quinta-feira, 10 de outubro de 2024

‘Cemitério de animais’ é achado em fornecedor da Philip Morris e fábricas da moda

UMA FAZENDA no oeste da Bahia foi notificada pelas autoridades ambientais pela terceira vez em setembro por não proteger adequadamente seus canais de irrigação e colocar em risco a fauna do entorno do Parque Grande Sertão Veredas, berçário de espécies do Cerrado. Em outubro de 2023, uma espécie de “cemitério de animais” silvestres foi identificado no local.

O caso ocorre na Fazenda Karitel, localizada no município de Cocos (BA). Servidores do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) da Bahia encontraram ossadas e carcaças em decomposição nas margens dos canais da propriedade, que somam cerca de 40 km de extensão. A informação foi acessada pela Repórter Brasil em um relatório de fiscalização do órgão ambiental.

Com sede, lobos-guará, antas, tatus e outros bichos que rodeiam as propriedades vizinhas ao parque entram nesses “rios artificiais” em busca de água. Por serem revestidos com uma lona escorregadia, os reservatórios se transformam em armadilhas para os animais, que ficam presos e acabam morrendo afogados.

A Fazenda Karitel pertence ao grupo Santa Colomba, que produz grãos, algodão, café e tabaco no oeste baiano. A empresa foi fiscalizada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e pelo Inema após a morte de três lobos-guará em uma fazenda vizinha, entre junho e agosto de 2023.

O grupo Santa Colomba fornece tabaco para a multinacional Philip Morris e algodão para fábricas no Paquistão e na Turquia que produzem roupas de marcas como H&M, Ralph Lauren e PVH, dona da Calvin Klein e Tommy Hilfiger.

Em novembro de 2023, a Fazenda Karitel foi multada em R$ 200 mil por não realizar “medidas necessárias para a proteção do meio ambiente na implantação e operação de canais e reservatórios na atividade de agricultura irrigada”. Em junho deste ano, uma nova multa diária de R$ 500 foi aplicada por não resolver o problema. A terceira notificação ocorreu em setembro, dobrando o valor da multa diária.

Questionada pela Repórter Brasil, a Santa Colomba afirmou que tem as “licenças ambientais necessárias para a utilização dos canais de transposição para irrigação de suas áreas produtivas” e que “lamenta qualquer perda à fauna da região”. A empresa também afirmou que possui uma equipe de veterinários e biólogos que monitoram e resgatam os animais que circulam em suas propriedades.

O grupo disse ainda trabalhar em parceria com a Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia (AIBA), a Associação Baiana dos Produtores de Algodão (ABAPA) e o Inema “na construção de alternativas que auxiliem para a manutenção do equilíbrio ambiental em toda a região”. Confira a manifestação completa aqui.

Rodrigo Gerhardt, gerente de Vida Silvestre da organização Proteção Animal Mundial, avalia que o agronegócio tem produzido uma série de impactos à fauna. O primeiro deles, afirma, é o desmatamento, que é possível de ser monitorado via satélite. Outros problemas, no entanto, passam à margem do escrutínio dos órgãos ambientais. “Animais intoxicados por agrotóxicos ou mesmo afogados em canais de irrigação dependem de uma fiscalização muito no local, e isso é muito insuficiente”, avalia.

•        Fornecedora da Philip Morris

Quase metade (49%) das receitas líquidas da Santa Colomba de 2023 correspondeu à produção de tabaco, de acordo com o relatório de demonstrações financeiras da companhia, acessado pela Repórter Brasil. Segundo o documento, o grupo tem contrato de exclusividade para fornecer para Philip Morris, dona das marcas de cigarro Marlboro e L&M.

Questionada sobre os animais que estariam morrendo por falta de segurança em canais de irrigação do seu fornecedor, a Philip Morris afirmou que entrou em contato com a Santa Colomba “para buscar soluções imediatas” assim que soube do caso. A companhia de tabaco disse que foi informada pela Santa Colomba de que o grupo está em contato com os órgãos ambientais para “entender as providências definitivas”, e afirmou que irá acompanhar as medidas adotadas.

•        Algodão usado por fábricas de marcas fast fashion

Ainda segundo o relatório de demonstrações financeiras da Santa Colomba, outra porção relevante (32,5%) das receitas líquidas em 2023 é proveniente da produção de algodão. A empresa é certificada pela Better Cotton Iniciative, principal programa de sustentabilidade do setor no mundo.

No Brasil, os produtores de algodão que seguem o Programa Algodão Brasileiro Responsável (ABR), da Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa), podem vender com o selo Better Cotton. Segundo a Abrapa, o grupo Santa Colomba tem ambos os selos desde a safra 2018/2019.

De acordo com dados alfandegários acessados pela Repórter Brasil, a Santa Colomba forneceu algodão certificado para uma fábrica da Soorty Enterprises, do Paquistão, em julho deste ano. A Soorty está na lista de fornecedores da marca de roupas H&M, divulgada pela empresa em seu site.

Consultada sobre o caso envolvendo um fornecedor de sua cadeia produtiva, a H&M afirmou que “trata com muita seriedade” qualquer possível violação de seus requisitos e que os seus fornecedores contam com o selo Better Cotton. “Atualmente, o sistema de avaliação inclui referências à proteção da vida selvagem e [define] que os produtores [de algodão] precisam ter conhecimento dos animais que circulam em seus campos e adotar medidas para não afetá-los negativamente”, diz nota da empresa. A companhia disse ainda que comunicou suas preocupações à certificadora Better Cotton.

A Better Cotton afirmou que notificou formalmente a Abrapa ao descobrir o caso, “permitindo que eles realizem uma investigação minuciosa e preparem um relatório com suas conclusões”. A certificadora disse ainda que os produtores que usam seu selo “precisam ter conhecimento dos animais que circulam em seus campos e implementar medidas para não afetá-los negativamente”.

O posicionamento da H&M e da Better Cotton Iniciative pode ser lido, na íntegra, aqui.

Dados alfandegários acessados pela reportagem também indicam o fornecimento, durante o ano de 2023, de algodão do grupo Santa Colomba para a Crescent Textile Mills, no Paquistão, e para uma unidade do grupo Kipas Holding na Turquia.

A paquistanesa Crescent está na lista de fornecedores divulgada pela Ralph Lauren. Já a Kipas Holding figura na lista de fornecedores da PVH, dona da Calvin Klein e Tommy Hilfiger. Outra empresa do grupo Kipas, a Kipas Pazarlama Ve Ticaret A.S., também é mencionada na listagem da H&M.

A Repórter Brasil não obteve retorno das fábricas Soorty, Crescent e Kipas, das varejistas Ralph Lauren e PVH, além da Abrapa, que é responsável pelo selo ABR, usado como parâmetro para a certificadora Better Cotton. O espaço segue aberto para futuras manifestações.

“A responsabilidade da cadeia com a proteção ambiental e animal tem que ser total. Da mesma forma que não queremos consumir nenhuma marca oriunda de trabalho escravo, que causa desmatamento, também não queremos marcas que estejam relacionadas à mortandade de animais”, opina Rodrigo Gerhardt, da organização Proteção Animal Mundial.

 

•        Lobos-guará se afogam em fazenda apoiada pelo BNDES e governo cobra providências

TRÊS LOBOS-GUARÁ morreram afogados em canais de irrigação da Fazenda Alto Jaborandi, propriedade destinada ao cultivo de grãos no oeste da Bahia. Revestidos com uma lona escorregadia, esses “rios artificiais” não tinham, segundo o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema), proteção adequada para evitar a entrada dos animais.

O órgão estadual multou a fazenda e cobra a adoção de medidas protetivas adequadas. O afogamento de animais selvagens nestes canais tornou-se um problema regional que preocupa ambientalistas e autoridades.

O dono da propriedade é o fazendeiro José Fava Neto, diretor regional da Associação dos Produtores de Soja (Aprosoja) em Goiás. Os animais foram encontrados entre junho e agosto de 2023.

Em 2020, ele obteve empréstimos do Programa de Financiamento à Agricultura Irrigada (Proirriga) para obras de irrigação. Os financiamentos foram feitos com recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e intermediados pelo banco holandês Rabobank, que se diz “o maior banco de investimentos no agronegócio e alimentação do mundo”.

A Fazenda Alto Jaborandi está no entorno do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, considerado um berçário de espécies ameaçadas. Uma delas é o lobo-guará, classificada como vulnerável à extinção.

“Essas espécies não ficam só na área protegida. Elas vão se reproduzir e colonizar  áreas adjacentes”, explica Rogério Cunha de Paula, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa de Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap) do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

O parque é rodeado por fazendas de soja, algodão, sorgo, milho e tabaco. Por estarem em uma região de escassez hídrica, as propriedades constroem grandes reservatórios e canais de água para irrigar seus cultivos, que podem ter de 15 a 20 km de extensão.

Os canais de irrigação são revestidos com uma lona que não tem aderência (veja fotos abaixo). Imagens registradas na Fazenda Alto Jaborandi mostram que as bordas dos canais estavam arranhadas, o que indica que os animais tentaram fugir antes do afogamento.

<><> Família afogada nos canais de irrigação

Formoso, um lobo-guará de um ano, foi o primeiro a ser encontrado afogado. Seu corpo foi encontrado boiando em um canal da fazenda em 3 de junho de 2023. Três semanas depois, em 26 de junho, foi identificado no local o corpo de sua mãe, a loba Nhorinhá, já em estágio avançado de decomposição. Pouco mais de um mês depois, em 6 de agosto, foi a vez do corpo de Urucuia, outro filhote da Nhorinhá, também ser encontrado na fazenda.

Os três lobos-guará eram monitorados com um colar que enviava sua localização ao Onçafari, uma organização não governamental que atua com a conservação de espécies ameaçadas e com ecoturismo. Foi isso o que permitiu a descoberta dos óbitos.

“Imagine a quantidade de outros animais que morrem nessas estruturas e não temos conhecimento, porque depende do reporte da própria fazenda ou de uma fiscalização mais frequente, que sabemos que não acontece”, afirma Rodrigo Gerhardt, gerente de Campanhas de Vida Silvestre da organização Proteção Animal Mundial.

A Repórter Brasil tentou contato com José Fava Neto para comentar o caso, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem. O espaço segue disponível para futuras manifestações.

<><> Perigo para toda fauna da região

Dias após a constatação das mortes, o Onçafari apresentou o caso ao ICMBio e ao Inema, atendendo assim às exigências da licença do projeto de pesquisa e monitoramento dos lobos. Entre agosto e outubro de 2023, os dois órgãos ambientais inspecionaram os canais da Fazenda Alto Jaborandi e de outras três propriedades vizinhas.

Segundo o ICMBio e o Inema, alguns trechos dos canais não possuíam proteção adequada – como, por exemplo, cercas danificadas ou muito baixas no entorno – e representavam risco para a vida dos animais da região.

“Durante as vistorias nos locais inúmeras carcaças de animais da fauna silvestre local foram encontradas, inclusive com sinais de óbito recentes. Também foram encontradas ossadas queimadas, provavelmente para diminuir o odor e evitar a atração de outros animais e contaminação”, diz nota técnica do Inema, acessada pela Repórter Brasil.

Carcaças também foram identificadas na Fazenda Karitel, vizinha à Fazenda Alto Jaborandi. A propriedade pertence ao grupo Santa Colomba, produtor de grãos, café, algodão e tabaco no oeste baiano.

Em novembro de 2023, o Inema aplicou multas de R$ 200 mil a ambas as fazendas. José Fava Neto pede a suspensão da multa e afirmou em defesa da autuação apresentada ao órgão ambiental  que, durante a vistoria realizada no dia 8 de agosto de 2023, “em nenhum momento da fiscalização foram encontrados lobos-guará em nossos canais ou em nossos reservatórios”.

Mesmo assim, o Inema manteve a autuação destacando que o motivo, para além das mortes, era a não adoção de medidas protetivas adequadas no local dos óbitos.

Questionada pela Repórter Brasil, a Santa Colomba afirmou que possui as “licenças ambientais necessárias para a utilização dos canais de transposição para irrigação de suas áreas produtivas” e que “lamenta qualquer perda à fauna da região”. O grupo também declarou que possui equipe de veterinários e biólogos que monitoram e resgatam os animais que circulam em suas propriedades. Confira a manifestação completa aqui.

<><> Financiamento para obras de irrigação

Em 2020, Fava Neto obteve dois empréstimos que somam pouco mais de R$4,9 milhões do Proirriga para obras de irrigação. Os financiamentos seguem ativos com data de amortização até 2030. 

Os empréstimos feitos pelo fazendeiro com recursos do BNDES são da modalidade “indireta automática”. Em operações deste tipo, a responsabilidade sobre a análise da regularidade ambiental do cliente é da instituição bancária que faz a intermediação do negócio – neste caso, o Rabobank.

“Muito se fala em mapear toda cadeia, mas esquecemos que tem um banco financiando por trás. Se o banco não estivesse financiando, possivelmente essa atividade não estaria acontecendo”, comenta Júlia Dias, coordenadora do Programa de Consumo Responsável e Sustentável do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec).

O Idec integra uma coalizão que lançou o Guia dos Bancos Responsáveis (GBR), que analisa as políticas socioambientais das instituições financeiras. “Se o banco está concedendo crédito para uma empresa agropecuária que está violando direitos, entendemos que ele tem responsabilidade objetiva e solidária sobre esse empréstimo e sobre aquela violação”, avalia Dias.

O BNDES afirmou que, até o momento, não foi notificado pelo agente financeiro sobre irregularidades nas operações de crédito identificadas pela reportagem. A instituição disse ainda que, com base nos fatos apresentados pela Repórter Brasil, vai solicitar esclarecimentos ao Rabobank e que “no caso de eventual descumprimento dos normativos e legislação, caberá a aplicação de penalidades à instituição financeira”.

Procurado pela reportagem, o Rabobank afirmou que não comenta casos específicos e que o processo de análise de informações relacionadas a clientes, potenciais clientes ou fornecedores “é robusto e está de acordo com a legislação brasileira”. A instituição não respondeu se analisa o potencial impacto negativo para a fauna dos empreendimentos financiados.

O grupo Santa Colomba também obteve dois financiamentos de R$ 93,2 milhões do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE) para obras de irrigação em 2023. O Banco do Nordeste, responsável pela concessão do crédito, declarou que “preza pela transparência e responsabilidade socioambiental em todas as suas operações” e que os financiamentos concedidos pela instituição incluem a análise da conformidade do empreendimento com as normas ambientais.

 

Fonte: Repórter Brasil

 

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