcionária de organismos da ONU, Chelsea Ngnoc Minh Nguyen: “A violência e a brutalidade dos últimos anos devem nos impulsionar a todos – seja no Sul ou no Norte, no Oriente ou no Ocidente – a realizar uma introspecção honesta e profunda sobre o tipo de mundo em que queremos viver”(IHU 4/10/24).Não vejo outra alternativa, além de devermos mudar de paradigma civilizacional (do domus/dono para o frater irmão e irmã) senão fundarmos um novo humanismo,enraizado na nossa própria natureza.

Nela encontramos as constantes antropológicas, intrínsecas à nossa humanidade: o amor incondicional, o cuidado essencial, a cooperação, a empatia, a compaixão, o reconhecimento do outro, como nosso semelhante, o respeito à natureza e à Terra que tudo nos dão,o encantamento face ao belo e bom e a reverência face ao Mistério.Tais valores seriam o fundamento de um outro mundo possível e necessário.Caso contrário, vamos ao encontro do inimaginável.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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