Fazendeiros mudam área declarada de
propriedades e ‘apagam’ registros de desmate
PROPRIETÁRIOS DE
TERRAS na Amazônia Legal têm alterado o Cadastro Ambiental Rural (CAR) de suas
propriedades e, como consequência, eliminado do perímetro declarado registros
de infrações ambientais como embargos do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente
e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e sobreposições com Terras Indígenas. É
o que revela um estudo da organização Center for Climate Crime Analysis (CCCA)
lançado hoje.
Ao “apagar” no papel
as irregularidades ambientais de suas fazendas, os proprietários evitam também
restrições para a obtenção de financiamentos com recursos públicos, já que as
regras do Banco Central vedam a concessão de crédito para propriedades com áreas
embargadas ou sobrepostas a Unidades de Conservação (UCs).
Entre 2019 e 2024, o
estudo mapeou 14.223 propriedades em estados da Amazônia Legal que modificaram
seus registros do CAR suprimindo áreas com restrições ambientais. São 9.621
casos de alterações envolvendo a exclusão de áreas com desmatamento, 4.358 casos
de exclusão de embargos e 1.770 mudanças envolvendo a exclusão de sobreposições
com áreas protegidas. Ao total, são 15.750 alterações, já que é possível que
uma mesma propriedade tenha mudanças de perímetro por mais de uma questão.
Essas alterações
fizeram desaparecer 4,9 milhões de território que antes constavam dentro do
perímetro de propriedades privadas nos registros do CAR. O estudo identificou
até propriedades que, pela localização informada no CAR após alterações feitas
por seus proprietários, estariam em teoria situadas dentro de rios (463 casos).
“Não faz sentido o sistema permitir que o cadastro seja deslocado para um local
desses. Essas brechas devem ser identificadas e corrigidas”, comenta Heron
Martins, coordenador do laboratório de geotecnologia do CCCA. “Os usuários
entendem a lógica dessas brechas e atuam para se beneficiar.”
Essas modificações
contribuem para a ocupação irregular de terras indígenas e são usadas por
produtores rurais para burlar as regras ambientais, afirma o estudo do CCCA. A
pesquisa foi feita com o apoio da Repórter Brasil, que cedeu à organização
informações sobre o seu próprio banco de dados de registros do CAR.
O estudo alerta para o
impacto dessas alterações em efeito cascata sobre os órgãos de controle
ambiental, já que uma rede de instituições utiliza dados do CAR para checar
irregularidades. Esse contexto acaba “minando iniciativas destinadas a reduzir
o desmatamento e a fazer cumprir a proteção da terra”, aponta a organização.
As mudanças impactam
todo o sistema de checagem, dificultando a identificação de fazendas que
cometem crimes ambientais. Para mapear os casos, o CCCA cruzou dados do CAR de
2019 a 2024, dados de desmatamento mapeados pelo Projeto de Monitoramento do
Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), embargos de áreas
desmatadas aplicados pelo Ibama e informações sobre áreas protegidas,
referentes aos limites oficiais das unidades de conservação e terras indígenas.
Criado em 2012 pelo
Código Florestal, o CAR é um registro obrigatório para os imóveis rurais, que
centraliza as informações ambientais das propriedades em um sistema eletrônico.
O CAR é utilizado por órgãos públicos e privados na verificação de restrições
ambientais da área, como embargos e desmatamentos, e na identificação de áreas
de proteção, reservas e remanescentes. A declaração das informações da
propriedade é feita pelos próprios proprietários no sistema, que oferece a
possibilidade de editar e retificar dados de forma rápida e on-line, sem
justificativas ou documentações que expliquem a alteração. Em 2023, de acordo
com o estudo, havia mais de 7 milhões de registros no Sistema Nacional de
Cadastro Ambiental Rural (Sicar) em todo o Brasil, sendo mais de 1 milhão na
Amazônia Legal.
• Pará é recordista em alterações de CAR
O Pará é o estado
recordista em mudanças de CAR por desmatamento, seguido de Rondônia, Mato
Grosso e Acre.
Em 2023, o Pará foi um
dos estados que mais desmatou no Brasil, ocupando o quarto lugar no ranking,
atrás do Maranhão, Bahia e Tocantins, de acordo com o MapBiomas. Foram 184,7
mil hectares perdidos no Pará. A agropecuária foi responsável por 93% do desmatamento,
também segundo o MapBiomas.
Além da obtenção de
financiamentos, a exclusão de restrições ambientais do perímetro declarado
também colabora com a venda da produção das fazendas. “O desmatamento é
empecilho para que os frigoríficos possam comprar. Os proprietários podem
regularizar a área ou fazer uma edição no CAR. É rápido, não tem burocracia.
Eles optam por essa opção”, explica Martins.
Entre as alterações
por embargo, Pará e Rondônia “brigam” pelo pódio. Juntos, os dois estados
representam 56% do total de casos.
A Repórter Brasil
questionou as secretarias de meio ambiente dos estados do Pará, Rondônia, Mato
Grosso e Acre sobre o monitoramento em alterações de CARs.
A Secretaria do Meio
Ambiente do Pará informou que “analisa os CARs constantemente” e que “já
cancelou 2.374 cadastros e suspendeu outros 3.654 cadastros inscritos em terras
indígenas”. A Secretaria do Meio Ambiente do Mato Grosso respondeu que “todas
as informações e alterações inseridas ficam gravadas no sistema, o que
possibilita a auditagem dos dados” e que esse procedimento é feito “no momento
da análise”, porém não informou quantas alterações de CAR foram identificadas.
A pasta também informou que, quando há identificação de alterações, atua com a
“autuação do interessado e do responsável técnico, encaminhamento ao Ministério
Público para providências cíveis e criminais e à Delegacia Especializada de
Meio Ambiente, quando há indícios de cometimento de crime ou necessidade de
investigação para materialidade da conduta”, mas não respondeu quantas foram as
situações identificadas.
As secretarias de
Rondônia e Acre não enviaram posicionamentos até o fechamento da reportagem. O
espaço segue aberto para manifestações futuras.
• Alterações crescem ano a ano
A avaliação da
regularidade dos registros dos CARs são feitas pelos estados, mas o sistema é
gerenciado pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Para Martins, a
solução para corrigir as brechas deve mobilizar as duas esferas: “Todo o
processo de validação é dos estados, mas o governo federal agrega e gera as
ferramentas. Eu desconheço se existe um monitoramento ou processo ativo de
buscas desse tipo de situação”, aponta.
Os dados mostram que a
prática tem aumentado. Segundo o CCCA, o número de alterações de CAR cresce ano
a ano. Entre 2019 e 2020, foram identificadas 1.091 alterações motivadas por
desmatamento. Entre 2023 e 2024 o número subiu para 2.682 alterações. Martins
alerta que a prática está avançando na Amazônia.
“É como se a notícia
se espalhasse. Quem está oferecendo a solução? Em muitos casos, são
responsáveis técnicos”, salienta Martins.
A Repórter Brasil
também questionou o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima sobre o
monitoramento em alterações de CARs e o funcionamento do sistema digital que
integra os cadastros, porém o órgão não respondeu até a publicação desta
reportagem. O espaço segue disponível para esclarecimentos.
Para Martins, é
necessário que os governos aprimorem o sistema de registros do CAR, criando
filtros para barrar situações descabidas como a alteração de uma área para
dentro de um rio. Ele recomenda a implementação de uma ferramenta que obrigue
os proprietários a justificarem – e documentarem – as alterações no cadastro.
“É preciso priorizar a
análise dos casos que já aconteceram e verificar quais deles devem ser
cancelados”, ressalta Martins.
Fonte: Repórter Brasil
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