terça-feira, 8 de outubro de 2024

Carmem Feijo: ‘Porque a indústria deve liderar o crescimento - reindustrializar é preciso’

A economia brasileira está estagnada há mais de quatro décadas, crescendo em média abaixo da economia mundial. De 1981 a 2022, segundo os indicadores do Banco Mundial (WDI), a economia brasileira cresceu 2,2% ao ano, e a economia mundial 3,0% ao ano. Essa perda relativa de dinamismo está associada à perda de importância da indústria manufatureira no PIB nacional, ou seja, está associada ao processo de desindustrialização precoce e à especialização produtiva na produção de bens de baixo valor adicionado e intensivos em recursos naturais.

No contexto da transição climática, essa especialização expõe a economia a riscos físicos, de perdas patrimoniais e de capacidades, devido aos efeitos de eventos climáticos extremos. Nesse sentido, a característica atual da economia brasileira, de ´celeiro do mundo´, implica, além de manter baixo ritmo de crescimento, também elevada vulnerabilidade externa. A superação dessa situação perversa depende, dentre outras iniciativas, de uma transformação produtiva profunda.

Como apontado pela literatura estruturalista e desenvolvimentista, o setor da indústria de transformação é o com maior capacidade de alavancar o crescimento dos demais setores da economia. Isso porque o setor industrial manufatureiro é o que apresenta mais conexões diretas e indiretas na matriz produtiva e exibe maiores economias de escala estáticas e dinâmicas, além de incorporar e disseminar o progresso técnico mais rapidamente. Essas características permitem que os ganhos de produtividade na indústria e nos serviços a ela associados se espalhem por toda a economia, aumentando a produtividade agregada, e consequentemente a capacidade da economia exibir taxas mais elevadas e sustentáveis de crescimento a longo prazo. Um país que ainda não completou seu processo de industrialização, internalizando a produção de progresso técnico por meio da presença de setores e atividades tecnologicamente avançados, exibe baixa produtividade agregada em comparação com países de fronteira e tende a perder competitividade ao longo do tempo. O mesmo é observado no caso de um país que recua prematuramente do processo de industrialização, como é o caso da economia brasileira, que acentua sua desindustrialização nos anos 2000.

Mais especificamente, a economia brasileira passou por uma transformação produtiva acentuada a partir da década passada, quando o lento processo de desindustrialização, observado desde meados dos anos 1980, reduz seu potencial de alavancar o crescimento da economia. O Gráfico abaixo mostra a taxa de crescimento da indústria de transformação e da agropecuária em relação à taxa média de crescimento da economia desde 2000 (média 2000-2023). Observa-se que a partir de 2010, a taxa de crescimento da indústria de transformação situa-se sistematicamente abaixo da taxa média de 2000-2023 da economia. A taxa de crescimento da agropecuária, por sua vez, a partir de 2013 apresenta momentos em que cresce acima da média da economia (2013, 2017, 2023). Porém, como o setor tem menos encadeamentos para frente e para trás, seu efeito sobre a taxa média da economia é inferior ao da indústria manufatureira. Dito por outras palavras, o setor de agropecuária não tem capacidade de sustentar taxas elevadas de crescimento da economia para superar o longo período de estagnação relativa que nos encontramos. A título de ilustração, no período 2000-2023, o crescimento médio da agropecuária foi de 3,6 % ao ano, das indústrias extrativas de 3,5 % ao ano, e da indústria de transformação de apenas 0,7% ao ano. O PIB no mesmo período cresceu 2,3% ao ano.

Além de limitado poder de alavancagem e sustenação do crescimento agregado, a expansão do setor agropecuário, assim como do setor de indústrias extrativas, apresenta desafios à preservação do meio ambiente. Vale mencionar que a discussão sobre transição climática no cenário internacional dá ênfase, acertadamente, na transição energética. O aquecimento global está em grande medida associado à queima de energia de origem fóssil. Essa não é, contudo, a realidade brasileira. Nossa matriz energética é considerada relativamente limpa, e nossa principal contribuição ao aquecimento global se dá pelo desmatamento e uso da terra. Ou seja, a expansão da fronteira de produção com atividades de agropecuária e extrativistas é a maior ameaça à preservação ambiental.

Nesse sentido, a proposta de reindustrialização da economia brasileira, seguindo as diretrizes do Plano de Transformação Ecológica e do programa da Nova Indústria Brasil, além de definida com o compromisso de aumentar a eficiência energética e o uso de recursos naturais não renováveis, se lograr recuperar o dinamismo da economia brasileira, irá contribuir para uma expansão dos setores agropecuário e extrativista mais comprometidos com a preservação ambiental.

Em conclusão, combinar crescimento econômico e preservação ambiental, no caso da economia brasileira, não é incompatível, desde que se observe a composição dos setores que lideram o crescimento econômico. A reindustrialização da economia brasileira, se bem-sucedida, deve contribuir para recuperar nossa capacidade de crescer, gerar empregos de qualidade e zelar pela transição justa e inclusiva.

 

•                                         “Financismo”: necessário e (in)suficiente.  Por Fernando Nogueira da Costa

A mente humana abomina complexidade quando não a compreende. É necessário entender um sistema complexo como emergente de interações entre diversos componentes, por exemplo, todos os agentes econômicos.

“Não adianta abraçar o mundo com as pernas se suas mãos estão ocupadas”. Este provérbio popular, no caso, sugere não tentar entender o complexo sistema econômico-financeiro se sua mente está preocupada em denunciar a “financeirização” do capitalismo!

A crítica moralista-religiosa (ou ideológica) abomina o dito “financismo” por não compreender sua complexidade. Não é tão difícil se não tiver só preconceitos. Sugiro a quem desejar, partir de uma visão holista, isto é, do todo (holos em grego).

Top-down e bottom-up são dois modos de abordar problemas, projetos ou processos com a intenção de obter um resultado desejado. “De cima para baixo” é uma abordagem hierárquica iniciada de ideias gerais antes de chegar às mais específicas, enquanto “de baixo para cima” parte dos detalhes até chegar à visão geral.

A primeira ideia geral é todos os agentes econômicos participarem do sistema financeiro, ou seja, não tem sentido lógico apresentar como antagônicos o “setor produtivo” e o “setor financeiro”. Tem intelectual inconformado a ponto de afirmar esse “conflito de interesses” – não à toa, juros é interest em inglês e intérêt em francês – ter substituído a luta de classes entre os trabalhadores e os capitalistas!

Para facilitar o entendimento das interconexões entre esses clientes e/ou agentes do sistema financeiro, é conveniente agrupá-los em cinco setores institucionais: famílias, empresas não-financeiras, governos, bancos e resto mundo. Cada qual tem suas finanças particulares, as quais se interrelacionam.

As interrelações entre finanças pessoais, corporativas, públicas, bancárias e internacionais devem ser entendidas do modo como configuram um sistema complexo de fluxos e estoques financeiros interativos de maneira dinâmica. Essas áreas financeiras, embora distintas à primeira vista, estão profundamente interligadas através de vários canais econômicos, regulatórios e comportamentais.

É didático detalhar essas interrelações com foco em fluxos e estoques financeiros. Em Finanças Pessoais, os fluxos são ou os de rendimentos recebidos (entradas) como salários (renda do trabalho), juros sobre investimentos financeiros, aluguéis de imóveis, dividendos de empresas e outros fluxos de receita ou os de gastos (saídas), como consumo, pagamentos de dívidas e impostos ou outros compromissos contratuais. O estoque refere-se à riqueza individual ou familiar acumulada, como poupança, investimentos (em ações, títulos, imóveis), patrimônio líquido (diferença entre ativos e passivos) ou saldos financeiros.

Como as finanças pessoais têm interações com as demais finanças? No caso das corporativas, as pessoas investem em ações ou títulos de dívida direta, financiando as empresas e, em contrapartida, recebem dividendos ou juros. No caso das públicas, pagam impostos para financiar o governo, influenciando o orçamento público, e recebem benefícios sociais ou subsídios. No caso das bancárias, poupam ou tomam empréstimos em bancos, efetivando a oferta de crédito. Finalmente, no caso das internacionais, podem consumir produtos estrangeiros ou investir em mercados externos impactando, respectivamente, o comércio internacional e os fluxos de capital entre países.

Nas Finanças Corporativas, os fluxos de entrada são gerados por receitas de vendas, despesas operacionais, investimentos, emissões de ações ou títulos, e os de saída por pagamento de juros e dividendos. O estoque inclui ativos (formas de manter riqueza) como instalações, equipamentos, estoques, capital intelectual, e passivos (todas as obrigações financeiras de uma empresa) como as dívidas.

Suas interações acontecem com  os diversos agentes econômicos. As empresas dependem do consumo dos indivíduos e, por sua vez, pagam salários como entrada nas finanças pessoais. Empresas também recebem investimentos de indivíduos e fundos de pensão de trabalhadores. Pagam impostos e recebem incentivos fiscais. O governo pode ser cliente ou conceder contratos públicos como os de concessões de serviços de utilidade pública. Empresas não-financeiras dependem de financiamento bancário para expansão ou capital de giro. Bancos também fornecem serviços financeiros às empresas. Elas importam e exportam produtos, investem no exterior e se financiam em mercados internacionais. Movimentos de capitais corporativos impactam os fluxos de comércio e de capital entre países.

Fluxos em Finanças Públicas envolvem receitas (impostos, tarifas, empréstimos) e despesas (gastos sociais com educação, saúde, gastos em investimentos públicos e encargos financeiros com pagamento de juros da dívida pública). O estoque refere-se ao endividamento público (dívida interna e externa) e aos ativos públicos (reservas, ações de estatais, infraestrutura etc.).

Os cidadãos pagam impostos e recebem serviços públicos ou transferências. A dívida pública também afeta a carga tributária futura e a oferta de crédito para o setor privado. O governo fornece incentivos fiscais para corporações, faz compras públicas e regula o ambiente de negócios. O nível de dívida pública impacta a taxa de juros, afetando o custo de financiamento para as empresas. O governo emite títulos da dívida, comprados por bancos, inclusive dealers em nome de fundos de investimentos ou fundos de pensão. A política fiscal afeta as taxas de juros e, portanto, o custo do crédito no sistema bancário. Tributações sobre importação ou exportação afetam o balanço comercial e governos se financiam no exterior, inflando os fluxos de capital internacionais. Além disso, investimentos estrangeiros em dívida pública impactam os fluxos financeiros globais.

Quanto às Finanças Bancárias, seus fluxos envolvem os empréstimos concedidos, pagamentos de juros, captação de depósitos e outras fontes de recursos com emissões de títulos de dívida etc. Seu estoque inclui ativos bancários (empréstimos, reservas, investimentos) e passivos (depósitos e saldos de dívida).

Bancos emprestam para indivíduos (financiamentos imobiliários, empréstimos pessoais) e captam suas poupanças. Alterações nas taxas de juros afetam as decisões de consumo e investimento dos indivíduos. Bancos concedem crédito para operações de empresas e para projetos de expansão, além de gerirem suas operações financeiras, como tesouraria e câmbio. Bancos compram títulos da dívida pública, financiando o governo, e as políticas monetárias influenciam a liquidez do sistema bancário. Bancos operam no mercado internacional, movimentando capitais entre fronteiras, realizando operações de câmbio e captando recursos no exterior. Interagem com todos os agentes econômicos!

Em Finanças Internacionais, fluxos são compostos por movimentos de capital (investimentos estrangeiros diretos e em portfólio), comércio internacional (exportações e importações), remessas e fluxos de pagamento de serviços financeiros. O estoque refere-se aos ativos e passivos de um país em relação ao resto do mundo, incluindo reservas internacionais, dívidas externas e investimentos estrangeiros.

As interações são globais. Indivíduos podem enviar ou receber remessas do exterior, investir em mercados estrangeiros e consumir produtos importados, influenciando o fluxo de capitais e o comércio internacional. Empresas participam ativamente do comércio internacional e recebem investimentos ou financiam-se em mercados estrangeiros. Certos governos dependem de financiamento externo e gerenciam sua posição externa, como o balanço de pagamentos e as reservas internacionais. Déficits ou superávits comerciais afetam a política fiscal e monetária. Bancos movimentam grandes volumes de capital internacional e operam em diferentes jurisdições, facilitando fluxos de investimento e o comércio.

Essas cinco esferas formam um sistema interdependente de fluxos e estoques financeiros, onde mudanças em uma área impactam diretamente as demais. Por exemplo, um aumento nos gastos públicos (finanças públicas) pode elevar a dívida do governo, levando a uma maior emissão de títulos. Esta afeta as taxas de juros e a oferta de crédito (finanças bancárias). Isso, por sua vez, impacta o financiamento de empresas (finanças corporativas) e o comportamento de consumo e poupança dos indivíduos (finanças pessoais).

A movimentação de capital internacional afeta o câmbio, alterando as condições de comércio e financiamento para as empresas e bancos, enquanto também influencia a política monetária e fiscal do governo. Na economia globalizada, todos os agentes econômicos podem se interrelacionar – e há retroalimentação!

Portanto, esses fluxos e estoques financeiros funcionam em um circuito dinâmico, no qual decisões e eventos em uma esfera afetam todas as outras em múltiplas direções. Em vez de denunciar o “financismo”, mais sábio é buscar o entender…

 

Fonte: Blog: Democracia e Economia – Desenvolvimento, Finanças e Política/Jornal GGN

 

 

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