Como os transtornos psicológicos impactam
nas salas de aula
Que problemas como
depressão e ansiedade vêm crescendo entre crianças e adolescentes, não é
novidade. Somado a isso, outros transtornos que envolvem diretamente a saúde
mental crescem e podem impactar não apenas o aluno, mas também em toda a turma
e corpo docente. São diagnósticos como autismo, dislexia, discalculia,
Transtorno Opositor Desafiador (TOD), Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade (TDAH) e, ainda que mais raro, Síndrome de Tourette. Mais do que
a construção do conhecimento, os professores precisam lidar, ainda, com os
efeitos que um ou mais casos geram em cada turma.
Ainda que não haja
números precisos para os devidos problemas, sabe-se que são uma realidade.
Dados do Ministério da Saúde (2019) apontam que 1% a 3% de crianças e
adolescentes têm depressão. Quanto ao autismo, ocorre aproximadamente em 1 a
cada 36 crianças, conforme estudo do CDC (Centro de Controle e Prevenção de
Doenças dos EUA).
A falta de dados
precisos já evidencia a ausência de políticas públicas para a saúde mental
infantojuvenil. A realidade hoje é complexa, com jovens doentes, sem
tratamento, e professores exaustos, fazendo verdadeiros malabarismos para
enfrentar esse universo tão complexo e desafiador que é a mente humana.
• Ansiedade no topo dos problemas
Já imaginou estar em
uma aula de Língua Portuguesa e, entre um uso de crase e uma concordância, um
aluno desmaia? A professora de Português e Literatura Carla Souza da Silva,
docente em uma grande escola estadual de São Leopoldo, sabe o que é isso. E já aconteceu
mais de uma vez, resultado de crises de ansiedade. “Desmaios, crises de choro
ou saída repentina, literalmente correndo, é o que presencio nas crises”,
destaca.
Aliás, esse tem sido o
maior complicador em meio a tantos problemas que surgem no dia a dia. “A
maioria dos alunos com diagnóstico faz acompanhamento médico e psicológico, o
que já traz mais qualidade de vida e torna a rotina mais tranquila. Mas a
ansiedade nem sempre é tratada e acaba gerando mais dificuldades”, pontua a
professora, que aprendeu a reconhecer os sinais, muitas vezes antes de chegar
às últimas consequências da crise.
“Quando percebo que um
aluno está muito nervoso, já ofereço auxílio e peço ajuda da supervisão. Assim
ele pode sair, de forma monitorada, até se recompor”, frisa. Carla destaca que,
de todo o conhecimento adquirido na universidade, este não estava no currículo.
“Não fui preparada para socorrer alunos, mas aprendi na prática. Quando há mais
de um estudante com problemas, a única saída é pedir o apoio de toda a turma e
respeitar as necessidades de cada um”, pontua.
Das sete turmas que
teve em 2023, foram muitos os diagnósticos: TDAH, fobia social, autismo,
depressão, deficiência intelectual, e um caso de Síndrome de Tourette, que já
está em tratamento e não manifesta sintomas. “É preciso ter muito jogo de
cintura para manter a turma equilibrada. Entender que há dias mais difíceis e,
nesses dias, é preciso ser flexível”, aponta.
“O mais complexo,
entretanto, é a negligência familiar no que se refere aos transtornos. Vemos
muitos alunos precisando de ajuda e sendo ignorados pelos pais”, avalia. Em
2023, percebendo a dificuldade de um aluno em realizar algumas provas, Carla
notou que havia algo diferente. Com o apoio do Atendimento Educacional
Especializado (AEE), identificou dislexia e discalculia no estudante de 16
anos. “Ele relatava muita dificuldade para escrever, embora conseguisse ler.
Até então ninguém havia percebido, e a família pensava ser uma desculpa dele”,
revela.
• Negligência parental: o calcanhar de
Aquiles da escolar
Assim como ressaltou a
professora Carla, outra professora que prefere não se identificar, e que atua
há 30 anos em uma das escolas mais tradicionais de ensino privado do Vale do
Sinos, faz coro. “Já tive inúmeras situações difíceis, mas quando a família não
aceita, é o pior. Tanto a criança quanto professores precisam de um amparo, de
uma rede de apoio para o melhor aproveitamento do estudante”, defende a docente
do primeiro ano do ensino fundamental.
Quando os transtornos
interfere no comportamento, principalmente quando gera agressividade, é
fundamental ter um laudo com o diagnóstico para a solicitação de um professor
de apoio. “Por outro lado, mesmo diante de problemas complexos, quando temos
mais um profissional, conseguimos resultados excelentes”, completa.
Dos inúmeros casos de
transtornos mentais, dois ficaram marcados em sua memória. De um aluno com
espasmos neuronais, que se desorganizava e agredia colegas, se autoagredia e
cortava roupas e cabelos seus e dos seus pares. “Com esse problema neurológico
sério, mesmo com todo o engajamento da família e médicos, ele nunca teve uma
interação positiva com colegas”, lamenta. Outro aluno, não diagnosticado, era
extremamente agressivo e quebrava coisas em sala de aula. “A família tentou de
tudo, mas sem sucesso, e ele foi retirado da escola no meio do ano por não
conseguir se adaptar”, lembra.
Apesar do apoio da
escola, a docente acredita que a inclusão ainda tem muito a evoluir.
“Precisamos de mais capacitação de todo o corpo escolar, um trabalho mais
denso. As demais crianças precisam compreender a existência e a necessidade dos
alunos de inclusão de forma mais consistente”, sentencia. “Importante ter a
aceitação das famílias também. Muitas vezes, ainda as encontramos no processo
do luto, sem entender realmente as necessidades do seu filho, o que compromete
a adaptação da criança”, destaca.
• Conheça os principais transtornos
# Depressão:
- Falta de vontade de
brincar ou estudar, choro constante, falta de apetite, entre outros sintomas.
Na infância, pode ser causado pela separação dos pais, perda de um ente querido
ou animal de estimação. Na adolescência, soma-se a outros fatores.
# Transtorno de
ansiedade:
- Medo sem motivo
aparente, angústia constante, necessidade de estar perto dos responsáveis.
Desencadeia diversos sintomas físicos, como choros, tremores, desmaios,
taquicardia.
# Dislexia:
- Transtorno de
aprendizagem que pode afetar habilidades básicas de fala, leitura e escrita, em
diferentes níveis. Conforme estimativa do Instituto ABCD, referência em
dislexia, quase 4% dos brasileiros são afetados.
# Discalculia:
- Transtorno que afeta
a aprendizagem de matemática, impossibilitando a identificação de sinais
matemáticos, montagem de operações, classificação de números e conceitos
matemáticos em geral.
# Transtorno do
Espectro Autista (TEA):
- Condição neurológica
que pode afetar comportamento, fala, socialização e, em muitos casos,
aprendizagem. Afeta 1 a cada 36 crianças.
# Transtorno Opositor
Desafiador (TOD):
- Caracterizado por
comportamento desafiador, agressividade, impulsividade, teimosia, dificuldade
em lidar com frustrações. Tudo isso em níveis extremos. O acompanhamento pode
envolver psicólogos, neurologistas e psiquiatras.
# Transtorno de
Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH):
- Além da dificuldade
em manter atenção, contribui para baixa autoestima e dificuldade nos
relacionamentos.
# Síndrome de
Tourette:
- Distúrbio
neuropsiquiátrico que causa tiques motores ou vocais frequentes. Geralmente,
começa na infância, com picos entre os 10 e 12 anos de idade, tendendo a
diminuir na adolescência.
• Em casa, o aprendizado não tira férias
Uma criança com
dificuldade de aprendizado pode precisar de reforço até mesmo nas férias. É o
caso de Paulo, 10 anos, diagnosticado com TOD, TDAH e deficiência intelectual.
“Além do auxílio de uma estagiária durante o ano, ele tem sugestão de
atividades para as férias, principalmente leituras”, conta o publicitário
Alexandre Bitello.
Ele e o assistente de
sinistro Jona Lamb são pais por adoção e ainda estão se adaptando às questões
escolares, mas já contabilizam muitos progressos. Ainda antes de obter a
tutela, começaram a conhecer o histórico escolar e familiar de Paulo para
entender suas necessidades. “Na primeira aproximação, soubemos que ele brigava
muito na escola e que tinha dificuldades na aprendizagem. Nessa fase, porém,
não podíamos interferir”, conta Bitello.
O pai destaca que, por
conta da distância necessária, não puderam fazer nenhum tipo de mudança e
acabou sendo reprovado. No ano seguinte, em 2023, realizaram a mudança de
escola e, já com o laudo, ele passou a receber atendimento especializado no
AEE, que ajudou bastante.
A questão da
agressividade e da dificuldade de autorregulação, inerentes ao diagnóstico,
também melhorou muito com o tratamento médico. Aos poucos, as brigas com colegas,
ameaças às professoras e resistência em fazer as atividades foram amenizadas, e
o ano escolar de 2023 foi considerado um sucesso pela família, terminado com
aprovação escolar. “O primeiro passo foi buscar alinhamento com a escola”,
reconhece o pai.
Além da sala de
recursos, Paulinho, como é carinhosamente chamado, passou a ter reforço escolar
semanal no contraturno e conteúdo adaptado. “É importante compreender a
criança, despertar nela a sensação de pertencimento à escola e empoderá-la em
cada tarefa”, destaca.
• Professores também adoecem
Os professores também
sofrem um agravamento de saúde mental frente à alta incidência de problemas em
crianças e adolescentes. O apontamento é da professora do curso de
especialização em Psicopedagogia e Tecnologias da Informação e Comunicação EAD
da Ufrgs, Silvana Corbellini. “Além disso, os professores e gestores nem sempre
possuem formação adequada para identificar e lidar com essas questões, o que
agrava os casos dentro das escolas e leva ao fenômeno da medicalização como
única opção para lidar com o diferente”, analisa.
A docente acredita na
prevenção e promoção da saúde mental como fatores indispensáveis para reduzir
os casos, mas está ciente da precariedade das escolas. “A formação, no entanto,
é um requisito imprescindível”, enfoca. Ela aponta, ainda, outros fatores crônicos
como a diferença de classes, a pobreza extrema, as drogas e falta de condições
mínimas de acolhimento.
Silvana defende que os
gestores devem se preocupar também com a saúde mental dos docentes, que estão
no cotidiano dos estudantes. “A escola precisa ir além dos conteúdos
curriculares. É preciso pensarmos em uma educação de afetos, na construção de
uma cultura de paz, na crítica em relação à desinformação, no pensamento
científico como propulsor de novas respostas”, sugere.
Cada vez mais, segundo
Silvana, observa-se a necessidade de espaços de fala, de diálogo dentro das
escolas. Espaços de acolhimento, de pertencimento para que os jovens
desenvolvam empatia, respeito mútuo e aprendam que a cooperação é mais
importante do que a competição – valores nos quais a sociedade e a própria
escola ainda se pautam – são necessários. “Trabalhar em prol de uma
transformação da educação é necessário, visando também às questões
socioemocionais”, ensina.
• Somente 20% dos jovens recebem
atendimento
A saúde mental de
crianças e adolescentes apresenta um quadro gravíssimo no que se refere aos
atendimentos. Conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), metade das doenças
mentais se inicia em torno dos 14 anos de idade. A incidência em crianças e
adolescentes gira em torno de 15%, porém vários estudos apontam que na
adolescência essa taxa fica ao redor de 20%. O que mais preocupa, nessa
estatística, não são os números absolutos, mas o acesso ou a busca por
tratamento. Estima-se que somente 20% dos jovens com transtornos mentais
recebam atendimento.
“Os outros 80% vão
passar anos sofrendo e tendo seus quadros agravados, diminuindo sua qualidade
de vida e sua produtividade”, lamenta o médico Marcelo Schmitz, professor de
Psiquiatria da Infância e Adolescência da Faculdade de Medicina da Ufrgs e
preceptor em Residência Psiquiátrica da Infância e Adolescência do Hospital de
Clínicas de Porto Alegre.
O impacto da saúde na
vida escolar é enorme. Conforme Schmitz, além de baixo rendimento e evasão
escolar, adolescentes tendem a piorar o relacionamento com seus pares ou
figuras de autoridade. Como resultado, surgem os casos de agressão, gravidez
indesejada, DTSs (fruto do comportamento de risco característico de muitos
transtornos mentais), automutilação e suicídio. “Essa realidade não pode ser
jogada para baixo do tapete. Escola, famílias e poder público devem trabalhar
juntos”, alerta.
Schmitz considera,
ainda, que muitos transtornos mentais são desenvolvidos ou acentuados pela
história familiar. Assim, além de buscar informações com os familiares, muitas
vezes é necessário sugerir um acompanhamento também para eles. “É importante
buscar um diálogo tranquilo, pois muitos pais se sentem perseguidos ou atacados
quando procurados para falar sobre o assunto”, esclarece.
Fonte: Por Caren
Souza, no ExtraClasse
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