quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Leonardo, cantor sertanejo, entra para a ‘lista suja’ do trabalho escravo

O CANTOR SERTANEJO LEONARDO é um dos 176 nomes incluídos na nova atualização da chamada ‘lista suja’ do trabalho escravo. Divulgado nesta segunda-feira (7), o cadastro mantido pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) torna públicos os dados de pessoas físicas e jurídicas responsabilizadas pelo crime, após operações de resgate de trabalhadores feitas pelo governo federal. 

A entrada de Leonardo na lista se deve a uma fiscalização realizada em novembro de 2023 nas fazendas Talismã e Lakanka, no município de Jussara, interior de Goiás. Na ocasião, foram encontrados seis pessoas, incluindo um adolescente de 17 anos, em condições degradantes, um dos elementos que configura a escravidão contemporânea no Brasil.

Os trabalhadores dormiam em uma casa abandonada, onde não havia água potável, banheiro e camas – o espaço para deitar era improvisado com tábuas de madeira e galões de agrotóxicos. O local também tinha sido tomado por insetos e morcegos, e exalava um “odor forte e fétido”, descreve o relatório de fiscalização acessado pela Repórter Brasil.

No final de julho, o cantor – batizado como Emival Eterno da Costa – comemorou seu aniversário, em festa luxuosa, na Fazenda Talismã. Avaliada em R$ 60 milhões, a fazenda conta com uma mansão, além de piscina, quadras esportivas e quartos estilo bangalô.

A reportagem entrou em contato com Paulo Vaz, advogado de Leonardo. Ele afirmou que o caso aconteceu em uma área arrendada na Lakanka, contígua à Talismã, e que a responsabilidade pela contratação dos empregados era de um terceiro [o arrendatário]. “Tratava-se de uma área arrendada, todas essas pessoas tiveram as indenizações pagas e os processos se encontram arquivados”, disse à Repórter Brasil.

Criada em novembro de 2003, a “lista suja” é atualizada semestralmente pelo governo federal. Os nomes dos empregadores são incluídos após os autuados exercerem o direito de defesa em duas instâncias na esfera administrativa e lá permanecem por dois anos.

O cadastro é considerado pelas Nações Unidas um dos mais relevantes instrumentos de combate ao trabalho escravo no mundo por garantir transparência. Com a nova atualização, a lista chega a um total de 727 patrões responsabilizados.

<><> Entenda o caso

O nome da Fazenda Talismã é uma homenagem a um dos maiores sucessos da dupla Leandro & Leonardo, de 1990. Essa não é a única propriedade do cantor e empresário, que atua no ramo da pecuária e recentemente tem apostado na soja.

O local onde os trabalhadores foram resgatados ficava na Lakanka, vizinha à Talismã, e também pertencente a Leonardo. Em 2022, o terreno foi arrendado para um terceiro, encarregado do plantio de grãos. Mas, segundo o relatório de fiscalização, a limpeza e preparação do local ainda seriam responsabilidades do cantor, motivo que levou Leonardo a ser identificado como empregador.

“Não tem chuveiro, não tem pia e o local está extremamente sujo, com muitas fezes de morcego”, disse o adolescente aos auditores, durante a fiscalização. Segundo o depoimento de outros trabalhadores, formigas e cupins “andavam por cima” de seus corpos quando eles deitavam para dormir. Outro empregado relatou ter adoecido depois de a chuva molhar sua cama – o telhado estava sem manutenção e as telhas, deslocadas.

Além das seis pessoas resgatadas, outras 12 foram encontradas trabalhando sem carteira assinada “na mais completa informalidade”, diz o documento. A operação contou com auditores do Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho, Defensoria Pública da União, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal.

Os empregados acordavam antes das 6h da manhã e às 7h já estavam arrancando pedras, raízes e tocos de árvores sem qualquer equipamento de proteção. As refeições eram feitas embaixo de uma árvore e a água era armazenada em quatro garrafas térmicas.

Metade dos empregados estava trabalhando há 12 dias sem descanso. “Trabalhava de domingo a domingo”, conta o adolescente, que chegou na fazenda junto com seu irmão e primos para atuar na “catação de raízes”.

Os fiscais alertam que a atividade pode ser enquadrada na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil, probida para menores de 18 anos. “As tarefas típicas do preparo do terreno para o cultivo de soja devem ser consideradas extremamente danosas e prejudiciais”, diz o relatório.

O trabalhador que adoeceu após a chuva no alojamento disse que sabe que a propriedade “é do cantor Leonardo”.  Em depoimento aos fiscais, o gerente da fazenda afirmou que  “o sr. Leonardo não comparece aos alojamentos dos trabalhadores, mas vem à sede da fazenda e depois vem pescar”.

Segundo ele, “quem toma conta de tudo” é o irmão do cantor, Robson Alessandro Costa, que  tentou uma vaga na Câmara de Vereadores em Goiânia (PSDB), mas ficou como suplente. “Nesse mesmo dia em que a fiscalização do trabalho chegou à fazenda, [Alessandro] perguntou sobre o término do serviço de catar as raízes”, disse o gerente.

•        Sobre a Lista Suja

Prevista em portaria interministerial, a “lista suja” inclui nomes de responsabilizados em fiscalização do trabalho escravo, após os empregadores se defenderem administrativamente em primeira e segunda instâncias. Uma vez incluídos, os empregadores – pessoas físicas e jurídicas – permanecem listados por dois anos.

Apesar de a portaria que prevê a lista não obrigar a um bloqueio comercial ou financeiro, ela tem sido usada por empresas brasileiras e estrangeiras para seu gerenciamento de risco. Isso tornou o instrumento um exemplo global no combate ao trabalho escravo, reconhecido pelas Nações Unidas.

Em setembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a constitucionalidade da “lista suja”, por nove votos a zero, ao analisar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 509, ajuizada pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc).

A ação sustentava que o cadastro punia ilegalmente os empregadores flagrados por essa prática ao divulgar os nomes, o que só poderia ser feito por lei. A corte afastou essa hipótese, afirmando que o instrumento garante transparência à sociedade. E que a portaria interministerial que mantém a lista não representa sanção – que, se tomada, é por decisão da sociedade civil e do setor empresarial.

O relator destacou que um nome só vai para a relação após um processo administrativo com direito a ampla defesa.

•        Trabalho escravo hoje no Brasil

Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, em maio de 1995, mais de 63,5 mil trabalhadores foram resgatados. Participam desses grupos, além da Inspeção do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Defensoria Pública da União.

•        Camas improvisadas, sem banheiros, e infestação de morcegos: como eram alojamentos em fazenda de Leonardo

O cantor Leonardo foi incluído na ‘lista suja’ do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), divulgada nessa segunda (7), após uma fiscalização resgatar seis trabalhadores de fazenda em condições de trabalho semelhantes à escravidão em Jussara, noroeste de Goiás. No relatório, ao qual o g1 teve acesso, fiscais descreveram os alojamentos onde os funcionários dormiam como “precários”, sem banheiros, com camas improvisadas, infestação de morcegos e fezes.

A fiscalização ocorreu em duas fazendas, que ficam próximas uma da outra: a Lakanka, e a Talismã, que é avaliada em R$ 60 milhões. A segunda é citada porque, apesar dos trabalhadores resgatados estarem na Fazenda Lakanka, as duas ficam em área contígua, e fazem parte do mesmo conjunto de operações agrícolas.

O cantor e sua defesa dizem que o caso se refere a uma parte da Fazenda Lakanka que está arrendada para outra pessoa para o plantio de soja e que, portanto, os funcionários dessa área não são de responsabilidade direta de Leonardo. Dizem também que o cantor não tinha conhecimento das práticas de trabalho escravo.

O g1 não encontrou o arrendatário da Fazenda Lakanka para se manifestar sobre o caso até a última atualização da reportagem.

A ação fiscal aconteceu em novembro de 2023, nas fazendas Lakanka e Talismã, em Jussara. Foram identificados 18 trabalhadores, mas somente seis estavam em condições análogas à escravidão, incluindo um adolescente de 17 anos. O nome da fazenda Talismã homenageia um dos maiores sucessos da dupla Leandro & Leonardo, de 1990.

Os trabalhadores catavam raízes na Fazenda Lakanka, que, de fato, está arrendada para outra pessoa, que não Leonardo. Mas o relatório explica que todos os trabalhadores prestavam serviço para Leonardo, mesmo que de forma indireta e, por isso, ele foi responsabilizado.

Os seis funcionários resgatados dormiam em uma casa abandonada, localizada a 2km da sede da Fazenda Lakanka. Segundo os fiscais, local era feito de alvenaria, coberto com telhas de barro sobre uma estrutura de madeira e forro de PVC. Mas estava sem manutenção e com telhas deslocadas, permitindo a passagem de água de chuva, que, em algumas ocasiões, molhou pertences dos trabalhadores.

Segundo o documento, o dormitório foi improvisado pelos empregados, que usaram tábuas de madeira encontradas jogadas pelos arredores para usarem como suporte para os colchões.

“Os empregados fizeram uso de objetos abandonados que encontraram para improvisar tarimbas, como tábuas de madeira, portas velhas, galões de agrotóxicos, tijolos e tocos e colocaram sobre estas colchões velhos, pedaços de espuma e cobertores que trouxeram”, destaca o documento.

Fiscais afirmam que, no momento da inspeção, dois trabalhadores irmãos dormiam juntos num colchão de casal colocado em cima de uma tábua improvisada. Em outras três tarimbas improvisadas, dormiam outros três empregados; e, em uma rede adquirida com recursos próprios, um trabalhador.

A equipe de fiscalização verificou que existia uma infestação de morcegos, com fezes dos animais em todos os cômodos, além da existência de muitas formigas no local e histórico de presença de outros animais, como cobras e escorpiões. Inclusive, no dia da inspeção, havia uma cobra morta perto do alojamento.

<><> Sem banheiro e chuveiro

O alojamento tinha, originalmente, um banheiro, mas ele estava totalmente inoperante, sem água e com indícios de abandono, havendo fezes de morcegos acumuladas e insetos. Por isso, os empregados usavam árvores próximas para fazerem xixi e cocô, sendo encontrado grande acúmulo de papel higiênico, além de fezes concentradas em dois locais, abaixo de uma árvore nos fundos da casa e na área de bambuzal, um pouco mais longe da casa abandonada.

Como não havia chuveiros ou qualquer local para tomar banho, os empregados improvisaram uma mangueira preta amarrada à estrutura de madeira, a qual foi ligada a uma bomba de água submersível dentro de um poço, com acionamento por um disjuntor fora de caixa e com fuga de corrente.

Segundo o relatório, os empregados explicaram que tomavam choques ao acionarem o disjuntor após o banho para desligar a bomba, quando ainda estavam molhados. Como não havia local para lavar as roupas, já que o único acesso à água no alojamento era esta mangueira preta, os empregados, além de se banhar no local, também lavavam suas roupas ali.

<><> Sem água potável

A única água disponível era essa captada no poço. Ocorre que o poço estava também desprovido de qualquer manutenção, segundo os fiscais, com uma tampa quebrada, que permitia a entrada de animais, como roedores e aves, que poderiam se afogar e ficar apodrecendo no interior, gerando contaminação da água.

Para não passarem sede, os empregados se deslocavam até a sede da Fazenda Lakanka, situada a aproximadamente 2km de distância do alojamento, munidos de garrafas de água emprestadas pelo arrendatário daquela fazenda.

Segundo o relatório, o deslocamento era feito a pé, no trator ou no veículo de um dos empregados, quando havia gasolina neste, onde enchiam as quatro garrafas térmicas de que dispunham com capacidade de cinco litros cada.

Na sede da Fazenda Lakanka, em cômodo do barracão onde funcionava uma oficina, havia um bebedouro refrigerado com três torneiras, onde os empregados enchiam as garrafas. Destaca-se que esta água também não recebia tratamento.

<><> Os outros 12 trabalhadores

Os outros 12 trabalhadores estavam em atividades diversas, como preparo do solo para o plantio de soja, manutenção de cercas, e outras funções.

Segundo o documento, apesar de também trabalharem de maneira informal, sem registro e direitos trabalhistas garantidos, as condições de vida e trabalho deles não foram consideradas tão degradantes a ponto de configurar uma situação de trabalho análogo ao de escravo.

<><> Por que a Fazenda Talismã consta no relatório?

A Fazenda Talismã, avaliada em R$ 60 milhões, é citada porque, apesar dos trabalhadores resgatados estarem na Fazenda Lakanka, as duas fazendas estão fisicamente próximas e fazem parte do mesmo conjunto de operações agrícolas.

Além disso, o relatório explica que alguns dos trabalhadores encontrados na Fazenda Talismã estavam alojados em melhores condições do que os que foram resgatados da Fazenda Lakanka. Esse fato justifica a menção à Talismã, pois ela era parte da operação e empregava trabalhadores.

Outra razão de ambas as fazendas terem sido citadas pela fiscalização é que as duas estão sob o controle de Emival Eterno da Costa - nome verdadeiro do cantor Leonardo.

<><> Defesa diz que cantor ‘não era responsável’ por trabalhadores

Pedro Vaz, advogado do cantor Leonardo, falou ao g1 que a inclusão do nome do artista na ‘lista suja’, na segunda-feira (7), causou ‘estranheza’. Isso porque, desde 22 de agosto de 2022, a área em questão está arrendada para outra pessoa realizar o cultivo de soja, não sendo, portanto, de responsabilidade de Leonardo a gestão dos funcionários envolvidos.

Segundo a defesa do cantor, quando o Ministério Público do Trabalho se manifestou, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) foi firmado, e "todos os problemas foram resolvidos", mesmo sem serem de responsabilidade direta de Leonardo, dado o arrendamento da fazenda.

Também de acordo com o advogado, as indenizações devidas foram pagas, e o acordo proposto pelo Ministério Público foi aceito, resultando no arquivamento dos processos.

“Como a matrícula estava em nome do Leonardo, o Ministério Público do Trabalho propôs a ação. Na audiência, a gente apresentou o contrato de arrendamento e aí tudo foi esclarecido, mas pra que evitasse qualquer tipo de problema, nós pagamos todas as verbas indenizatórias naquele momento mesmo e tudo ficou sanado”, explicou Vaz.

Em nota ao g1, o Ministério Público do Trabalho confirmou que o inquérito civil foi aberto em 2023, correu em sigilo, e foi arquivado em abril de 2024. Explicou também que a inclusão na lista suja é uma atribuição do Ministério do Trabalho e Emprego.

A defesa de Leonardo informou que "estão sendo tomadas as medidas necessárias para remover o nome de Leonardo da lista mencionada".

O Ministério do Trabalho e Emprego explicou que a ‘lista suja’ é atualizada semestralmente e visa dar transparência aos atos administrativos decorrentes das ações fiscais de combate ao trabalho análogo à escravidão. A inclusão de pessoas físicas ou jurídicas na lista ocorre somente após a conclusão do processo administrativo que julga o auto específico de trabalho análogo à escravidão. O nome de cada empregador permanecerá publicado por um período de dois anos.

'Jamais faria isso'

No mesmo dia em que a lista foi atualizada com seu nome, Leonardo usou as redes sociais para se manifestar sobre o assunto. O cantor lamentou a situação dizendo que não sabia do que estava acontecendo, já que arrendou a terra. Ele também reforçou que 'jamais faria isso'.

“Surgiu um funcionário lá nessa fazenda que eu arrendei, que eu não conheço, nunca vi falar, nunca vi, e de repente eu fui visitado pelo Ministério Público do Trabalho, e foi lavrada uma multa pra mim, pra mim que sou o proprietário da fazenda”, afirmou.

“Gente, eu já plantei tomate, eu sei como é que é. A vida é difícil lá. Eu, do meu coração, jamais, jamais faria isso. Então, eu acho que há um equívoco muito grande sobre a minha pessoa. Eu não me misturo, eu não me misturo nessa lista aí que eles fizeram aí de trabalho escravo”, lamentou.

 

Fonte: Repórter Brasil/g1

 

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