Marcos Feres: A resistência não é apenas um
direito dos palestinos; é uma necessidade
Em 7 de outubro de
2023, o mundo assistiu atônito à operação conduzida pela Resistência
Palestina, batizada “Dilúvio de Al-Aqsa”. Nas primeiras horas deste dia que se
tornaria histórico, palestinos tomaram seu destino com as próprias mãos,
quebrando — literalmente — as grades do maior campo de concentração da
história: Gaza.
Se muitos ficaram
incrédulos com o que aconteceu, para
nós, palestinos, e para qualquer pessoa que acompanhava a realidade da ocupação
ilegal sionista na Palestina antes do 7 de outubro, o que aconteceu não é uma
surpresa; é um desdobramento previsível e até óbvio.
Também não surpreendeu
ver a maneira como a imprensa ocidental —
aqui no Brasil, em especial, o Grupo Globo — retratou palestinos e sua operação
de resistência em 7 de outubro. Mal haviam sido derrubados os muros que
aprisionam mais de 2,3 milhões de palestinos e já estavam a postos na GloboNews
os agentes do lobby sionista apresentados como “especialistas” ou o que valha,
prontos para desumanizar palestinos e preparar o terreno para legitimar aos
olhos do público o genocídio que viria a seguir e que completou seu primeiro
ano.
O expediente não é
novo: a cartilha racista e orientalista é seguida à risca. O palestino é o
não-sujeito. Aquele que não tem história. Não tem nome. É desprovido de
humanidade. Desinformação, mentiras e propaganda constroem a imagem de
palestinos como “terroristas árabes malvados, bárbaros e perversos” que
atacaram sem motivo ou razão o “pobre e inocente ‘estado judeu'”.
Até nossos mortos são
deslegitimados. O âncora do telejornal mais popular do país, repete, como um
mantra, que os dados sobre palestinos assassinados são do “Ministério da Saúde
do Hamas e não puderam ser verificados de forma independente”.
No Jornal da Globo, o
número exorbitante de crianças palestinas assassinadas “pode ser explicado por
um fator estrutural”: a alta taxa de natalidade em Gaza. Um gráfico moderno e
uma pitada de eugenia para sugerir que a maior matança proporcional de crianças
registrada na história não tem a ver com os bombardeios indiscriminados de
“israel” contra áreas civis, escolas, hospitais, abrigos, campos de refugiados,
mas para inferir que “morrem muitas crianças em Gaza porque mulheres palestinas
têm muitos filhos”.
Nada é por acaso.
Jornalismo é léxico. Cada palavra escolhida ajuda a costurar a narrativa
pensada cuidadosamente para servir aos interesses de quem financia a máquina de
propaganda que se finge “jornalística”. Palavras-chave para entender a questão
palestina são proibidas: ocupação, genocídio, limpeza étnica, apartheid e…
resistência.
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Resistência retratada como terrorismo
De todas as palavras
proibidas nas redações ocidentais para se referir à Palestina, talvez a mais
importante seja justamente a palavra resistência. Afinal, quem resiste, resiste
a algo. E não interessa à propaganda sionista informar ao público sobre contra
o que os palestinos estão resistindo. É mais fácil simplesmente trocar
“resistência” por “terrorismo”. O termo “terrorismo” não exige complemento,
contexto ou motivação.
Retratar as ações
palestinas como “terrorismo” elimina a necessidade de explicar a que os
palestinos estão reagindo e ajuda a perpetuar a imagem racista e orientalista
construída ao longo de séculos pelos colonizadores ocidentais: de que seriam
bárbaros, violentos, irracionais. Aqueles que precisam ser colonizados e
civilizados por uma “raça superior”.
A palavra resistência
é tão importante para compreender a questão palestina que temos até uma palavra
em árabe para descrever a insistência palestina em resistir: sumud,
que significa firmeza, perseverança inabalável. Sumud é a resistência palestina
frente à brutal ocupação racista, supremacista, colonial e genocida de “israel”
na Palestina.
E para entender a
resistência palestina, é preciso entender ao que os palestinos estão reagindo.
O sionismo, uma
ideologia racista, supremacista e genocida, e seu empreendimento colonial de
nome fantasia “israel” se autoproclamam na Palestina por meio do genocídio e do
terror. A limpeza étnica da Palestina foi
iniciada em 18 de dezembro de 1947, quando colonos europeus judeus tomaram à
força 78% da Palestina Histórica.
Cerca de 90% da
população palestina originária desta parcela de terra foi expulsa, mais de 750
mil palestinos, incluindo a família do autor deste texto. Mais de 15 mil
palestinos foram assassinados e 500 cidades e vilarejos palestinos foram destruídos.
Esse episódio inaugura, a um só tempo, a mais brutal ocupação da história
moderna e também a mais longa crise de refugiados contemporânea.
Em 1967, os sionistas
“terminam o serviço” ocupando os 22% da Palestina Histórica que não havia sido
roubada entre 1948 e 1951. Outros 300 mil palestinos expulsos de suas casas e a
formalização do mais obsceno sistema de apartheid vigente no mundo hoje. “israel”
é o único “país” no mundo a prender e julgar crianças — só as
palestinas, evidentemente — a partir de 12 anos em tribunais militares, com
taxa de condenação superior a 99%.
Na Cisjordânia Ocupada
e em Jerusalém Oriental, igualmente submetida a ocupação ilegal e colonial,
“israel” impõe aos palestinos uma limpeza étnica continuada, com a demolição
forçada de casas, destruição de vilarejos e uma campanha de extermínio e expulsão
perene.
A construção dos
assentamentos judaicos nos territórios palestinos ocupados, em violação ao
Direito Internacional, são uma política de estado. Os colonos judeus
supremacistas e messiânicos se multiplicam vertiginosamente na Palestina
Ocupada e, armados pelo estado de “israel”, aterrorizam e assassinam palestinos
para expulsá-los de suas terras.
Não há um único
governo na história de “israel”, da “esquerda” à direita, que não tenha
fomentado a política de assentamentos ilegais e o roubo de terras palestinas.
Hoje, são mais de 700 mil colonos judeus invadindo território palestino sob
proteção das tropas israelenses e da burocracia estatal, jurídica, econômica e
política sionista.
<><> Campo
de concentração virou de extermínio
Em Gaza, igualmente
ocupada, como reconheceu a Corte Internacional de Justiça em decisão de julho de
2024, a realidade, anterior ao 7 de outubro, é ainda pior. Não há outra forma
de descrever Gaza senão um campo de concentração. O maior da história. E, a
partir de outubro de 2023, transformado no maior campo de extermínio que a
humanidade já viu.
Dos 6,2 milhões de
refugiados palestinos que esperam há 76 anos que se faça cumprir o Direito de Retorno,
estabelecido pela resolução 194 da ONU, de 1948, cerca de 1,7 milhão estão em
Gaza. Em outras palavras, 73% dos 2,3 milhões de palestinos de Gaza são
refugiados da Nakba, a Catástrofe Palestina, que durou de 1947 a 1951.
Em 2022, estudo da ONG Save The Children apontou que 95% das crianças palestinas em Gaza
apresentavam sintomas de depressão e estresse pós-traumático. 800 mil não
conhecem a vida fora do bloqueio imposto por “israel” ao enclave palestino há
quase 20 anos. 97% da água no enclave palestino é imprópria para consumo.
A taxa de pobreza
pré-7 de outubro era de 61%; a insegurança alimentar, 63%. Uma criança nascida
em Gaza em 2007, início do bloqueio criminoso de “israel” contra a população
palestina, enfrentou ao menos seis campanhas genocidas, em 2002, 2004, 2008,
2012, 2014 e 2021, conduzidas por “israel”.
Agora, com esse
brevíssimo contexto, afinal, são 77 anos de violência colonial e genocida
contra o povo palestino que não caberiam em um único artigo, podemos começar a
falar sobre a resistência palestina.
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Diplomacia de Oslo só pavimentou o caminho para Netanyahu chegar ao poder
Antes de 7 de outubro,
palestinos tentaram todas as formas de diplomacia e resistência popular e
pacífica. Os esforços diplomáticos de Oslo, em 1993, trouxeram aos palestinos
nada além do que o agravamento do apartheid e das políticas violentas da ocupação,
a expansão dos assentamentos judaicos ilegais e o roubo massivo de terras
palestinas. Yitzhak Rabin, primeiro-ministro israelense saudado como
“humanista” por sentar à mesa com palestinos em Oslo era ele próprio um
criminoso de guerra responsável direto pelos massacres e limpeza étnica das
cidades de Lydda e Ramle em 1948, e conhecido pela política de “quebrar ossos”
de palestinos durante a Primeira Intifada (1987-1993).
Aliás, foi no contexto
dos Acordos de Oslo que Netanyahu pavimentou seu caminho ao poder, eleito
primeiro-ministro de “israel” em 1995 com uma plataforma anti-palestina e
contrária a toda e qualquer forma de negociação ou acordo de paz com os
palestinos. Plataforma essa referendada pela maioria da sociedade israelense
nas urnas nos últimos 30 anos.
Sobre a resistência
popular e pacífica, talvez o exemplo mais emblemático seja a Grande Marcha do
Retorno, entre 2018 e 2019. Na ocasião, palestinos de Gaza caminharam
semanalmente ao longo de 18 meses rumo às cercas que fazem de Gaza o maior
campo de concentração da história, clamando pelo direito de retornar a suas
terras, de onde foram expulsos na Nakba. Clamando por seus direitos
pacificamente, palestinos foram recebidos a tiros por snipers israelenses todos
os dias. Mais de 300 palestinos foram assassinados e 30 mil feridos, sendo
8.800 deles crianças. “Atirei em 42 joelhos em um dia”, se gabou um sniper israelense falando sobre quantos palestinos
mutilou durante as manifestações.
É nesse contexto que o
7 de outubro acontece. A resistência, inclusive armada, é um direito garantido
aos palestinos e a todo povo em condição de ocupação e colonização à luz do
Direito Internacional. Dezenas de resoluções da ONU garantem o direito à resistência
armada. A mais enfática delas é a resolução 37/43, da Assembleia Geral da ONU,
de 1982, que afirma, citado especificamente a situação dos palestinos, que a
legitimidade da luta pela independência, integridade territorial, unidade
nacional e libertação da dominação e ocupação estrangeira por todos os meios
disponíveis, incluindo a luta armada, e reconhece abertamente o direito ao uso
da força contra a ocupação ilegal estrangeira.
Mais do que um direito
legítimo, a resistência palestina é uma necessidade. Uma questão de
sobrevivência. Se “israel” não reconhece a linguagem da diplomacia, os Estados
Unidos fornecem armas, dinheiro e cobertura diplomática para os crimes
israelense contra o povo palestino e a comunidade internacional é incapaz de
fazer “israel” cumprir uma única resolução da ONU e suas obrigações à luz do
Direito Internacional ao longo de 77 anos, o que restou aos palestinos, a não
ser a resistência armada?
O povo palestino é uma
população originária cuja presença naquela terra remonta há mais de 11 milênios
e que enfrenta há quase um século um genocídio continuado, limpeza étnica,
apartheid, ocupação, colonização, dominação, racismo e supremacismo. O que o
mundo espera dos palestinos? Que sejamos as vítimas perfeitas, que aceitam o
próprio extermínio em silêncio?
O esgotamento das
tentativas diplomáticas, o sufocamento das formas de resistência popular
pacífica, e o fracasso da comunidade internacional em frear a máquina de morte
sionista e a política genocida de “israel” contra o povo palestino culminam no
7 de outubro. E como resposta, “israel” perpetrou o mais flagrante genocídio
que a humanidade já testemunhou, transmitido ao vivo nas televisões,
computadores, smartphones do mundo inteiro pelas próprias vítimas, esperando,
em vão, que o mundo os ajude. Há exatos 367 dias.
Palestinos têm o
direito de se defender e resistir a seus algozes. Nem mesmo a campanha massiva
de propaganda para desumanizar palestinos e o bombardeio midiático tentando
deslegitimar a resistência foram capazes de minar o apoio popular à luta
palestina e o reconhecimento de sua legitimidade ao redor do mundo. A Palestina
é o epicentro global da luta anticolonial. Entre o Rio Jordão e o Mar
Mediterrâneo, se vê o espelho dos genocídios coloniais do passado e o futuro
reservado aos povos que ousarem se rebelar contra a dominação imperialista das
metrópoles ocidentais, que financiam e comandam o genocídio executado por
“israel” na Palestina.
Que povo se libertou
do jugo colonial sem enfrentar e resistir a seus colonizadores? A resistência
palestina é a vanguarda dos povos oprimidos na luta contra o colonialismo. A
heróica resistência palestina está naqueles que pegam em armas para quebrar os
muros de sua prisão e retornar às casas de que seus pais e avós foram expulsos;
nos palestinos que insistem em cultivar suas oliveiras e pastorear suas ovelhas
sob a mira dos rifles dos colonos judeus e soldados israelenses; nas crianças
que enfrentam tanques de guerra com pedras; nos palestinos em refúgio e
diáspora que se recusam a abandonar o sonho de retorno à terra de seus
ancestrais. A resistência dos palestinos está na insistência em viver
diante do genocídio.
Não é o mundo que vai
libertar a Palestina. É a Palestina que está libertando o mundo. E a Palestina
será livre, em nosso tempo de vida, do genocídio, do racismo, do supremacismo,
do apartheid. Em nosso tempo de vida. Do Rio ao Mar.
¨ Forças de Israel forçam pessoas a se deslocarem do norte para o
sul de Gaza e agravam a catástrofe humanitária
As ordens de evacuação
israelenses para partes do norte de Gaza, emitidas em 7 de outubro, estão
obrigando dezenas de milhares de pessoas a fugir imediatamente para o sul, já
que a área é alvo de bombardeios aéreos e de uma ofensiva terrestre.
Neste último
deslocamento forçado em massa, moradores de Beit Hanoun, Jabalia e Beit Lahia
foram obrigados a se deslocar para a superlotada “zona humanitária” entre
Al-Mawasi e Deir Al-Balah, onde já vivem 1 milhão de pessoas em condições
desumanas. A zona também permanece insegura para civis e trabalhadores
humanitários, já que as forças israelenses atacam repetidamente a área.
Essas evacuações
forçadas em massa das casas e os bombardeios de bairros pelas forças
israelenses estão transformando o norte de Gaza em um deserto inabitável,
esvaziando efetivamente a vida palestina de todo o norte da Faixa. Para piorar
a situação, nenhuma ajuda humanitária entra na área desde 1º de outubro.
Médicos Sem Fronteiras
pede às forças israelenses que suspendam as ordens de evacuação, que estão
causando o deslocamento forçado de pessoas, e que garantam a proteção dos
civis. Também devem permitir a entrada urgente de suprimentos humanitários que
são extremamente no norte de Gaza.
“De repente, me
disseram que precisávamos nos mover do norte,” diz Mahmoud, um vigia de MSF que
deixou Jabalia à noite para encontrar refúgio na casa de hóspedes de MSF na
Cidade de Gaza. “Deixamos nossa casa em desespero, sob bombas, mísseis e
artilharia. Foi muito, muito difícil. Eu preferiria morrer a ser deslocado para
o sul. Minha casa está aqui, e eu não quero sair.”
·
Israel quer evacuação de hospitais
As forças israelenses
também solicitaram a evacuação dos três principais hospitais do norte de Gaza,
nomeadamente os hospitais Indonésio, Kamal Adwan e Al-Awda. Estes estão
operando em capacidade mínima e têm um total de 317 pacientes ainda
hospitalizados, com cerca de 80 pessoas em terapia intensiva e incapazes de se
mover, de acordo com o Ministério da Saúde. Essas três instalações médicas,
assim como aquelas que permanecem parcialmente funcionais em toda a Faixa,
devem ser protegidas a todo custo.
A clínica de MSF na
Cidade de Gaza recebeu 255 pacientes somente no domingo e na segunda-feira, já
que as opções para as pessoas acessarem cuidados médicos diminuem a cada dia.
Para algumas pessoas, acessar as poucas unidades de saúde existentes é impossível.
As nossas equipes receberam relatos de feridos que morreram por não conseguirem
buscar cuidados médicos.
Entre aqueles que
enfrentam ordens de evacuação no norte estão sete profissionais de MSF que
conseguiram encontrar abrigo na Cidade de Gaza. Outros cinco permanecem
bloqueados em Jabalia, onde as forças israelenses estão no terreno realizando
ataques.
"O último
movimento para empurrar à força e violentamente milhares de pessoas do norte de
Gaza para o sul está transformando o norte em um deserto sem vida, ao mesmo
tempo em que agrava a situação no sul, onde mais de 1 milhão de pessoas já
foram espremidas em uma pequena parte da Faixa de Gaza e vivem em condições
deploráveis", diz Sarah Vuylsteke, coordenadora do projeto de MSF em Gaza.
“O acesso à água,
assistência médica e segurança já é quase inexistente, e imaginar que mais
pessoas possam se acomodar nesse espaço é impossível”, afirma Vuylsteke. “As
pessoas foram submetidas a deslocamentos intermináveis e bombardeios
incessantes nos últimos 12 meses. Já chega, isso deve parar imediatamente.”
Enquanto as
autoridades israelenses recentemente declararam uma mínima expansão da chamada
zona humanitária, a área continua sujeita a ordens de evacuação e é insegura
por causa dos bombardeios israelenses. Muitas pessoas que vivem na zona estão
sofrendo de doenças de pele e infecções respiratórias por causa das condições
precárias. A situação é ainda mais preocupante com a aproximação do inverno e
as baixas temperaturas às quais as pessoas estarão expostas.
As forças israelenses
devem urgentemente interromper as ordens de evacuação no norte de Gaza. A
matança implacável de pessoas em Gaza deve parar agora, e um cessar-fogo
imediato e sustentado deve ser implementado.
Fonte: The
Intercept/MSF.org
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