Luiz Marques: A eleição do continuísmo
Esta foi a eleição do
continuísmo. A famosa ave de Minerva só alça voo quando cai o crepúsculo. A
opção dos eleitores foi reeleger os atuais “gestores”; a palavra de cunho
neoliberal despolitiza suas decisões, por retirar a dimensão política inerente
às escolhas governamentais. Vinte prefeitos nas capitais das unidades
federativas competiam pela reeleição. Quatro ficaram pelo caminho, ainda na
batalha do primeiro turno – Belém/PSol, Fortaleza/PDT, Goiânia/Republicanos,
Teresina/PRD.
Onze seguem governadas
pelo mesmo partido político – Boa Vista/MDB, Florianópolis/PSD, Macapá/MDB,
Maceió/PL, Rio Branco/PL, Rio de Janeiro/PSD, Salvador/União Brasil, São
Luís/PSD, Teresina/União Brasil, Vitória/Republicanos. De centro esquerda, há
Recife/PSB.
Em quinze haverá um
segundo round – Aracaju (PL vs. PDT), Belém (MDB vs. PL), Belo Horizonte (PL
vs. PSD), Campo Grande ((PP vs. União), Cuiabá (PL vs. PT), Curitiba (PSD vs.
MDB), Fortaleza ((PT vs. PL), Goiânia (PL vs. União), João Pessoa (PP vs. PL), Manaus
(Avante vs. PL), Natal (União vs. PT), Palmas (PL vs. Podemos), Porto Alegre
(MDB vs. PT), Porto Velho (União vs. Podemos), São Paulo (MDB vs. PSOL). A
esquerda do espectro político comparece em cinco.
Fundado em 2011, o PSD
tornou-se a agremiação de centro direita mais forte no país, desbancando o MDB
após duas décadas. Na lista dos melhores colocados constam: PSD (878), MDB
(847), PP (743), União Brasil (578), PL (510), Republicanos (430), PSB (309),
PSDB (269), PT (248). As volumosas emendas parlamentares, na distribuição de
recursos para prefeituras, pesam na balança. O regalo do Erário repercute nos
números do Centrão. Para o ministro-chefe da Secretaria de Relações
Internacionais, Alexandre Padilha, “a Frente Ampla de Lula venceu a extrema
direita nas eleições”. A aliança com vista em 2026 explica a retração
presidencial nas campanhas petistas.
• Estratégia de poder
O caráter imoral da
prática institucionalizada no uso de receitas públicas traz embutido o
sequestro das atribuições clássicas do Executivo, em um regime
presidencialista. O que não parecia óbvio é a estratégia de poder adotada para
fazer um cerco às prerrogativas legais da Presidência. Junto com a
autonomização do Banco Central que garante as rédeas da política monetária nas
mãos das finanças, as “emendas secretas” – por Pix – formam um movimento em
pinça para expandir os valores da desindustrialização, do empreendedorismo, do
equilíbrio fiscal, da uberização do trabalho e da financeirização dos espaços
públicos. A política e a economia são enlaçadas na espúria articulação.
No plano do cotidiano,
a irradiação dos valores acima é exemplificada em áreas de apelo popular, como
é o caso dos clubes de futebol nas metrópoles, através das SAFs, dos
patrocínios das BETs e das agências financeiras estampadas nos uniformes. A
variável Dinheiro-Dinheiro (D-D), sem a mediação da Mercadoria (D-M-D), auxilia
no convencimento sobre a superioridade das iniciativas financistas para gerir o
conjunto das atividades socioeconômicas. Inclusive nos entretenimentos
tradicionalmente reservados às paixões aprendidas na infância. O cifrão é a luz
no fim do túnel.
Naturalizar o status
quo é fundamental para assegurar a ordem social e inibir as manifestações de
insatisfação das massas. O esquema acarreta benefícios indiretos ao fortalecer
as bases sociais de um modelo econômico excludente. Desaparecem as políticas estatais
de formalização do labor e construção de um mercado interno robusto. A
dominação ideológica torna os bilhões despendidos uma pechincha para os
interesses do rentismo. Na expressão de Georg Simmel, a “philosophy of money”
ao penetrar a subjetividade das periferias diminui em muito as chances de
sucesso dos movimentos políticos para mudanças. Bota uma coleira invisível na
rebeldia revolucionária.
“O neoliberalismo
transformou profundamente o capitalismo, transformando profundamente as
sociedades. Neste sentido, o neoliberalismo não é apenas uma ideologia, uma
política econômica. É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo
inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas
as esferas da vida”, afirmam Pierre Dardot e Christian Laval, no Prefácio à
edição brasileira de A nova razão do mundo. Se conhecessem o papel da “Teologia
da Prosperidade” e da “Teologia do Domínio”, na consciência periférica, os
doutos da Universidade de Nanterre brindariam os leitores com outro capítulo,
na bela obra. Sem conhecer, intuíram na mosca.
• Espírito do tempo
A polarização entre a
democracia e o neofascismo é a forma da polaridade, na política, que divide os
que desistem e os que são bem-sucedidos na sociedade. A energia, a
solidariedade e a cidadania se esvaem no fosso “meritocrático” que separa os
losers dos winnies, os perdedores dos vencedores. A abstenção eleitoral, que
confere um título de campeã para a capital gaúcha na disputa dominical, exprime
a apatia e a dessindicalização pelo fim do trabalho industrial e, com a evasão
nas Ciências Humanas, do ensino universitário como veículo da mobilidade
social. O desencanto não vota.
A subjetivação
neoliberal internaliza a concorrência da guerra de todos contra todos, causando
um enorme sofrimento – privado e público – para as pessoas que se distanciam
dos padrões enaltecidos pela dita normalidade. A revolta social antineoliberal
dá lugar ao sofrimento psíquico, à desvalia, ao ressentimento e ao ódio.
Entende-se que possa desembocar na adesão às aberrações execráveis, as quais
desconstituem os pilares da civilidade e do próprio Estado de direito
democrático. O esgoto só serve para alcançar a liberdade nos filmes de
Hollywood, sobre as falhas do sistema de justiça.
O retrocesso
civilizacional está condensado em Donald Trump, Javier Milei, Jair Bolsonaro,
Pablo Marçal e quetais. No esgarçamento dos limites da democracia,
regulamentações perdem o prestígio para frear a barbárie do laissez-faire. O
distópico anarcocapitalismo converte-se em alternativa aos olhos da multidão,
sem uma identidade de classe. A alienação então generaliza a estupidez. O livre
arbítrio confunde-se com o narcisismo sombrio. A dissonância cognitiva cria a
realidade paralela.
As condições de um
confronto de grande amplitude entre lógicas contrárias e correntes adversas
estão se avolumando, em escala mundial. No curto prazo, as irracionalidades
fazem jus ao espírito de nosso tempo, a Post-Truth / Pós-Verdade, conforme o
Dictionary Oxford. São suspensos juízos morais sobre a conduta delinquente dos
líderes: furto de joias, estelionatos. A inteligência artificial, a serviço das
Big Techs, não é a chave para a emancipação, senão o atalho da servidão
voluntária.
• Princípio do comum
Para Pierre Dardot e
Christian Laval, “A esquerda somente poderá tirar partido disso se souber
remediar a pane de imaginação que vem sofrendo. Temos de desenvolver uma
capacidade coletiva que ponha a imaginação política para trabalhar a partir das
experimentações das lutas do presente”. É preciso conceber uma perspectiva de
governança administrativa colada aos movimentos sociais, com pautas
universalistas e também pautas contra as discriminações racistas, sexistas,
transfóbicas.
Há que revelar uma
vontade nítida de reorientação nas prioridades programáticas, contrariamente ao
que é implantado pela direita, de praxe. A cidade que queremos é a das
megaconstrutoras com edifícios na orla e desprezo por moradias sociais, escolas
públicas e postos de saúde? Que relega o transporte coletivo e o saneamento
básico para privatizá-los? Que faz cara de paisagem a demandas por ciclovias,
para atender a pressão pelo estacionamento de carros particulares no meio-fio,
das avenidas? É a cidade que teme o Orçamento Participativo? Não. É a cidade
inclusiva, consciente.
A cidade que queremos
reinventa a democracia. Propõe atividades culturais e esportivas. Olha para a
encosta de morros. Previne contra enchentes. Tem a ecologia na agenda do
progresso sustentável. Zela pelas árvores. Rega a diversidade e o pluralismo.
Embeleza as paredes com murais artísticos como Diego Rivera que, embora de
origem judaica, não apoiaria os bombardeios na Faixa de Gaza.
O “princípio do comum”
que emana dos movimentos deve prevalecer em uma República. A cidade pertence
sim aos moradores, não aos especuladores ou ao lucro. As ações comunitárias
apagam o abismo existente entre os destinos que habitam os territórios urbanos
cindidos, apesar do prefixo BR indicado nas rodovias. Cabe à esquerda superar a
selva de pedra neoliberal, no combate por uma nova governabilidade, uma nova
sociabilidade e uma nova rede de afetos políticos. “Luxo saber / além destas
telhas / um céu de estrelas”, sonha em vigília o poeta trotskista, em um
valente haikai.
• A direita vence as eleições de 2024 e a
esquerda comemora ‘representatividade’. Por Vitor Hugo Fernandes
As eleições municipais
sempre tiveram características próprias. Sempre foram as menos politizadas,
onde, nas últimas duas décadas, pelo menos, parece eleição para síndico de
prédio. Aí, obviamente, o poder econômico da burguesia e dos coronéis da
política pesam mais.
A direita sempre venceu as eleições municipais
devido ao seu poder econômico, particularmente no interior do país. Em grande
parte das cidades do interior Brasil, sequer tem candidatos de esquerda para as
prefeituras. Então, para avaliar a vitória ou derrota de um campo político,
temos que observar quem cresceu e quem diminuiu em votos e em prefeitos e
vereadores eleitos.
Com o retorno de Lula ao governo federal, era
esperado que a esquerda voltasse a crescer nas eleições municipais, já que o
apoio do governo central é fundamental para as campanhas às prefeituras.
Vejamos então o que aconteceu comparando o
resultado das eleições municipais de 2020 para as de 2024 (no primeiro turno):
Os principais partidos da direita e
extrema-direita no Brasil, vão comandar 70% dos municípios brasileiros.
Somados, PL, Republicanos, PSD, PP, MDB e União Brasil, vão comandar esses 70%
de municípios.
O PL de Bolsonaro, de
extrema-direita, foi o partido que mais cresceu em votos, saindo de 4,7 milhões
para 15,7 milhões de votos, crescendo 236%. Com relação a prefeitos eleitos,
saiu de 334 para 512. Um crescimento de 53%.
O PSD de direita liberal, saiu de 10,6 para
14,5 milhões de votos, crescendo 36%. Com relação a prefeitos eleitos, subiu de
657 para 882. Um crescimento de 34%.
O MDB, de direita liberal, saiu de 10,9 para
14,4 milhões de votos, crescendo 32,5%. Com relação aos prefeitos eleitos,
subiu de 793 para 856. Um crescimento de 8%.
O Republicanos,
partido ligado à Igreja Universal, tem tido extraordinário crescimento nas
últimas eleições e saiu de 5 para 7,4 milhões de votos, crescendo 46%. Com
relação aos prefeitos eleitos, subiu de 213 para 436. Um crescimento de 223%.
Já o PT, saiu de 6,9
para 8,9 milhões de votos, crescendo 28,2%. Com relação aos prefeitos eleitos,
subiu de 182 para 248. Um crescimento de 36%. Mesmo com esse crescimento, se
observarmos as perdas da última década, o PT está longe do que foi há poucos anos.
Em 2012, o PT elegeu 11% do total de prefeitos; em 2016, caiu para 5%; em 2020,
para 3% e agora subiu para 4%.
O PDT teve forte
queda, saindo de 5,3 para 3,2 milhões de votos, perdendo 40% dos votos que teve
em 2020. Com relação aos prefeitos eleitos, caiu de 315 para 149. Uma perda de
53% com relação a 2020.
O PCdoB teve forte queda, saindo de 1,2 para
0,3 milhões de votos, perdendo 76% dos votos que teve em 2020. Com relação aos
prefeitos eleitos, caiu de 46 para 19. Uma perda de 61% com relação a 2020.
O PSOL saiu de 2,2 para 2,6 milhões de votos
(dos quais 1,7 vieram de Guilherme Boulos em São Paulo), um crescimento de 16%.
Com relação aos prefeitos eleitos, caiu de 5 para 0 prefeitos eleitos,
incluindo Belém (Pará), que foi perdida nessas eleições.
Como podemos observar,
as derrotas no campo da esquerda são significativas. O bolsonarismo segue firme
e forte; a direita liberal, chamada de “centrão”, ampliou mais ainda a sua
força, forçando o PT a se render mais ainda à chantagem por cargos e emedas parlamentares.
Paralelamente à vitória eleitoral e política
da direita, a esquerda, focada o identitarismo e ignorando o quadro geral,
parece se contentar em aumentar a “representatividade”. Se comemora (com
razão), a eleição de mais LGBTs, PCDs, mulheres, negros, etc. Mas não se faz a
crítica do quadro geral de para onde a esquerda brasileira está caminhando. Por
que estamos encolhendo? Por que tantos jovens periféricos votaram em Pablo
Marçal em São Paulo? Parece que o quadro geral, da esquerda perdendo força ou
não conseguindo nem de longe se recuperar do tombo pós 2016, não importa, desde
que tenha “representatividade”.
Fonte: A Terra é
Redonda/Jornal GGN
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