AUTORITARISMO E NEOLIBERALISMO: As
ditaduras passadas e os ecos presentes
A política de não
contestação do Governo Lula em relação ao empresariado, aos militares e ao
agronegócio perpetua a política desenvolvida na ditadura, colocando o Estado
brasileiro como refém dos interesses destas camadas
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Mais um ano do 11 de
setembro. Não o recente, de 2001, que atingiu a maior potência global, mas o 11
de setembro de 1973, a data do atentado terrorista que matou o presidente
Salvador Allende e deu início ao laboratório de experiências neoliberais no Chile.
A data possui um
imenso conteúdo de significados, apesar de não ser conhecida de forma ampla. A
ditadura chilena pendurou durante 17 anos, teve um saldo de mais de 100 mil
pessoas afetadas, envolvendo mortos, torturados, assassinados e presos.
Diferentemente, das demais ditaduras na América Latina – Argentina, Brasil,
Paraguai, Peru e Uruguai, por exemplo –, a chilena tem uma especificidade
quanto às mudanças na ordem social, política e econômica.
No contexto da Guerra
Fria, o período iniciado pelos anos 1970 invoca o nascimento do neoliberalismo.
Um novo formato do ordenamento social, econômico e político, o neoliberalismo
se coloca como uma nova face do capitalismo. Nas sociedades periféricas da
América Latina – Argentina, Brasil, Chile, este modelo foi adotado de forma
ampla e, principalmente, orientada pelos interesses das potências do bloco
capitalista – Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha. O modelo
neoliberal é caracterizado por diluir toda relação social e grupal, de forma a
pulverizar as relações de trabalho e individualizar os problemas sociais. Um
exemplo, tradicional e contemporâneo, é a uberização do trabalho, fenômeno que
se caracteriza por retirar todos os direitos do trabalhador, colocando-o como
“gestor” individual de sua condição de trabalho.
A ditadura de
Pinochet, instaurada após o golpe de 1973, também financiada pelos Estados
Unidos, utilizou da sociedade chilena como laboratório do neoliberalismo.
Movimento que foi concretizado por meio de amplas privatizações, inclusive do
sistema hídrico e do fornecimento de água potável, perseguições aos movimentos
sociais, partidos e sindicatos, redução dos direitos trabalhistas e piora das
condições de trabalho.
O interesse maior das
potências capitalistas, no financiamento das ditaduras na América Latina, foi o
da expansão de seus mercados de consumo e de bloqueio de qualquer tipo de
alternativa popular.
Salvador Allende foi o
primeiro socialista eleito pelo jogo político democrático na América Latina,
por meio da coligação Unidad Popular – que uniu o Partido Socialista, o Partido
Comunista, o Partido Socialdemocrata, o Partido Radical, o Partido Popular
Independente e o Movimento de Ação Popular Unificado. No cargo da presidência,
Allende construiu diversas políticas que antagonizaram com o projeto
neoliberal, como a nacionalização do cobre em todo território, a construção de
um sistema universitário unificado e nacional, além de ter levado à frente a
reforma agrária.
Após o golpe, Pinochet
articulou uma nova constituição, a qual já estava a ser elaborada por aliados
há anos e que, além de garantir a repressão e o poder político e repressivo
para as Forças Armadas, também embutiu a série de privatizações dentro da carta.
A constitucionalização das privatizações foi um processo fundamental para
garantir os interesses da burguesia chilena e do imperialismo.
Como foi observado nos
demais países da América Latina, as potências capitalistas, ao final dos anos
1980, perderam o interesse nas ditaduras, deixando de suportá-las, financeira e
politicamente, o que permite o avanço da redemocratização destes territórios.
Mesmo após o fim da ditadura, até hoje, o povo chileno enfrenta as
privatizações de Pinochet, por conta de sua constitucionalização. Junto a estas
medidas, a constituição de Pinochet garante o cargo de senador vitalício do
Chile a ele, com poderes de veto em mudanças bruscas na constituição.
• O estudo sobre as ditaduras
Um dos cursos de
inverno oferecidos pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) foi o “Ditadura e Empresariado no
Brasil”, ministrado pelo Doutor Gabriel Teixeira, junto de diversos
pesquisadores, lutadores e sobreviventes como Sebastião Neto, Adriano Diogo e
Maurice Politi. A perspectiva foi a de recriar a história da Ditadura
centralizando o papel e o impacto do empresariado brasileiro e internacional na
sua criação e manutenção.
O estudo tradicional
sobre a história da ditadura, em geral, se detém em retomar as fases
organizativas, a ordem dos Atos Institucionais e a sucessão de fatores
políticos que desenvolveram o período. Todavia, essa forma de apreender a
história é um recorte de acontecimentos que não realiza nada, senão a
explicação de uma “fotografia descontextualizada”.
Judith Butler,
filósofa estadunidense, trabalha com esta noção fotográfica das narrativas, em
sua obra “Quadros de Guerra”. Desenvolvendo sobre a série de narrativas
divulgadas pelo império estadunidense para justificar a exploração e a
submissão desenvolvida no Oriente Médio, durante os anos 1990-2000. A autora
narra, como a narrativa de uma sucessão de acontecimentos políticos,
desenvincilhados dos interesses de poder (aqui se leia: interesses econômicos),
traça uma apreensão e leitura da história bipartida entre heróis e vilões,
entre bom e mau.
Da mesma forma, quando
o entendimento sobre as ditaduras na América Latina fica centrado em uma
sucessão de fatos políticos, sem o destrinchamento do jogo de interesses
econômicos, geográficos e ideológicos nacionais e globais, abre-se um portal
para a mesma apreensão bipartida e simplória sobre a história do país e do
continente. Tal visão acaba por gerar um desvinculamento humano com o que foi
narrado, não se compreende a gama de interesses e de perspectivas em jogo
durante as ações da repressão, por isso, não se compreende sua amplitude e seu
impacto, assim também, não se entende a dor do outro. O curso em questão teve
como centralidade trazer estas perspectivas e interesses, para tentar
(re)narrar a história.
• O caso brasileiro
No primeiro momento,
foi importante trazer a necessidade de um Estado repressivo e militarizado para
as classes dominantes. O “perigo” representado por Jango na Presidência da
República, com as reformas de base e a reforma agrária, foram motivo suficiente
para espantar a burguesia estadunidense. De forma a não querer a repetição do
ocorrido em Cuba, começa-se a arquitetura do Golpe. Neste momento, diversas
instituições brasileiras começaram a ser financiadas pelos Estados Unidos,
instituições de propaganda, de formação política e ligadas às forças armadas. O
IPES – Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais – e o IBAD – Instituto
Brasileiro de Ação Democrática – são os principais, que merecem destaque, por
sua ação no fomento de uma consciência na classe brasileira, de entender os
Estados Unidos como aliado aos interesses dos trabalhadores e o Jango como uma
ameaça à democracia brasileira.
Com o desenvolvimento
do golpe e o estabelecimento das forças militares no controle institucional
brasileiro, as classes empresarial, do agronegócio e oligárquica estreitam suas
relações libidinosas com o corpo militar. A estrutura do Estado brasileiro, nos
diferentes âmbitos, passa a servir de extensão para as grades empresas. Em
principal: Grupo Ultra, Grupo Josipar (há época, “Cidapar”), Banco Denasa de
Investimentos (BDI) e Grupo Volkswagen, que estabelecem cadeiras em
secretarias, ministérios e diferentes gabinetes. Para garantir não somente o
repasse irrisório de verbas, como também a legislação e a aplicação de
políticas que fomentassem a ampliação e a produção de seus conglomerados. Um
dos principais ocorridos foi a ação do Grupo Josapar, em companhia do BDI, no
Pará, em que estes foram responsáveis pelo saque irrestrito de terras de
camponeses. Além de expulsões dos territórios, também foram responsáveis por
mortes, torturas e conflitos armados com as diferentes comunidades locais. O
desenvolvimento de seus negócios na região, inclusive, acabou por desenvolver
uma devastação ambiental e um deflorestamento ainda sem estimativas.
O desenvolvimento de
todo o período militar foi marcado pela influência direta, ação política e
financiamento do empresariado brasileiro, do agronegócio, das oligarquias e da
burguesia. Sem a compreensão destas relações, que perpassavam desde esquemas de
corrupção e indicações para cargos até o envio de listas de trabalhadores
ligados ao movimento sindical para tortura e financiamento de equipamentos para
os militares, não se pode compreender a razão das políticas adotadas pelos
diversos grupos políticos. Como, por exemplo, as guerrilhas armadas, ALN, MR-8
e MRT, as quais sequestraram os embaixadores dos Estados Unidos e da Alemanha –
responsáveis diretos pelo golpe militar e sua manutenção – e assassinaram o
dono do grupo Ultra: Henning Boilesen, o qual assistia, voluntariamente,
sessões de tortura no DOI-CODI.
Também, se torna um
esforço difícil, sem a compreensão destes fatores, entender os impactos da
ditadura em todas as camadas sociais, para além dos movimentos sociais. Como os
trabalhadores e agricultores familiares, que sofriam perseguições, eram expulsos
de suas terras e torturados, mesmo sem qualquer vínculo político, para
conseguir manter a dominação empresarial e a sua produção.
O desvinculamento
histórico e humano gerado pelo apagamento destas influências é de interesse
pleno de setores que sofreriam com esta lembrança. Setores que foram
responsáveis, que se engrandeceram, que se estabeleceram a partir da morte, da
tortura, da espoliação e da repressão.
Fundamental retomar,
também, que o estabelecimento de “democracia” atual se deu por vias militares.
Os arranjos da Constituinte de 1988 foram estabelecidos pelas Forças Armadas,
que garantiram: 1) A anistia completa e irrestrita para todos os militares, empresários
e latifundiários criminosos; 2) A perpetuação de formas constitucionais e
institucionais de se manterem ativos na política, de modo a controlar as
instituições e manejar os interesses da população, para garantir os interesses
das classes dominantes.
Justamente por esses
motivos que o processo da Comissão da Verdade foi marcado por embates políticos
e aqueceu os motores do Golpe de 2016. Também por isto, que o Governo Bolsonaro
conseguiu estabelecer um projeto fascista com o apoio dos militares. Esses
motivos também indicam o porquê de a política de segurança pública brasileira
não somente garantir a guerra perpetuada nas favelas, como fomentar a própria
existência das milícias, as quais se originaram por emigrados das Forças
Armadas.
• Os ecos presentes
Os municípios
brasileiros se encontram em período eleitoral. Diversos são os projetos
encabeçados pela direita e pela extrema-direita, que reverberam e acentuam a
dominação empresarial e militar sobre o Estado e sobre o povo brasileiro.
Entender o processo de concessão irrestrita do patrimônio, do território e das
empresas brasileiras é fundamental para compreender os projetos privatistas de
licenças dos bens nacionais para a iniciativa privada. Para compreender a
relação externa do Brasil com os demais territórios no mundo, é fundamental
compreender a submissão que o Brasil possuiu e possui com os Estados Unidos e a
influência deste na política nacional.
Em Santiago, chama à
atenção aos observadores a quantidade de equipamentos de memória com referência
à ditadura. Desde pequenas exposições nas ruas do centro, até monumentais
museus e sítios de memória concretizados pelo esforço coletivo. Apesar de sua imensa
quantidade de aparatos de memória, Pinochet manteve seu cargo como senador
vitalício. O país foi sentenciado a uma constituição pré-planejada pelo
ditador, que prescreveria a privatização das principais empresas chilenas.
Mesmo após o fim do período da ditadura, as forças políticas não conseguiram
estabelecer um novo pacto constituinte de reverter os efeitos drásticos para a
sociedade chilena.
Hoje, o Chile possui
uma crescente desigualdade social, com mais de 85% da população sem poder pagar
o acesso à saúde de qualidade. Este, também, passou por diversas convulsões
sociais, a mais recente sendo a de 2019, que levou à deposição do presidente de
direita, Sebastián Piñera. Com a eleição de Boric, um ânimo de reconstruir o
país e reparar o que foi feito pela ditadura cresceu. Todavia, a desvinculação
com os movimentos sociais e o rebaixamento das pautas para conseguir apoios
táticos com a direita, levaram ao fracasso da constituinte recente.
Um processo similar se
encontra em andamento no Brasil: as promessas ecoadas pelo Governo Lula,
durante a eleição de 2022, não somente não estão sendo garantidas, como
diversos setores de seu governo perpetuam a política realizada durante
Bolsonaro, como no caso da economia e do meio ambiente. Isso fica evidente a
partir da retenção dos juros elevados (mesmo após a indicação de Galípolo ao
Banco Central), os cortes em programas e investimentos sociais (como o
mantimento do arcabouço fiscal e os cortes do Pé de Meia) e o baixo
investimento industrial. No meio ambiente, esse rebaixamento político se
evidencia por meio da recente situação das queimadas que se agravaram em todo o
país, geradas pela política de deflorestamento do latifúndio e do agronegócio,
os quais recebem amplos investimentos do governo federal.
A política de não
contestação do Governo Lula em relação ao empresariado, aos militares e ao
agronegócio perpetua a política desenvolvida na ditadura, colocando o Estado
brasileiro como refém dos interesses destas camadas para desenvolverem sua
produção. De forma contrária à situação chilena, os recursos históricos
materiais que tenham relação com a ditadura são escassos, por amplos motivos
históricos.
A perspectiva de
compreender os ecos que reverberam, de forma estrondosa, da ditadura militar em
ambos os países ainda hoje, ganha sentido na compreensão que se deve ter sobre
a memória. Os gritos ecoados pelos sobreviventes e pelos movimentos sociais de
“Ditadura nunca mais!”, não se esvaziam de pautas políticas, mas devem, ao
contrário, se vincular às pautas de todo o povo brasileiro e latino-americano.
A memória e sua disputa não é um fazer no gabinete, para instituir museus – sem
menosprezar a importância desses – mas é, também, uma prática constante, de
realizar na política concretizada no dia a dia, a memória sobre o passado que
se combate no presente e o futuro que se constrói, a partir dos sonhos dos que
se foram e dos que se mantém vivos.
Fonte: Por Murilo
Rocha Souto Maior, no Le Monde
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