Brasil: O
preço emocional do trabalho
No
cenário laboral contemporâneo brasileiro, a experiência emocional dos
trabalhadores emerge como um fenômeno complexo, fruto de um processo histórico
e cultural de formação da classe trabalhadora. Um recente relatório da Gallup,
intitulado “State Of The Global Workplace“, revela uma realidade
alarmante que não pode ser compreendida isoladamente, mas como parte de uma
narrativa mais ampla da construção da identidade do(a) trabalhador(a)
brasileiro(a): 46% dos trabalhadores e trabalhadoras relataram sentir estresse,
25% tristeza e 18% raiva com o trabalho no dia anterior à pesquisa (Folha de
S.Paulo, 2024).
Estes
números, longe de serem meros dados estatísticos, representam a manifestação
concreta da experiência vivida pelos trabalhadores brasileiros. Eles nos contam
uma história de lutas, adaptações e resistências frente às mudanças nas
relações de trabalho ao longo do tempo. O quarto lugar do Brasil em sentimentos
de raiva e tristeza e o sétimo em estresse na América Latina não são apenas
posições em um ranking, mas indicadores de um processo histórico de formação da
classe trabalhadora brasileira.
Para
compreender verdadeiramente esse fenômeno, é crucial examinar a trajetória
histórica das relações de trabalho no Brasil. A experiência da classe
trabalhadora brasileira foi moldada por séculos de escravidão, seguidos por um
processo de industrialização tardio e uma modernização conservadora que
frequentemente priorizou o crescimento econômico em detrimento do bem-estar dos
trabalhadores. As recentes instabilidades econômicas, altas taxas de desemprego
e mudanças nas leis trabalhistas são apenas os capítulos mais recentes dessa
longa narrativa.
O
DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos)
tem documentado como as recentes reformas trabalhistas representam uma nova
fase nessa história, alterando significativamente a experiência do trabalhador
brasileiro. Essas mudanças não são apenas legais ou econômicas, mas transformam
profundamente a forma como os trabalhadores se percebem e se relacionam com seu
trabalho e entre si (DIEESE, 2023).
A
pejotização, por exemplo, não é apenas uma mudança na forma de contratação, mas
uma reconfiguração da própria identidade do trabalhador. Ao se tornar “pessoa
jurídica”, o trabalhador vive uma experiência de atomização e individualização
que contrasta com a tradicional solidariedade de classe. O IPEA (Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada) descreve a resultante “trajetória ioiô” [fenômeno
típico de trabalhadores precarizados que, sem acesso a direitos trabalhistas,
acabam circulando pelo mercado de forma instável, fazendo serviços temporários,
com alternância entre emprego e desemprego] no mercado de trabalho não
apenas como um fenômeno econômico, mas como uma nova forma de viver e
experimentar o trabalho, carregada de incertezas e ansiedades (IPEA, 2022).
O
Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT) da Unicamp tem
argumentado que a flexibilização das relações de trabalho representa uma
ruptura com formas anteriores de organização e resistência da classe
trabalhadora. A constante pressão por performance e a alta competitividade não
são apenas demandas do mercado, mas elementos que moldam ativamente a
consciência e a experiência cotidiana dos trabalhadores (CESIT, 2023).
É
fundamental entender que as emoções de estresse, tristeza e raiva reportadas
pelos trabalhadores não são respostas individuais isoladas, mas parte de uma
experiência coletiva compartilhada. Elas refletem uma consciência de classe em
formação, que responde às mudanças nas condições materiais e culturais do
trabalho no Brasil contemporâneo. Como observa o professor Nilton Ota da USP,
“O trabalho molda aspectos importantes da subjetividade, que não ficam
restritos ao ambiente profissional, mas se estendem à vida privada e familiar”
(Folha de S.Paulo, 2024). Esta observação ressoa com a ideia de que a
formação da classe trabalhadora é um processo que permeia todos os aspectos da
vida social.
A
pandemia de covid-19, longe de ser um evento isolado, se insere nessa narrativa
histórica como um momento de ruptura e reconfiguração das relações de trabalho.
Como aponta Lucia Barros, “Mesmo após dois anos, o trauma coletivo permanece”
(Folha de S.Paulo, 2024). Este trauma coletivo não é apenas uma consequência da
pandemia, mas se soma a uma longa história de experiências compartilhadas que
formam a consciência da classe trabalhadora brasileira.
Do
ponto de vista da saúde pública, os altos níveis de estresse, tristeza e raiva
entre os trabalhadores brasileiros não podem ser reduzidos a problemas
individuais de saúde mental. Eles são manifestações físicas e emocionais de uma
experiência de classe, moldada por condições históricas específicas. O
psiquiatra Arthur Danila, ao explicar como o estresse prolongado pode levar a
um estado de alerta constante (Folha de S.Paulo, 2024), está descrevendo
não apenas um processo fisiológico, mas uma condição existencial da classe
trabalhadora contemporânea.
A
perspectiva de Lucia Barros de ver essas emoções como “desafiadoras” ou
“desconfortáveis” ao invés de simplesmente “negativas” (Folha de S.Paulo,
2024) abre espaço para entender como os trabalhadores ativamente interpretam e
dão significado à sua experiência. Esta abordagem ressoa com a ideia de que a
classe trabalhadora não é um objeto passivo das forças econômicas, mas um
agente ativo na construção de sua própria história.
As
implicações desses dados vão além do bem-estar individual dos trabalhadores.
Eles refletem um momento específico na formação da classe trabalhadora
brasileira, com potenciais consequências para a organização do trabalho, a
produtividade e a competitividade das empresas. Os estudos do IPEA sobre a
correlação entre o bem-estar dos trabalhadores e o desempenho econômico das
organizações (IPEA, 2021) podem ser lidos como uma manifestação das tensões
inerentes ao sistema capitalista, onde as necessidades dos trabalhadores
frequentemente entram em conflito com as demandas do capital.
Para
enfrentar esse desafio histórico, é necessária uma abordagem que reconheça a
agência dos trabalhadores na construção de sua própria realidade. No nível
governamental, a revisão e fortalecimento das leis trabalhistas não deve ser
vista apenas como uma questão técnica, mas como um campo de disputa onde
diferentes visões sobre o trabalho e a sociedade se confrontam. O DIEESE, ao
defender políticas que promovam o trabalho decente (DIEESE, 2024), está
essencialmente propondo uma reconfiguração das relações de poder no mundo do
trabalho.
No
âmbito corporativo, programas de bem-estar e políticas de equilíbrio entre vida
profissional e pessoal não são apenas benefícios, mas respostas às demandas
históricas da classe trabalhadora por melhores condições de vida e trabalho.
Eles representam uma negociação contínua entre capital e trabalho, moldada pela
experiência e resistência dos trabalhadores ao longo do tempo.
A
nível individual, práticas como mindfulness e meditação,
sugeridas por Lucia Barros, podem ser entendidas não apenas como técnicas de
autoajuda, mas como formas de resistência e adaptação desenvolvidas pelos
trabalhadores para lidar com as pressões do trabalho contemporâneo. O cultivo
de relacionamentos saudáveis e a busca por um propósito no trabalho são
expressões de uma consciência de classe em formação, que busca dar sentido à
experiência do trabalho além da mera sobrevivência econômica.
É
crucial ressaltar que a experiência emocional dos trabalhadores brasileiros não
pode ser compreendida ou abordada isoladamente. Ela é parte de um processo
histórico mais amplo de formação da classe trabalhadora, que envolve lutas,
negociações e adaptações constantes. O CESIT, ao argumentar por um novo pacto
social (CESIT, 2024), está essencialmente propondo uma reconfiguração das
relações de classe no Brasil.
Em
conclusão, os dados apresentados pela pesquisa da Gallup devem ser entendidos
não apenas como indicadores de problemas individuais, mas como manifestações de
um processo histórico de formação da classe trabalhadora brasileira. Os altos
níveis de estresse, tristeza e raiva são expressões de uma experiência
coletiva, moldada por condições materiais e culturais específicas.
À
medida que o Brasil enfrenta os desafios do século XXI, incluindo as rápidas
mudanças tecnológicas e as pressões econômicas globais, a experiência emocional
dos trabalhadores continuará a se transformar. O futuro do trabalho no Brasil
será determinado não apenas por forças econômicas impessoais, mas pela forma
como os trabalhadores, coletivamente, interpretarão, resistirão e darão forma a
essas mudanças.
A
criação de ambientes de trabalho que não apenas gerem valor econômico, mas
também nutram a saúde mental e emocional dos trabalhadores, não é apenas uma
questão de política corporativa ou governamental. É um processo histórico de
negociação e luta, no qual a classe trabalhadora brasileira desempenha um papel
ativo. Somente através desse processo contínuo de formação e reformação da
experiência de classe poderemos construir uma economia verdadeiramente
resiliente e uma sociedade mais justa e satisfeita.
Fonte:
Por Erik Chiconelli Gomes, em Outras Palavras
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