‘Cemitério de animais’ é achado em
fornecedor da Philip Morris e fábricas da moda
UMA FAZENDA no oeste
da Bahia foi notificada pelas autoridades ambientais pela terceira vez em
setembro por não proteger adequadamente seus canais de irrigação e colocar em
risco a fauna do entorno do Parque Grande Sertão Veredas, berçário de espécies
do Cerrado. Em outubro de 2023, uma espécie de “cemitério de animais”
silvestres foi identificado no local.
O caso ocorre na
Fazenda Karitel, localizada no município de Cocos (BA). Servidores do Instituto
do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) da Bahia encontraram ossadas e
carcaças em decomposição nas margens dos canais da propriedade, que somam cerca
de 40 km de extensão. A informação foi acessada pela Repórter Brasil em um
relatório de fiscalização do órgão ambiental.
Com sede, lobos-guará,
antas, tatus e outros bichos que rodeiam as propriedades vizinhas ao parque
entram nesses “rios artificiais” em busca de água. Por serem revestidos com uma
lona escorregadia, os reservatórios se transformam em armadilhas para os animais,
que ficam presos e acabam morrendo afogados.
A Fazenda Karitel
pertence ao grupo Santa Colomba, que produz grãos, algodão, café e tabaco no
oeste baiano. A empresa foi fiscalizada pelo Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e pelo Inema após a morte de três
lobos-guará em uma fazenda vizinha, entre junho e agosto de 2023.
O grupo Santa Colomba
fornece tabaco para a multinacional Philip Morris e algodão para fábricas no
Paquistão e na Turquia que produzem roupas de marcas como H&M, Ralph Lauren
e PVH, dona da Calvin Klein e Tommy Hilfiger.
Em novembro de 2023, a
Fazenda Karitel foi multada em R$ 200 mil por não realizar “medidas necessárias
para a proteção do meio ambiente na implantação e operação de canais e
reservatórios na atividade de agricultura irrigada”. Em junho deste ano, uma
nova multa diária de R$ 500 foi aplicada por não resolver o problema. A
terceira notificação ocorreu em setembro, dobrando o valor da multa diária.
Questionada pela
Repórter Brasil, a Santa Colomba afirmou que tem as “licenças ambientais
necessárias para a utilização dos canais de transposição para irrigação de suas
áreas produtivas” e que “lamenta qualquer perda à fauna da região”. A empresa
também afirmou que possui uma equipe de veterinários e biólogos que monitoram e
resgatam os animais que circulam em suas propriedades.
O grupo disse ainda
trabalhar em parceria com a Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia
(AIBA), a Associação Baiana dos Produtores de Algodão (ABAPA) e o Inema “na
construção de alternativas que auxiliem para a manutenção do equilíbrio
ambiental em toda a região”. Confira a manifestação completa aqui.
Rodrigo Gerhardt,
gerente de Vida Silvestre da organização Proteção Animal Mundial, avalia que o
agronegócio tem produzido uma série de impactos à fauna. O primeiro deles,
afirma, é o desmatamento, que é possível de ser monitorado via satélite. Outros
problemas, no entanto, passam à margem do escrutínio dos órgãos ambientais.
“Animais intoxicados por agrotóxicos ou mesmo afogados em canais de irrigação
dependem de uma fiscalização muito no local, e isso é muito insuficiente”,
avalia.
• Fornecedora da Philip Morris
Quase metade (49%) das
receitas líquidas da Santa Colomba de 2023 correspondeu à produção de tabaco,
de acordo com o relatório de demonstrações financeiras da companhia, acessado
pela Repórter Brasil. Segundo o documento, o grupo tem contrato de exclusividade
para fornecer para Philip Morris, dona das marcas de cigarro Marlboro e
L&M.
Questionada sobre os
animais que estariam morrendo por falta de segurança em canais de irrigação do
seu fornecedor, a Philip Morris afirmou que entrou em contato com a Santa
Colomba “para buscar soluções imediatas” assim que soube do caso. A companhia
de tabaco disse que foi informada pela Santa Colomba de que o grupo está em
contato com os órgãos ambientais para “entender as providências definitivas”, e
afirmou que irá acompanhar as medidas adotadas.
• Algodão usado por fábricas de marcas
fast fashion
Ainda segundo o
relatório de demonstrações financeiras da Santa Colomba, outra porção relevante
(32,5%) das receitas líquidas em 2023 é proveniente da produção de algodão. A
empresa é certificada pela Better Cotton Iniciative, principal programa de
sustentabilidade do setor no mundo.
No Brasil, os
produtores de algodão que seguem o Programa Algodão Brasileiro Responsável
(ABR), da Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa), podem
vender com o selo Better Cotton. Segundo a Abrapa, o grupo Santa Colomba tem
ambos os selos desde a safra 2018/2019.
De acordo com dados
alfandegários acessados pela Repórter Brasil, a Santa Colomba forneceu algodão
certificado para uma fábrica da Soorty Enterprises, do Paquistão, em julho
deste ano. A Soorty está na lista de fornecedores da marca de roupas H&M,
divulgada pela empresa em seu site.
Consultada sobre o
caso envolvendo um fornecedor de sua cadeia produtiva, a H&M afirmou que
“trata com muita seriedade” qualquer possível violação de seus requisitos e que
os seus fornecedores contam com o selo Better Cotton. “Atualmente, o sistema de
avaliação inclui referências à proteção da vida selvagem e [define] que os
produtores [de algodão] precisam ter conhecimento dos animais que circulam em
seus campos e adotar medidas para não afetá-los negativamente”, diz nota da
empresa. A companhia disse ainda que comunicou suas preocupações à
certificadora Better Cotton.
A Better Cotton
afirmou que notificou formalmente a Abrapa ao descobrir o caso, “permitindo que
eles realizem uma investigação minuciosa e preparem um relatório com suas
conclusões”. A certificadora disse ainda que os produtores que usam seu selo
“precisam ter conhecimento dos animais que circulam em seus campos e
implementar medidas para não afetá-los negativamente”.
O posicionamento da
H&M e da Better Cotton Iniciative pode ser lido, na íntegra, aqui.
Dados alfandegários
acessados pela reportagem também indicam o fornecimento, durante o ano de 2023,
de algodão do grupo Santa Colomba para a Crescent Textile Mills, no Paquistão,
e para uma unidade do grupo Kipas Holding na Turquia.
A paquistanesa
Crescent está na lista de fornecedores divulgada pela Ralph Lauren. Já a Kipas
Holding figura na lista de fornecedores da PVH, dona da Calvin Klein e Tommy
Hilfiger. Outra empresa do grupo Kipas, a Kipas Pazarlama Ve Ticaret A.S.,
também é mencionada na listagem da H&M.
A Repórter Brasil não
obteve retorno das fábricas Soorty, Crescent e Kipas, das varejistas Ralph
Lauren e PVH, além da Abrapa, que é responsável pelo selo ABR, usado como
parâmetro para a certificadora Better Cotton. O espaço segue aberto para
futuras manifestações.
“A responsabilidade da
cadeia com a proteção ambiental e animal tem que ser total. Da mesma forma que
não queremos consumir nenhuma marca oriunda de trabalho escravo, que causa
desmatamento, também não queremos marcas que estejam relacionadas à mortandade
de animais”, opina Rodrigo Gerhardt, da organização Proteção Animal Mundial.
• Lobos-guará se afogam em fazenda apoiada
pelo BNDES e governo cobra providências
TRÊS LOBOS-GUARÁ
morreram afogados em canais de irrigação da Fazenda Alto Jaborandi, propriedade
destinada ao cultivo de grãos no oeste da Bahia. Revestidos com uma lona
escorregadia, esses “rios artificiais” não tinham, segundo o Instituto do Meio
Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema), proteção adequada para evitar a
entrada dos animais.
O órgão estadual
multou a fazenda e cobra a adoção de medidas protetivas adequadas. O afogamento
de animais selvagens nestes canais tornou-se um problema regional que preocupa
ambientalistas e autoridades.
O dono da propriedade
é o fazendeiro José Fava Neto, diretor regional da Associação dos Produtores de
Soja (Aprosoja) em Goiás. Os animais foram encontrados entre junho e agosto de
2023.
Em 2020, ele obteve
empréstimos do Programa de Financiamento à Agricultura Irrigada (Proirriga)
para obras de irrigação. Os financiamentos foram feitos com recursos do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e intermediados pelo
banco holandês Rabobank, que se diz “o maior banco de investimentos no
agronegócio e alimentação do mundo”.
A Fazenda Alto
Jaborandi está no entorno do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, considerado
um berçário de espécies ameaçadas. Uma delas é o lobo-guará, classificada como
vulnerável à extinção.
“Essas espécies não
ficam só na área protegida. Elas vão se reproduzir e colonizar áreas adjacentes”, explica Rogério Cunha de
Paula, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa de Conservação de Mamíferos
Carnívoros (Cenap) do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio).
O parque é rodeado por
fazendas de soja, algodão, sorgo, milho e tabaco. Por estarem em uma região de
escassez hídrica, as propriedades constroem grandes reservatórios e canais de
água para irrigar seus cultivos, que podem ter de 15 a 20 km de extensão.
Os canais de irrigação
são revestidos com uma lona que não tem aderência (veja fotos abaixo). Imagens
registradas na Fazenda Alto Jaborandi mostram que as bordas dos canais estavam
arranhadas, o que indica que os animais tentaram fugir antes do afogamento.
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Família afogada nos canais de irrigação
Formoso, um lobo-guará
de um ano, foi o primeiro a ser encontrado afogado. Seu corpo foi encontrado
boiando em um canal da fazenda em 3 de junho de 2023. Três semanas depois, em
26 de junho, foi identificado no local o corpo de sua mãe, a loba Nhorinhá, já
em estágio avançado de decomposição. Pouco mais de um mês depois, em 6 de
agosto, foi a vez do corpo de Urucuia, outro filhote da Nhorinhá, também ser
encontrado na fazenda.
Os três lobos-guará
eram monitorados com um colar que enviava sua localização ao Onçafari, uma
organização não governamental que atua com a conservação de espécies ameaçadas
e com ecoturismo. Foi isso o que permitiu a descoberta dos óbitos.
“Imagine a quantidade
de outros animais que morrem nessas estruturas e não temos conhecimento, porque
depende do reporte da própria fazenda ou de uma fiscalização mais frequente,
que sabemos que não acontece”, afirma Rodrigo Gerhardt, gerente de Campanhas de
Vida Silvestre da organização Proteção Animal Mundial.
A Repórter Brasil
tentou contato com José Fava Neto para comentar o caso, mas não obteve retorno
até a publicação desta reportagem. O espaço segue disponível para futuras
manifestações.
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Perigo para toda fauna da região
Dias após a
constatação das mortes, o Onçafari apresentou o caso ao ICMBio e ao Inema,
atendendo assim às exigências da licença do projeto de pesquisa e monitoramento
dos lobos. Entre agosto e outubro de 2023, os dois órgãos ambientais
inspecionaram os canais da Fazenda Alto Jaborandi e de outras três propriedades
vizinhas.
Segundo o ICMBio e o
Inema, alguns trechos dos canais não possuíam proteção adequada – como, por
exemplo, cercas danificadas ou muito baixas no entorno – e representavam risco
para a vida dos animais da região.
“Durante as vistorias
nos locais inúmeras carcaças de animais da fauna silvestre local foram
encontradas, inclusive com sinais de óbito recentes. Também foram encontradas
ossadas queimadas, provavelmente para diminuir o odor e evitar a atração de
outros animais e contaminação”, diz nota técnica do Inema, acessada pela
Repórter Brasil.
Carcaças também foram
identificadas na Fazenda Karitel, vizinha à Fazenda Alto Jaborandi. A
propriedade pertence ao grupo Santa Colomba, produtor de grãos, café, algodão e
tabaco no oeste baiano.
Em novembro de 2023, o
Inema aplicou multas de R$ 200 mil a ambas as fazendas. José Fava Neto pede a
suspensão da multa e afirmou em defesa da autuação apresentada ao órgão
ambiental que, durante a vistoria
realizada no dia 8 de agosto de 2023, “em nenhum momento da fiscalização foram
encontrados lobos-guará em nossos canais ou em nossos reservatórios”.
Mesmo assim, o Inema
manteve a autuação destacando que o motivo, para além das mortes, era a não
adoção de medidas protetivas adequadas no local dos óbitos.
Questionada pela
Repórter Brasil, a Santa Colomba afirmou que possui as “licenças ambientais
necessárias para a utilização dos canais de transposição para irrigação de suas
áreas produtivas” e que “lamenta qualquer perda à fauna da região”. O grupo
também declarou que possui equipe de veterinários e biólogos que monitoram e
resgatam os animais que circulam em suas propriedades. Confira a manifestação
completa aqui.
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Financiamento para obras de irrigação
Em 2020, Fava Neto
obteve dois empréstimos que somam pouco mais de R$4,9 milhões do Proirriga para
obras de irrigação. Os financiamentos seguem ativos com data de amortização até
2030.
Os empréstimos feitos
pelo fazendeiro com recursos do BNDES são da modalidade “indireta automática”.
Em operações deste tipo, a responsabilidade sobre a análise da regularidade
ambiental do cliente é da instituição bancária que faz a intermediação do negócio
– neste caso, o Rabobank.
“Muito se fala em
mapear toda cadeia, mas esquecemos que tem um banco financiando por trás. Se o
banco não estivesse financiando, possivelmente essa atividade não estaria
acontecendo”, comenta Júlia Dias, coordenadora do Programa de Consumo
Responsável e Sustentável do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec).
O Idec integra uma
coalizão que lançou o Guia dos Bancos Responsáveis (GBR), que analisa as
políticas socioambientais das instituições financeiras. “Se o banco está
concedendo crédito para uma empresa agropecuária que está violando direitos,
entendemos que ele tem responsabilidade objetiva e solidária sobre esse
empréstimo e sobre aquela violação”, avalia Dias.
O BNDES afirmou que,
até o momento, não foi notificado pelo agente financeiro sobre irregularidades
nas operações de crédito identificadas pela reportagem. A instituição disse
ainda que, com base nos fatos apresentados pela Repórter Brasil, vai solicitar
esclarecimentos ao Rabobank e que “no caso de eventual descumprimento dos
normativos e legislação, caberá a aplicação de penalidades à instituição
financeira”.
Procurado pela
reportagem, o Rabobank afirmou que não comenta casos específicos e que o
processo de análise de informações relacionadas a clientes, potenciais clientes
ou fornecedores “é robusto e está de acordo com a legislação brasileira”. A
instituição não respondeu se analisa o potencial impacto negativo para a fauna
dos empreendimentos financiados.
O grupo Santa Colomba
também obteve dois financiamentos de R$ 93,2 milhões do Fundo Constitucional de
Financiamento do Nordeste (FNE) para obras de irrigação em 2023. O Banco do
Nordeste, responsável pela concessão do crédito, declarou que “preza pela transparência
e responsabilidade socioambiental em todas as suas operações” e que os
financiamentos concedidos pela instituição incluem a análise da conformidade do
empreendimento com as normas ambientais.
Fonte: Repórter Brasil
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