quinta-feira, 10 de outubro de 2024

AUTORITARISMO E NEOLIBERALISMO: As ditaduras passadas e os ecos presentes

A política de não contestação do Governo Lula em relação ao empresariado, aos militares e ao agronegócio perpetua a política desenvolvida na ditadura, colocando o Estado brasileiro como refém dos interesses destas camadas

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Mais um ano do 11 de setembro. Não o recente, de 2001, que atingiu a maior potência global, mas o 11 de setembro de 1973, a data do atentado terrorista que matou o presidente Salvador Allende e deu início ao laboratório de experiências neoliberais no Chile.

A data possui um imenso conteúdo de significados, apesar de não ser conhecida de forma ampla. A ditadura chilena pendurou durante 17 anos, teve um saldo de mais de 100 mil pessoas afetadas, envolvendo mortos, torturados, assassinados e presos. Diferentemente, das demais ditaduras na América Latina – Argentina, Brasil, Paraguai, Peru e Uruguai, por exemplo –, a chilena tem uma especificidade quanto às mudanças na ordem social, política e econômica.

No contexto da Guerra Fria, o período iniciado pelos anos 1970 invoca o nascimento do neoliberalismo. Um novo formato do ordenamento social, econômico e político, o neoliberalismo se coloca como uma nova face do capitalismo. Nas sociedades periféricas da América Latina – Argentina, Brasil, Chile, este modelo foi adotado de forma ampla e, principalmente, orientada pelos interesses das potências do bloco capitalista – Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha. O modelo neoliberal é caracterizado por diluir toda relação social e grupal, de forma a pulverizar as relações de trabalho e individualizar os problemas sociais. Um exemplo, tradicional e contemporâneo, é a uberização do trabalho, fenômeno que se caracteriza por retirar todos os direitos do trabalhador, colocando-o como “gestor” individual de sua condição de trabalho.

A ditadura de Pinochet, instaurada após o golpe de 1973, também financiada pelos Estados Unidos, utilizou da sociedade chilena como laboratório do neoliberalismo. Movimento que foi concretizado por meio de amplas privatizações, inclusive do sistema hídrico e do fornecimento de água potável, perseguições aos movimentos sociais, partidos e sindicatos, redução dos direitos trabalhistas e piora das condições de trabalho.

O interesse maior das potências capitalistas, no financiamento das ditaduras na América Latina, foi o da expansão de seus mercados de consumo e de bloqueio de qualquer tipo de alternativa popular.

Salvador Allende foi o primeiro socialista eleito pelo jogo político democrático na América Latina, por meio da coligação Unidad Popular – que uniu o Partido Socialista, o Partido Comunista, o Partido Socialdemocrata, o Partido Radical, o Partido Popular Independente e o Movimento de Ação Popular Unificado. No cargo da presidência, Allende construiu diversas políticas que antagonizaram com o projeto neoliberal, como a nacionalização do cobre em todo território, a construção de um sistema universitário unificado e nacional, além de ter levado à frente a reforma agrária.

Após o golpe, Pinochet articulou uma nova constituição, a qual já estava a ser elaborada por aliados há anos e que, além de garantir a repressão e o poder político e repressivo para as Forças Armadas, também embutiu a série de privatizações dentro da carta. A constitucionalização das privatizações foi um processo fundamental para garantir os interesses da burguesia chilena e do imperialismo.

Como foi observado nos demais países da América Latina, as potências capitalistas, ao final dos anos 1980, perderam o interesse nas ditaduras, deixando de suportá-las, financeira e politicamente, o que permite o avanço da redemocratização destes territórios. Mesmo após o fim da ditadura, até hoje, o povo chileno enfrenta as privatizações de Pinochet, por conta de sua constitucionalização. Junto a estas medidas, a constituição de Pinochet garante o cargo de senador vitalício do Chile a ele, com poderes de veto em mudanças bruscas na constituição.

•        O estudo sobre as ditaduras

Um dos cursos de inverno oferecidos pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) foi o “Ditadura e Empresariado no Brasil”, ministrado pelo Doutor Gabriel Teixeira, junto de diversos pesquisadores, lutadores e sobreviventes como Sebastião Neto, Adriano Diogo e Maurice Politi. A perspectiva foi a de recriar a história da Ditadura centralizando o papel e o impacto do empresariado brasileiro e internacional na sua criação e manutenção.

O estudo tradicional sobre a história da ditadura, em geral, se detém em retomar as fases organizativas, a ordem dos Atos Institucionais e a sucessão de fatores políticos que desenvolveram o período. Todavia, essa forma de apreender a história é um recorte de acontecimentos que não realiza nada, senão a explicação de uma “fotografia descontextualizada”.

Judith Butler, filósofa estadunidense, trabalha com esta noção fotográfica das narrativas, em sua obra “Quadros de Guerra”. Desenvolvendo sobre a série de narrativas divulgadas pelo império estadunidense para justificar a exploração e a submissão desenvolvida no Oriente Médio, durante os anos 1990-2000. A autora narra, como a narrativa de uma sucessão de acontecimentos políticos, desenvincilhados dos interesses de poder (aqui se leia: interesses econômicos), traça uma apreensão e leitura da história bipartida entre heróis e vilões, entre bom e mau.

Da mesma forma, quando o entendimento sobre as ditaduras na América Latina fica centrado em uma sucessão de fatos políticos, sem o destrinchamento do jogo de interesses econômicos, geográficos e ideológicos nacionais e globais, abre-se um portal para a mesma apreensão bipartida e simplória sobre a história do país e do continente. Tal visão acaba por gerar um desvinculamento humano com o que foi narrado, não se compreende a gama de interesses e de perspectivas em jogo durante as ações da repressão, por isso, não se compreende sua amplitude e seu impacto, assim também, não se entende a dor do outro. O curso em questão teve como centralidade trazer estas perspectivas e interesses, para tentar (re)narrar a história.

•        O caso brasileiro

No primeiro momento, foi importante trazer a necessidade de um Estado repressivo e militarizado para as classes dominantes. O “perigo” representado por Jango na Presidência da República, com as reformas de base e a reforma agrária, foram motivo suficiente para espantar a burguesia estadunidense. De forma a não querer a repetição do ocorrido em Cuba, começa-se a arquitetura do Golpe. Neste momento, diversas instituições brasileiras começaram a ser financiadas pelos Estados Unidos, instituições de propaganda, de formação política e ligadas às forças armadas. O IPES – Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais – e o IBAD – Instituto Brasileiro de Ação Democrática – são os principais, que merecem destaque, por sua ação no fomento de uma consciência na classe brasileira, de entender os Estados Unidos como aliado aos interesses dos trabalhadores e o Jango como uma ameaça à democracia brasileira.

Com o desenvolvimento do golpe e o estabelecimento das forças militares no controle institucional brasileiro, as classes empresarial, do agronegócio e oligárquica estreitam suas relações libidinosas com o corpo militar. A estrutura do Estado brasileiro, nos diferentes âmbitos, passa a servir de extensão para as grades empresas. Em principal: Grupo Ultra, Grupo Josipar (há época, “Cidapar”), Banco Denasa de Investimentos (BDI) e Grupo Volkswagen, que estabelecem cadeiras em secretarias, ministérios e diferentes gabinetes. Para garantir não somente o repasse irrisório de verbas, como também a legislação e a aplicação de políticas que fomentassem a ampliação e a produção de seus conglomerados. Um dos principais ocorridos foi a ação do Grupo Josapar, em companhia do BDI, no Pará, em que estes foram responsáveis pelo saque irrestrito de terras de camponeses. Além de expulsões dos territórios, também foram responsáveis por mortes, torturas e conflitos armados com as diferentes comunidades locais. O desenvolvimento de seus negócios na região, inclusive, acabou por desenvolver uma devastação ambiental e um deflorestamento ainda sem estimativas.

O desenvolvimento de todo o período militar foi marcado pela influência direta, ação política e financiamento do empresariado brasileiro, do agronegócio, das oligarquias e da burguesia. Sem a compreensão destas relações, que perpassavam desde esquemas de corrupção e indicações para cargos até o envio de listas de trabalhadores ligados ao movimento sindical para tortura e financiamento de equipamentos para os militares, não se pode compreender a razão das políticas adotadas pelos diversos grupos políticos. Como, por exemplo, as guerrilhas armadas, ALN, MR-8 e MRT, as quais sequestraram os embaixadores dos Estados Unidos e da Alemanha – responsáveis diretos pelo golpe militar e sua manutenção – e assassinaram o dono do grupo Ultra: Henning Boilesen, o qual assistia, voluntariamente, sessões de tortura no DOI-CODI.

Também, se torna um esforço difícil, sem a compreensão destes fatores, entender os impactos da ditadura em todas as camadas sociais, para além dos movimentos sociais. Como os trabalhadores e agricultores familiares, que sofriam perseguições, eram expulsos de suas terras e torturados, mesmo sem qualquer vínculo político, para conseguir manter a dominação empresarial e a sua produção.

O desvinculamento histórico e humano gerado pelo apagamento destas influências é de interesse pleno de setores que sofreriam com esta lembrança. Setores que foram responsáveis, que se engrandeceram, que se estabeleceram a partir da morte, da tortura, da espoliação e da repressão.

Fundamental retomar, também, que o estabelecimento de “democracia” atual se deu por vias militares. Os arranjos da Constituinte de 1988 foram estabelecidos pelas Forças Armadas, que garantiram: 1) A anistia completa e irrestrita para todos os militares, empresários e latifundiários criminosos; 2) A perpetuação de formas constitucionais e institucionais de se manterem ativos na política, de modo a controlar as instituições e manejar os interesses da população, para garantir os interesses das classes dominantes.

Justamente por esses motivos que o processo da Comissão da Verdade foi marcado por embates políticos e aqueceu os motores do Golpe de 2016. Também por isto, que o Governo Bolsonaro conseguiu estabelecer um projeto fascista com o apoio dos militares. Esses motivos também indicam o porquê de a política de segurança pública brasileira não somente garantir a guerra perpetuada nas favelas, como fomentar a própria existência das milícias, as quais se originaram por emigrados das Forças Armadas.

•        Os ecos presentes

Os municípios brasileiros se encontram em período eleitoral. Diversos são os projetos encabeçados pela direita e pela extrema-direita, que reverberam e acentuam a dominação empresarial e militar sobre o Estado e sobre o povo brasileiro. Entender o processo de concessão irrestrita do patrimônio, do território e das empresas brasileiras é fundamental para compreender os projetos privatistas de licenças dos bens nacionais para a iniciativa privada. Para compreender a relação externa do Brasil com os demais territórios no mundo, é fundamental compreender a submissão que o Brasil possuiu e possui com os Estados Unidos e a influência deste na política nacional.

Em Santiago, chama à atenção aos observadores a quantidade de equipamentos de memória com referência à ditadura. Desde pequenas exposições nas ruas do centro, até monumentais museus e sítios de memória concretizados pelo esforço coletivo. Apesar de sua imensa quantidade de aparatos de memória, Pinochet manteve seu cargo como senador vitalício. O país foi sentenciado a uma constituição pré-planejada pelo ditador, que prescreveria a privatização das principais empresas chilenas. Mesmo após o fim do período da ditadura, as forças políticas não conseguiram estabelecer um novo pacto constituinte de reverter os efeitos drásticos para a sociedade chilena.

Hoje, o Chile possui uma crescente desigualdade social, com mais de 85% da população sem poder pagar o acesso à saúde de qualidade. Este, também, passou por diversas convulsões sociais, a mais recente sendo a de 2019, que levou à deposição do presidente de direita, Sebastián Piñera. Com a eleição de Boric, um ânimo de reconstruir o país e reparar o que foi feito pela ditadura cresceu. Todavia, a desvinculação com os movimentos sociais e o rebaixamento das pautas para conseguir apoios táticos com a direita, levaram ao fracasso da constituinte recente.

Um processo similar se encontra em andamento no Brasil: as promessas ecoadas pelo Governo Lula, durante a eleição de 2022, não somente não estão sendo garantidas, como diversos setores de seu governo perpetuam a política realizada durante Bolsonaro, como no caso da economia e do meio ambiente. Isso fica evidente a partir da retenção dos juros elevados (mesmo após a indicação de Galípolo ao Banco Central), os cortes em programas e investimentos sociais (como o mantimento do arcabouço fiscal e os cortes do Pé de Meia) e o baixo investimento industrial. No meio ambiente, esse rebaixamento político se evidencia por meio da recente situação das queimadas que se agravaram em todo o país, geradas pela política de deflorestamento do latifúndio e do agronegócio, os quais recebem amplos investimentos do governo federal.

A política de não contestação do Governo Lula em relação ao empresariado, aos militares e ao agronegócio perpetua a política desenvolvida na ditadura, colocando o Estado brasileiro como refém dos interesses destas camadas para desenvolverem sua produção. De forma contrária à situação chilena, os recursos históricos materiais que tenham relação com a ditadura são escassos, por amplos motivos históricos.

A perspectiva de compreender os ecos que reverberam, de forma estrondosa, da ditadura militar em ambos os países ainda hoje, ganha sentido na compreensão que se deve ter sobre a memória. Os gritos ecoados pelos sobreviventes e pelos movimentos sociais de “Ditadura nunca mais!”, não se esvaziam de pautas políticas, mas devem, ao contrário, se vincular às pautas de todo o povo brasileiro e latino-americano. A memória e sua disputa não é um fazer no gabinete, para instituir museus – sem menosprezar a importância desses – mas é, também, uma prática constante, de realizar na política concretizada no dia a dia, a memória sobre o passado que se combate no presente e o futuro que se constrói, a partir dos sonhos dos que se foram e dos que se mantém vivos.

 

Fonte: Por Murilo Rocha Souto Maior, no Le Monde

 

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