Os novos desafios da vacinação no Brasil
A retomada do Programa
Nacional de Imunizações (PNI) foi uma das principais bandeiras do início do
governo Lula e da gestão de Nísia Trindade no Ministério da Saúde. No momento
em que o exercício presidencial chega à metade de seu período, o país observa a
recuperação de taxas de cobertura vacinal históricas, ao mesmo tempo em que se
depara com novos desafios epidemiológicos, a exemplo do surto recorde de dengue
neste ano. Além disso, ainda há o vírus do negacionismo a operar socialmente.
Na síntese de Mônica
Levi, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações, o balanço é positivo.
Ao Outra Saúde, ela explica que houve um efetivo sucesso na atualização das
táticas de abordagem da população, após os crimes contra a saúde pública cometidos
no governo anterior. “O atual governo acertou ao usar uma estratégia de
microplanejamento, ao agir de acordo com cada realidade do Brasil, ver as
dificuldades, os obstáculos, mapear os líderes que a população local seguia e
ouvia”, celebra ela. Mônica elogia a coordenação do PNI e sua dedicação em
atravessar o Brasil, ouvir os gestores locais de saúde e criar estratégias.
”Deu e segue a dar certo.”
No entanto, os
desafios se renovam no tempo, como evidenciam a epidemia de dengue e a alta
geral das arborviroses, diretamente associadas às mudanças climáticas. O que
significa que a saúde terá de lidar com consequências geradas pela ação de
outras esferas de governo e da sociedade. Isto é, o país terá de lidar de forma
permanente com novas e velhas doenças e conciliar diversas campanhas e
estratégias de prevenção. Enquanto a dengue bate recordes, doenças como a covid
e outras síndromes respiratórias também seguem em alta. No meio disso, há uma
população que “cansou” de se vacinar, comportamento natural após a sensação de
vitória sobre determinada doença. “As pessoas contam 4, 5 ou 6 doses e param.
Mas é importante alertar que o coronavírus ainda é uma das infecções
respiratórias que mais mata. Muita gente se preocupa com doenças que
numericamente matam muito menos do que a covid. E os grupos-alvo não estão
aderindo bem à vacinação, cuja proteção é curta”, Mônica alerta. A vacinação
contra covid não é mais “de reforço”, mas regular no calendário de imunizações.
Ainda assim, mesmo a população de idosos, mais atingida, não adere a ela como
seria necessário.
Médica pediatra com
experiência em elaboração em calendários vacinais, Mônica Levi foi eleita
presidente da Sociedade Brasileira em congresso recém-realizado em Recife. A
este boletim, ela destacou um número recorde de palestrantes e atividades no
Congresso, o que oferece um pequeno retrato de como o movimento formado em
torno da ciência venceu o embate político com o negacionismo.
Mas, apesar da vitória
incontestável sobre o negacionismo, o estado de alerta precisa se manter,
inclusive dentro do próprio SUS. “Infelizmente este inimigo tem aliados dentro
do próprio sistema de saúde, profissionais da saúde que fazem parte disso,
estão lá na ponta e falam para o pai, para a mãe, não vacinar seu filho. Não dá
para admitir que pessoas da linha de frente, no corpo a corpo com a população,
façam isso.”
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Confira a entrevista completa.
• Como você enxerga a retomada de taxas
mais altas de cobertura vacinal? O que isso diz a respeito do Plano Nacional de
Imunização sob o atual governo?
Estamos muito animados
com os resultados de tantas ações que foram direcionadas pelo governo, de
acordo com a prioridade de retomar coberturas vacinais. Foi um congresso com
grande foco nas campanhas de imunização. Houve investimento, organização
pessoal, compra de vacinas e reuniões com os estados e municípios. Foi muito
positivo porque o Brasil estava na lista dos 20 países com menor cobertura
vacinal em crianças do mundo. Agora, já saímos da lista e aquela curva de
decréscimo progressivo das coberturas vacinais foi revertida.
Estamos muito mais
próximos das metas, que costumam ser de 95% da população alvo, às vezes 90%.
Graças a Deus temos tido o incentivo, ações certeiras, estratégias corretas. O
atual governo acertou ao usar uma estratégia de microplanejamento, ao agir de acordo
com cada realidade do Brasil, ver as dificuldades, os obstáculos, mapear os
líderes que a população local seguia e ouvia (religioso, comunitário, um
artista). Foi feito um trabalho junto com essas pessoas influenciadoras, não só
da parte da saúde e a adoção de estratégicas customizadas, digamos assim, foi
certeira.
Houve muita dedicação
da coordenação do nosso Plano Nacional de Imunização, sob comando do doutor
Eder Gatti e gestão de microplanejamento com a Ana Catarina e mais algumas
pessoas o seguiram. Eles andaram o Brasil inteiro, fizeram reuniões com
gestores locais de saúde e foi assim que se criaram as estratégias. Deu e segue
a dar certo.
• Sem dúvida, a doença mais relevante em
termos de debate público e sua relação com a campanha de imunização é a
Covid-19, que ainda existe. Como analisa a abordagem do Estado brasileiro em
relação à vacinação de covid-19? Houve algum descuido na manutenção da sua
oferta?
A adesão à vacina de
covid-19 está muito baixa. Com a enorme epidemia de dengue o foco diminuiu,
pois é difícil desenvolver estratégias de comunicação para tantas doenças ao
mesmo tempo. Estamos num momento onde o governo focaliza o combate ao HPV e a
eliminação do câncer de colo de útero, com extensão da vacinação até 19 anos…
Pois apesar de se recomendar a vacinação antes, a estratégia é ir atrás de
adolescentes de 15 a 19 anos que perderam oportunidade e neste semestre, com a
baixa da dengue, podem tomar tal vacina.
Há outro aspecto
relativo à covid: a população se cansou de vacinar, é uma realidade. As pessoas
contam 4, 5 ou 6 doses e param. Mas é importante alertar que o coronavírus
ainda é uma das infecções respiratórias que mais mata. Muita gente se preocupa
com doenças que numericamente matam muito menos do que a Covid. E os
grupos-alvo não estão aderindo bem à vacinação, cuja proteção é curta. Não é
uma imunização vitalícia, como sarampo, catapora, que só se pega uma vez na
vida. Covid e influenza são como pneumonia: é possível ter várias vezes na
vida. É precisa entender que a vacina evita as formas graves da doença.
Existem diversas
pesquisas para entender porque o brasileiro deixa de tomar determinada vacina e
uma explicação central é que quando a doença está eliminada ou controlada, a
pessoa não se sente ameaçada de uma maneira grave e deixa de se imunizar. No
momento, ainda se soma um monte de fake news nas mídias, nas redes sociais e em
todos os lugares, vemos muita gente que se preocupa mais com os malefícios
imaginários do que os benefícios comprovados.
A covid merece mais
atenção agora, pois não tem uma sazonalidade demarcada, pode ter picos
variados. Agora tem um momento de maior incidência, junto com a influenza B que
subiu de novo, enquanto caíram bastante a influenza A e o vírus sincicial
respiratório (VSR). Como eu disse, é difícil fazer nova campanha nacional de
covid, de maneira que talvez a estratégia ideal seja a busca de grupos
prioritários. Como disse, não é fácil organizar várias campanhas ao mesmo
tempo. Penso que as crianças estão muito pouco vacinadas, o percentual de
crianças abaixo de 5 anos vacinadas é pequeno e as doses devem ser anuais.
Agora temos a vacina monovalente XBB para os prioritários e a adesão está
baixa. Aliás, devemos salientar que não se trata de dose de reforço e sim uma
vacinação regular do calendário. Deve ser tomada anualmente. E até os idosos,
que vinham com altas coberturas, reduziram sua adesão. É um problema a
enfrentar.
• A mídia relata, ainda que de forma muito
localizada, escassez de determinados tipos de imunizantes nesta ou naquela
localidade. Ainda que seja historicamente corriqueiro, não revela caminhos por
onde avançar na política de imunização? O que pensa dos projetos de aumento da
produção nacional de imunizantes?
Existem muitas vacinas
com acordo de transferência tecnológica com os laboratórios nacionais. Por
exemplo, a de gripe o Brasil comprou da Sanofi e do Pasteur durante vários
anos, e hoje o país é autossuficiente, o ministério não precisa mais comprá-la.
A de HPV já está sendo envasada aqui no Brasil, ainda não tem produção
nacional, mas é o caminho futuro. Existem limitações financeiras e produtivas
em alguns laboratórios, de modo que ampliar a produção não é tão simples. A
ideia é ser autossuficiente com todos os imunizantes do PNI e até se tornar um
exportador de vacinas, como no caso da febre amarela, produzida na Fiocruz, ou
da vacina de gripe feita pelo Butantan. Para ir além do que temos hoje, ser
totalmente independente e até um exportador, é de se supor uma ampliação do
nosso parque produtivo. É um problema estrutural do sul global.
Quanto à última vacina
de covid-19, teve uma licitação entre a Moderna e a Pfizer, motivo de maior
demora para a compra do país. O Brasil tem muita experiência, apesar de ser um
país gigante, o Programa Nacional de Imunização é muito robusto, com estruturação
para funcionar tudo bem, inclusive na distribuição. Mas às vezes ocorrem
problemas na distribuição por estados e municípios, como aqui em São Paulo,
onde as pessoas encontravam vacinas em uns, mas não em outros postos de saúde.
Isso desestimula,
principalmente se é uma pessoa que perde um dia de trabalho, um período, vai
para se vacinar, não consegue, não sabe quando vai chegar, porque nunca têm uma
resposta categórica sobre o dia em que vai estar disponível. A chance de tal pessoa
refazer o percurso é pequena. Mas as causas para baixa vacinação são
estruturais, como horários de atendimento alternativo. Para certas localidades,
deve se vacinar num domingo, outros locais devem ter postos abertos até de
noite, enfim, são detalhes da organização dos gestores estaduais e municipais,
de acordo com as características de cada localidade e sua população. Em cidade
pequena as campanhas podem usar carros com alto-falante, convocar as pessoas
para se vacinar num determinado dia e local contra uma gripe, por exemplo. Às
vezes é num parque ao invés do posto de saúde, enfim, são ações específicas que
dependem do município, da realidade do local, como o gestor planeja. Às vezes
tem vacina e o povo não vai, às vezes o povo vai espontaneamente e não tem
vacina. O brasileiro, de um modo geral, gosta de vacinação, faz parte da
cultura, principalmente da infantil. Já entre os adultos nem sempre há boas
adesões, mas todos os brasileiros sempre vacinaram seus filhos, sempre foi um
país exemplo para o mundo.
Agora, lidamos com uma
inundação de desinformação, é um dos grandes problemas que o Brasil enfrenta.
Comunicações certeiras, como combater as fake news e a desinformação que rola
nas redes sociais, são estratégias pensadas para enfrentar um inimigo. E infelizmente
este inimigo tem aliados dentro do próprio sistema de saúde, profissionais da
saúde que fazem parte disso, tem enfermeiras que estão lá na ponta e falam para
o pai, para a mãe, não vacinar seu filho. “Essa vacina pode matar, entendeu?” .
A pessoa vai lá para vacinar e recebe essa informação. A mesma coisa com o
adolescente: “você jura que vai dar essa vacina na sua filha?”.
Não dá para admitir
que pessoas da linha de frente, no corpo a corpo com a população, façam isso.
Devemos denunciá-las e precisamos de um canal fácil. Isso é algo a ser
melhorado e no pior dos casos pessoas que agem assim devem ser transferidas
para outra atividade, uma vez que são protegidas por leis de estabilidade no
cargo. Mas não podem estar próximas de uma sala de vacina.
• Outra campanha de vacinação importante
neste ano foi a de dengue O que pensa do Plano de Ação 2024/25 estabelecido
pelo ministério no seu combate? Havia como evitar a disseminação da doença como
vimos neste ano?
O plano tem o objetivo
primário de diminuir o número de casos e óbitos de dengue, não só dengue, mas
chikungunya, zika, oropouche, uma nova arbovirose com aumento explosivo de
casos. É coordenado pelo Ministério da Saúde em parceria com estados, municípios,
e também tem colaboração de diversas instituições públicas e privadas. Tais
organizações sociais têm suas causas, algumas trabalham no combate ao câncer,
outras em doenças cardíacas, enfim, é um auxílio importante, principalmente na
comunicação e suas formas de divulgação. Elas organizam, por exemplo, ações de
vigilância dos criadouros de mosquito. O Plano de Ação do governo tem seis
eixos básicos, de prevenção, vigilância, do controle do vetor, organização da
rede de assistência e manejo clínico dos casos suspeitos, preparação de
resposta às emergências e comunicação.
Agora, no período
inter-sazonal, a dengue baixou, mas no verão, uma época de chuvas, teremos novo
aumento, como praxe. Não sabemos se vai ser de novo um ano tão difícil quanto
foi 2024. Neste momento, há uma intensificação das ações de prevenção, com foco
em eliminação dos criadouros e outras técnicas que existem para controle
vetorial, uma ação importante sobre vigilância. É momento de intensificar a
investigação dos casos suspeitos e identificar os sorotipos circulantes, pois
há correntes de especialistas a prever a dengue tipo 3 como a dominante no
próximo ano.
Organizar o fluxo
assistencial é outro aspecto importante. É necessário capacitar os
profissionais da saúde para manejo clínico, não adianta só escrever diretrizes
e não treinar, precisa de um treinamento e monitoramento dos profissionais para
fazer o atendimento correto e em tempo oportuno. Deve se fazer uma gestão dos
estoques de inseticidas e dos insumos para o diagnóstico laboratorial e
assistência ao doente. Precisa de material, produtos para a eliminação dos
criadouros. Existem várias tecnologias cientificamente comprovadas que diminuem
a população de mosquitos e no período sazonal devem se adotar plano de
contingência, através do fortalecimento da rede de assistência para os
pacientes, a fim de diminuir a hospitalização e óbito.
O manejo clínico do
paciente é muito importante. Deve-se ainda intensificar e priorizar a coleta de
amostra dos exames com foco nos casos graves e fazer investigação dos óbitos.
Agora, devemos ver a expansão de técnicas como uso de larvicida nas periferias
de 17 municípios; pesquisadores da Fiocruz Amazônica desenvolveram uma
armadilha que atrai fêmeas, por exemplo, que pousam nos recipientes, depositam
os ovos que não vão se desenvolver. Outro método em expansão é o wolbachia, o
mosquito de laboratório depositado em locais de reprodução, que diminui a
dengue, zika e chikungunya onde tem sido testado.
Enfim, são estratégias
que têm se mostrado eficazes na diminuição da quantidade de mosquitos. No
âmbito doméstico, também são necessárias estratégias de combate a focos, com
vigilância, acesso a repelentes, campanhas de conscientização nos bairros,
carros com fumacê… Todas as estratégias devem ser ativadas, pois por ora os
mosquitos estão vencendo.
• Parece o mínimo quando se tem ciência de
que o aumento da incidência de arboviroses está diretamente ligado ao
aquecimento global, manifestado de forma bastante dura no país neste ano,
através de catástrofes variadas. Ou seja, o surto recorde de dengue talvez seja
mais um “novo normal”.
Sem dúvida, e estamos
falando de uma gestão ambiental que, portanto, foge da alçada do ministério e
secretarias de saúde. As consequências incidem na saúde da população, óbvio, e
revelam que a pauta ambiental precisa passar à prioridade global. Estamos num
país marcado por seguidas ondas de calor, tempo seco, depois chuvoso. São
Paulo, a cidade mais populosa do país, tem dias com quatro estações. Essa
bagunça climática e desmatamento ainda alto provocam incêndios, com imenso
prejuízo ao ser humano e aos animais. Isso é o castigo da natureza, que se
“defende” e responde às ações do homem. Já há modelos climáticos a afirmar uma
hipótese de um país inabitável da metade do século em diante, ainda no tempo de
vida de nossos filhos. Ou passamos a questão ambiental à prioridade ou
ficaremos apenas lutando contra consequências de eventos extremos e sua
destruição.
• A SBim realizou congresso em Recife
neste mês de setembro. Qual a importância do encontro desta categoria no atual
momento, marcado por um bizarro e criminoso negacionsimo, que volta à tona em
algumas campanhas eleitorais e segue respaldado por um órgão como CFM?
Em primeiro lugar,
destaco que a jornada de imunizações da SBIM já é o maior evento de imunizações
do mundo. Tivemos mais de 1.600 inscritos, foi realmente uma ocasião que reuniu
especialistas, não só médicos, mas profissionais da saúde que lidam com imunizações
num número recorde. Mais importante ainda é que tivemos as instituições
públicas lá, Fiocruz, Butantan, Ministério da Saúde, OPAS, que tiveram
participação relevante e reforçaram parcerias na produção e disseminação de
vacinas. Nesse sentido, reforçamos parcerias com a OPAS.
A grade científica foi
muito ampla, houve eventos para diversos públicos, aulas práticas e sessões com
atividades de treinamento de enfermeiras, de aplicação e manejo de caixas
térmicas para fazer vacinação fora das UBSs ou fora das clínicas, de populações
como a indígena e outras extramuros.
O país se vê próximo
de cumprir objetivos como a eliminação de meningite, câncer de colo de útero,
das novas vacinas que estão chegando, das que acabaram de ser disponíveis, como
do VSR, que não está disponível ainda no Programa Nacional de Imunização, mas
deve entrar pelo menos para gestante, a fim de prevenir o vírus da bronquiolite
e pneumonia em bebês, principalmente nos primeiros seis meses de vida, quando o
risco de formas mais graves é maior. Tais vacinas já chegam na rede privada,
também para idosos, de modo que devem chegar em breve no SUS.
Falamos de novas
diretrizes, atualização dos calendários vacinais, tanto no setor público quanto
no setor privado. Fizemos uma atualização deste calendário e celebramos a nova
vacina de pólio, que deixa de ser através da gotinha e passa a ser por meio “inativado”.
Enfim, foi um encontro
muito positivo diante do atual contexto que vive o país na política de saúde e
retomada das coberturas vacinais.
Fonte: Por Gabriel
Brito, em Outra Saúde
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