Elaine Tavares: ‘Um mundo sem lei’
Já faz um bom tempo
que o chamado direito burguês não consegue mais manter a ilusão de justiça.
Qualquer criança sabe que via o judiciário só o que se pode esperar é o reforço
ao poder dominante. Vimos isso no cotidiano, quando um cara com um vinagre na bolsa
passa anos na cadeia, enquanto um candidato que forja um atestado médico segue
atuando livremente, enganando incautos. Ou quando algum milionário que atropela
e mata alguém segue sua vida sem rugosidades. Ou quando algum político saúda
torturadores e a ditadura, e não sofre qualquer sanção. Ninguém crê no
judiciário. Por isso é tão angustiante ver gente da chamada esquerda se
amparando em tipos como Alexandre Moraes.
O caráter de classe do
judiciário esteve por muito tempo obscurecido por essa ilusão de que poderia
haver justiça. Agora não mais. Tudo está às claras. Na macropolítica, assim
como no cotidiano, é justamente o judiciário o poder que vem aplicando e consolidando
golpes de Estado naquilo que as mentes colonizadas chamam de “lawfare”, ou
seja, uma guerra jurídica.
Para quem não se
lembra, foi assim em Honduras, em 2009, quando o presidente Mel Zelaya queria
fazer uma consulta à população e a Suprema Corte decidiu que era ilegal, e
permitiu o golpe. No Paraguai, em 2012, também foi o judiciário que decidiu
responsabilizar o presidente Fernando Lugo por um conflito entre camponeses e
policiais. Lugo foi deposto praticamente sem direito a se defender.
No Brasil, em 2016,
Dilma Rousseff foi acusada de pedaladas fiscais e também sacada da presidência.
As tais pedaladas que eram práticas correntes foram legalizadas pouco depois.
Na Bolívia, em 2019, Evo Morales também sofreu os ataques do judiciário e acabou
tendo de abandonar o governo. Pedro Castillo, do Peru, em 2022 igualmente
sofreu perseguição por parte do judiciário que alegava não ter ele as
“condições morais e intelectuais” de governar. Um verdadeiro acinte à
inteligência humana.
Agora, em 2024, mais
uma vez em Honduras, a presidente Xiomara Castro denuncia tentativas de
desestabilização do governo por parte dos Estados Unidos, que não quer que
Honduras atue junto com a Venezuela em práticas comerciais e políticas. Além
disso, Xiomara decidiu encerrar um tratado de extradição com os EUA que,
segundo ela, é uma arma contra as autoridades locais. Que ninguém se surpreenda
se não vier alguma acusação de crime para a presidente.
Nesta semana o
presidente da Colômbia, Gustavo Petro, foi surpreendido pela abertura de
investigação por exceder o limite de financiamento para sua campanha em 2022.
Quem pediu a investigação foi um juiz ligado a Álvaro Uribe. Ou seja. Novidade
alguma no front. Petro já está denunciando que isso faz parte de uma tentativa
de golpe no país e tem conclamado a
população a sair às
ruas para defender o governo. Coisa que se põe difícil já que as reformas
esperadas pela maioria não chegam.
Esse tem sido o drama
dos governos tidos como progressistas ou populares na América Latina. Apesar de
não se colocarem no caminho do socialismo, as pequenas mudanças que realizam já
são suficientes para que a classe dominante – que dirige os países há séculos –
arreganhe os dentes e passe a atuar em consequência, desestabilizando os
governos. Aproveita-se do fato de que esses governos agem com frouxidão, não
assumem uma crítica radical ao sistema e não se arriscam em mudanças
estruturais.
Com o advento das
redes sociais, que difundem mentiras sem limite ou controle, a ação da classe
dominante ficou ainda mais facilitada. Com boa parte das gentes vivendo uma
espécie de dissociação cognitiva, ocupar e colonizar as mentes tem sido bem
fácil.
Assim, paradoxalmente,
é justamente nesse mundo sem lei que a lei é usada para os chamados “golpes
suaves”, que de suaves não têm nada, uma vez que são os responsáveis pela
destruição dos países e de seus habitantes, na medida em que mantêm o
permanente roubo das riquezas e aprofundam cada vez mais a dependência e o
subdesenvolvimento.
A batalha pela Pátria
Grande segue. Haveremos de encontrar as novas armas...
• Claudia Sheinbaum, presidenta!. Por Kurt
Hackbarth
Após sua vitória
esmagadora na eleição presidencial de junho no México, Claudia Sheinbaum foi
oficialmente empossada como presidenta na terça-feira. A primeira mulher
presidenta na história mexicana, Sheinbaum terá o segundo mandato presidencial
consecutivo do MORENA, partido fundado por seu antecessor, Andrés Manuel López
Obrador (AMLO), em 2014.
O dia se desenrolou em
duas partes. Às 11h30, Sheinbaum chegou à Câmara dos Deputados, a câmara baixa
do México, para a cerimônia de passagem da faixa presidencial. Em cenas que
lembram a posse de AMLO em 2018, Sheinbaum e López Obrador foram aplaudidos por
apoiadores reunidos em frente às suas residências e alinhados na rota para o
Congresso enquanto passavam em seus carros. Em seu discurso, a presidenta
começou vinculando dois conceitos fundamentais. “Em 2 de junho”, ela anunciou,
“o povo mexicano, democrática e pacificamente, disse em alto e bom som: é um
momento de transformação, e é um momento para as mulheres”. Depois de prestar
homenagem a AMLO e expor sua plataforma política, ela retornou ao tema:
Chegam comigo as
mulheres que conseguiam levantar a voz e as que não conseguiam, as que tiveram
que ficar em silêncio e as que gritavam sozinhas, as indígenas, as
trabalhadoras domésticas que deixaram seus povoados para ajudar os outros, as
bisavós que não aprenderam a ler e escrever porque a escola não era para
meninas, nossas tias que encontraram na solidão o caminho para serem fortes, as
mulheres anônimas, as heroínas anônimas que, de suas casas, da rua ou do local
de trabalho, lutaram para ver este momento, nossas mães que nos deram a vida e
depois nos deram tudo de novo, nossas irmãs que, com suas histórias,
conseguiram se emancipar, nossas amigas e companheiras, nossas lindas e fortes
filhas e nossas netas… estão todas chegando, todas as que imaginaram um futuro
para nós onde somos livres e felizes.
Dispensado o
protocolo, chegou então a hora da cerimônia popular: à tarde, a presidenta
Sheinbaum chegou à praça central da Cidade do México, o Zócalo. Lá, ela
participou de uma cerimônia indígena na qual lhe foi legado o bastón de mando,
ou “bastão de comando”, um símbolo tradicional de autoridade. Depois disso, ela
subiu ao pódio para seu segundo discurso do dia, muito mais longo, onde
desdobrou os temas da manhã em um plano de prioridade de cem pontos para sua
nova administração. Entre o pacote de infraestrutura, saúde, educação, cultura
e aumento do salário mínimo estava a criação de um Departamento de Assuntos
Femininos em nível de gabinete e uma proposta de emenda constitucional
garantindo direitos iguais para as mulheres — uma versão mexicana da Emenda de
Direitos Iguais, embora com uma probabilidade muito maior de ser ratificada.
• Afirmando autoridade
Nos dias que
antecederam sua posse, sem nenhuma necessidade de demonstração de ruptura com
seu antecessor, como muitos exigiram antes e depois da eleição, Sheinbaum
começou a afirmar sua autoridade. Em um discurso na conferência do MORENA em 22
de setembro, a presidente eleita expôs um decálogo de comportamento que ela
esperava do partido, incluindo a manutenção de seu status duplo como partido e
movimento, evitando divisões internas e se afastando de “um excesso de
pragmatismo sem princípios” — linguagem codificada para a imposição de cima
para baixo de candidatos sem apoio popular, um calcanhar de Aquiles contínuo
para o partido em vários estados, municípios e distritos congressionais. A
mensagem clara para a nova liderança do MORENA? “Vocês precisam comandar um
navio apertado.”
Uma semana depois, ela
aumentou o tom em uma provocação com a Espanha sobre a posse em si. Em 2019,
AMLO enviou uma missiva ao rei Felipe VI convidando o monarca para um processo
conjunto de reconciliação em relação ao próximo quingentésimo aniversário da
queda da capital asteca de Tenochtitlan em 1521, no qual a Espanha reconheceria
sua responsabilidade pelas atrocidades cometidas. Sem nem mesmo se dignar a
responder à carta, o monarca vazou para a imprensa, levando a uma onda
anti-México entre as elites espanholas e monarquistas de direita. Em resposta à
rejeição, a equipe de transição de Sheinbaum decidiu convidar o
primeiro-ministro Pedro Sánchez para a posse, mas não o rei. Evidenciando uma
capacidade tardia de escrever cartas, o governo espanhol enviou uma reclamação
formal ao México e, irritado, decidiu não enviar ninguém. Tudo isso deixou
vozes alinhadas à ala SUMAR da coalizão governamental da Espanha se perguntando
por que uma administração nominalmente progressista como a de Sánchez
vincularia sua diplomacia a um monarca Bourbon, com um histórico de desrespeito
ao protocolo em visitas anteriores a inaugurações na América Latina.
Então, em uma
entrevista ao jornal La Jornada , Ernestina Godoy — escolhida para chefiar o
gabinete jurídico da nova presidenta — permitiu que um governo Sheinbaum
pudesse tomar medidas contra os juízes que violaram flagrantemente a lei ao
tentar usar uma forma de liminar para congelar o debate do Congresso sobre a
recente reforma judicial. A reforma, que prevê a eleição de todo o judiciário
federal, incluindo a Suprema Corte, enfureceu o judiciário e levou a uma série
de palestras marcadas por sermões monotemáticos do embaixador dos EUA, Ken
Salazar.
Isso coloca em
perspectiva um comentário aparentemente casual feito por AMLO de que, comparado
a Sheinbaum, ele é um fresa — gíria mexicana equivalente a “almofadinha”. E
parece colocar de lado as previsões egoístas feitas por vários comentaristas do
establishment de que uma segunda administração do MORENA, por qualquer motivo,
terá que se deslocar para o centro.
Navegando pelas
corredeiras iniciais
Imediatamente após a
posse, Sheinbaum seguirá para Acapulco, no estado de Guerrero, que
enfrentagraves inundações após o furacão John. Esta é a segunda vez em dois
anos que a área é atingida por um furacão. Em 2023, o furacão Otis surgiu do
nada para se tornar uma tempestade de categoria 5, a mais forte a atingir a
costa do Pacífico do país. Este ambivalente cenário serve como pano de fundo
involuntário para a ambiciosa agenda climática que a presidenta buscará
implementar.
A presidente também
terá as mãos ocupadas com conflitos relacionados ao crime organizado em ambas
as extremidades do país. Em Culiacán, Sinaloa, a violência entre facções em
guerra do Cartel de Sinaloa após a misteriosa prisão por oficiais dos EUA do
ex-líder Israel “Mayo” Zambada deixou mais de cem mortos. Como se tornou um
procedimento operacional padrão, os Estados Unidos geram manchetes
sensacionalistas com sua chamada estratégia de chefão, enquanto os mexicanos
comuns pagam o preço por suas consequências na forma de guerras territoriais.
Enquanto a demanda dos EUA por drogas permanecer, o chefão sempre será
substituído.
Enquanto isso, no
estado de Chiapas, no sul, disputas de cartéis sobre o lucrativo comércio
ilegal de fronteira levaram até mesmo alguns moradores locais a buscar refúgio
na vizinha Guatemala. Embora a administração de AMLO tenha conseguido, no fim
das contas, reduzir modestamente os persistentes números de homicídios, a nação
está longe de ser pacificada, com taxas permanecendo frustrantemente altas.
Tendo perdido seu
bastião no poder judiciário, espera-se que a direita do México coloque ainda
mais energia em uma guerra midiática contra a nova administração. Nisso, ela
encontrará, como sempre, um cúmplice disposto nos Estados Unidos. Um dos
últimos atos oficiais de AMLO como presidente, após exaustivas tentativas de
chegar a um acordo, foi transformar a pedreira de calcário Calica, altamente
poluente e de propriedade da Vulcan Materials, na popular costa turística de
Quintana Roo em uma Área de Reserva Nacional. Em resposta, a senadora
republicana Katie Britt alertou o México sobre “consequências esmagadoras”, uma
ameaça amplificada por veículos de notícias alinhados. Mais do mesmo, sem
dúvida, se seguirá, pois a administração Sheinbaum busca endurecer as regras
que regem as concessões de água e mineração para multinacionais; será
importante que seu governo não cometa o erro de iniciante de ceder à
fanfarronice e às manchetes sinistras.
Finalmente, Sheinbaum
enfrentará o desafio inato de ser a primeira mulher líder do México em cerca de
quinhentos anos, contando tanto seu tempo como colônia quanto como república
independente. Apesar do sucesso notável da nação em alcançar a paridade de gênero
total tanto no Congresso quanto no gabinete executivo nos últimos seis anos,
sua chegada ao poderoso cargo da presidência está, simbolicamente, em outra
ordem de magnitude, e provavelmente resultará em formas veladas e abertas de
resistência. Nisso, a dupla experiência de Sheinbaum em ativismo e governança
lhe servirá bem.
Como ela mesma já
afirmou diversas vezes, não chegou à presidência sozinha, e o movimento que
garantiu ao MORENA seu segundo mandato precisará permanecer em constante
mobilização.
Fonte: Correio da
Cidadania/Jacobin Brasil
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