Carlos Henrique Vianna: ‘Israel que futuro?’
“No judaísmo, o
“escolhimento” é a crença de que os judeus, por meio da descendência dos
antigos israelitas, são o povo escolhido, ou seja, escolhidos para estar em aliança com Deus. A
ideia de que os israelitas foram escolhidos por Deus é encontrada mais
diretamente no Livro de Deuteronômio onde
é aplicada a Israel no Monte Sinai, sob a condição de
sua aceitação da aliança mosaica entre
eles e o Senhor Deus”.
“As três maiores
denominações judaicas – Judaísmo ortodoxo, Judaísmo conservador e Judaísmo reformista –
mantêm a crença de que os judeus foram escolhidos por Deus para um propósito.
Às vezes, essa escolha é vista como incumbindo o povo judeu de uma missão
específica – ser uma luz para as nações e exemplificar a aliança com Deus,
conforme descrito na Torá. Isso é destacado pela primeira vez
em Gênesis 12:2.” (fonte: Wikipédia)
“O que vivemos não é
um choque de civilizações, é um choque entre os fanáticos e o resto de nós.”
(Amos Oz)
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Um país especial
Não há dúvida que
Israel, seus cidadãos e seus governos, consideram-se um país especial no
concerto nas nações. Um Estado com mais direitos que os demais. Um Estado ao
qual se deve tolerar o não cumprimento de resoluções da ONU, o desrespeito às
fronteiras e à soberania de seus vizinhos, próximos ou mesmo distantes, a
realização de assassinatos seletivos de seus inimigos em qualquer parte do
mundo pelo famoso Mossad, e a auto-qualificação de Estado Judeu, ou seja, para
seus cidadãos judeus, com a consequente discriminação legal em alguns aspectos
de natureza civil ou política de seus cidadãos de origem palestina ou outra.
Um Estado que pode
responder com força excessiva, com total desproporcionalidade, causando um
número ilimitado de “danos colaterais”, às ações militares dos movimentos de
resistência contra Israel. Um Estado que ocupa e domina a ferro e fogo a
Cisjordânia, desde sua vitória na Guerra dos Seis dias em1967, anexando
progressiva e de forma contínua o território reconhecido internacionalmente
como pertencente aos palestinos e formalmente administrado pela Autoridade
Palestina.
Um Estado, e antes de
sua existência, o movimento sionista de afirmação da presença de judeus na
Palestina, então protetorado inglês, que não hesitou em lutar como movimento
guerrilheiro quer contra os residentes palestinos, os filisteus dos livros
sagrados, quer contra a dominação inglesa. Nesta história da primeira metade do
século XX forjou o Haganah (Defesa em hebraico), que “foi a
principal organização paramilitar da população judaica no Mandato inglês da
Palestina entre 1920 e 1948, quando se tornou o núcleo das Forças de Defesa de
Israel.”
O Haganah e outros
grupos mais radicais (Irgun, Lehi) realizaram, principalmente a partir de 1946,
numerosas ações que podem ser qualificadas como “terroristas”, quer contra a
população civil árabe, quer contra as forças militares inglesas, sendo a ação mais
mediática o atentado do Irgun liderado por Menachem Begin contra o Hotel Rei
David em 1946, com 91 mortos. “O atentado ao Hotel Semiramis, em abril de 1948,
executado pelo Haganah (ou, de acordo com algumas fontes,
Irgun) resultou na morte de 24 a 26 pessoas. O massacre de Deir Yassin
realizado pelo Irgun e Lehi, matou entre 107 e 120 moradores palestinianos.”
Curiosamente, Menachem Beguin foi Prêmio Nobel da Paz, juntamente com o
presidente Sadat do Egito, por terem assinado os Acordos de Camp David em 1978
As voltas qiue o mundo dá… Foram muitas as ações de intimidação violenta para
expulsar os palestinos de suas vilas e propriedades, principalmente em 1948,
que culminaram na Nakba (Catástrofe), quando aproximadamente
700 mil palestinianos foram expulsos para os países fronteiriços, muitos dos
quais refugiados até hoje. E forjando assim a “questão palestina”, no pós 1948.
Vejo algumas razões
para Israel se considerar tão especial, merecedor de uma aura de impunidade, no
concerto das nações.Os judeus foram sempre um povo perseguido, sem pátria desde
a derrota para os romanos. No século XX, o Holocausto organizado e executado
pelo estado nazista, culminou de uma maneira impensável, esta perseguição aos
judeus. O sentimento de muitos de que não só os alemães como toda a Europa
contraíram uma dívida histórica para com os judeus, majoritariamente europeus
até então, justificou-se. E este sentimento de dívida e vergonha estendeu-se a
muitos cidadãos e Estados europeus e também aos Estados Unidos, onde muitos
judeus se refugiaram e passaram a ser um poderoso grupo de interesse, como
forte influência na política e na economia.
A justificação da
impunidade das ações dos governos de Israel se refletem nestas palavras: “A
identidade (judaicidade), porém tem dois tempos. Há sempre o risco de ela
paulatinamente se tornar um dispositivo de imunização, principalmente quando
gerida por um Estado que se coloca como guardião do trauma coletivo. Pois neste
caso, tudo se passa como se o Estado começasse a dizer “Fomos violentados uma
vez, ninguém velou por nós, temos, pois, todo o direito de utilizar o que for
necessário para garantir nossa inviolabilidade e segurança contra todos os que
apareçam colocando novamente em risco nossa integridade”. No entanto o direito
de defesa dos Estados não embute um direito ao massacre continuado. Cada vida
humana vale uma vida humana. Quarenta mil não é o mesmo que mil.
Não menos importante é
a influência da ortodoxia religiosa em Israel na justificação desta exceção. Ao
contrário das outras religiões do Livro, o Judaísmo nunca se propôs a converter
os goyim, os gentios, os não judeus. É judeu filho de mãe ou que
tem ascendente mulher judia. Isto porque, do ponto de vista ortodoxo, os judeus
são o povo escolhido e, portanto, devem preservar a sua pureza étnica ou
religiosa, através da linhagem materna e respeitando as tradições seculares.
Israel é uma democracia para os judeus, uma etnocracia segundo alguns
intelectuais e tem um pé na teocracia, tendo em conta a existência de partidos
religiosos que almejam e exercem o poder. Rabinos, sinagogas e estudantes da
Torah têm privilégios civis que outros cidadãos não têm. Como disse Amin
Maalouf em O naufrágio das civilizações: “Por mais do que uma vez,
terei a oportunidade de evocar o mito perverso da homogeneidade, seja
religiosa, étnica, linguística, racial ou outra, pelo qual se deixaram levar
tantas sociedades humanas”. Israel não é uma teocracia como o Irã, mas também
não é uma democracia laica e republicana.
A nível internacional,
Israel conta desde sempre com o apoio econômico, militar, político e
diplomático dos Estados Unidos e também de vários países europeus. Dos Estados
Unidos tem crédito ilimitado, ajuda militar privilegiada, em parte a fundo
perdido, apoio financeiro direto de particulares em todo o mundo e praticamente
uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, assumida pelos Estados Unidos e
que veta qualquer resolução contra Israel no dito Conselho. Quando falamos nas
moderníssimas e populares IDF (Israel Defense Forces) estamos ao mesmo
tempo falando nas forças de retaguarda norte-americanas, nos seus porta-aviões
e sistemas de defesa aérea presentes no terreno, terra, mar e ar. Quem desafia
Israel, como o Irã, está desafiando uma aliança poderosíssima e operacional. Isto
sem falar dos serviços secretos, da “Intel” como gostam de mencionar,
não só dos dois países mas também de vários outros países ocidentais que
colaboram com Israel. Os assassinatos seletivos de dirigentes do Hamas e
Hezbollah são a evidência disto.
Israel forjou um
exército já antes de 1948 e tornou-se um Estado em simbiose com as suas forças
armadas. Todos os cidadãos, à exceção dos de origem palestina ou não judia, são
parte das IDF dos 18 aos 50 anos. Israel venceu as guerras iniciadas por seus vizinhos
em 1948, 1967 e 1973. Fustigou e continua fustigando com êxito os braços
armados e as direções políticas dos movimentos de resistência, ditos
terroristas, desde os anos 1920. Atualmente, desde o 7 de outubro, passou a uma
fase de guerra de aniquilação contra estes movimentos, o que foi também tentado
sem êxito no Líbano em 1982 contra a Al-Fatah. Sem falar do recrudescer nas
hostilidades mútuas com o Irã, uma “briga de cachorro grande”, mas desejada
pelo menos por parte dos dirigentes israelistas, um risco enorme para a região
e para o mundo.
Israel e a maioria de
seus cidadãos têm diversas razões, quer históricas, quer religiosas, quer até
de empatia ou falta desta, para se sentirem superiores e detentores de mais
direitos, em relação aos palestinianos. Não só a extrema direita política e religiosa,
mas uma boa parte dos cidadãos de Israel gostariam que os palestinos
desaparecessem da Cisjordânia e de Gaza, emigrassem, fossem expulsos ou
morressem. E já vão mais de 42.000 neste particular, desde o 7 de outubro, numa
matança quotidiana, sistemática, de diversas formas, inclusive por fome e falta
de cuidados médicos e de higiene, por simples falta de água potável. Os mortos
e feridos são uma minoria de ativistas da Hamas e uma maioria de civis
indefesos, os cinicamente chamados “danos colaterais”. A história de Israel é
uma história de ocupação progressiva das terras não adscritas ao Estado de
Israel pela ONU em novembro de 1947. É só ver a evolução dos mapas. Do mar a
Galileia, de Gaza aos montes Golã, estes sírios desde tempos imemoriais. Uma
Cisjordânia ocupada por colonatos e estrada militares. Os países árabes e
autoridades palestinas desprezaram a possibilidade do Estado palestino ter
nascido em 1948. Cometeram um grave erro. Tentaram a sorte em guerras que e
foram humilhados pela superioridade israelita.
E assim a ideia dos
dois Estados vem morrendo há muito tempo. Se algumas lideranças israelitas a
toleraram ou a aceitaram em tempos (como Isaac Rabin, assassinado por um
terrorista judeu de extrema direita), já há muito ela está descartada pelas
lideranças e mesmo pela maioria dos cidadãos judeus de Israel. As grandes e
médias potências reiteram o apoio a esta solução, de resto existente desde o
fim da Segunda Guerra Mundial, mas o fazem sem convicção, com muita hipocrisia
e sem dar qualquer passo efetivo para concretizá-la, como por exemplo promover
o corte de relações diplomáticas com Israel. Assim Amos Oz se pronunciou sobre
a solução dos dois Estados em 2017: “O que posso dizer é que não vejo
alternativa melhor do que a solução de dois Estados, simplesmente porque árabes
palestinos e judeus israelenses não vão a lugar algum, não têm para onde ir.
Esse conflito não vai ter final feliz. Ou vai acabar com um doloroso acordo ou
com um banho de sangue eterno. A solução de dois Estados envolve uma série de
concessões dolorosas para israelenses e palestinos. Os dois lados vão ter que
abdicar de um pouco de seu passado e de suas aspirações”. A hipótese mais
pessimista deste pacifista nascido em Jerusalém, o mais difundido escritor e
intelectual israelita, parece ter prevalecido.
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O 7 de outubro
Os acontecimentos do 7
de outubro foram a justificativa que faltava para Netanyahu e Israel passar a
uma nova etapa na construção do grande sonho sionista, o domínio do Estado de
Israel sobre o território bíblico dos reinos de Judá e Israel. Muito ainda há
de se falar sobre o que se passou exatamente neste dia, que começou com uma
rápida vitória militar de um exército guerrilheiro sobre a defesa fronteiriça
israelita, tida como inexpugnável. Neste confronto inicial terão morrido ou
sido feitos prisioneiros centenas de militares israelitas e um número não
conhecido dos atacantes. Ao que se seguiu uma operação de ocupação violenta de
alguns kibutzim próximos e de sequestro de civis israelitas, o que foi
facilitado pela concentração de jovens num festival musical a escassos
quilômetros da fronteira. O sequestro de civis e militares israelitas foi o
segundo objetivo prioritário do Hamas, para ter moeda de troca na libertação
negociada de palestinianos nas prisões israelitas, 9500 recenseados no dia 17
de abril de 2024. O Hamas usou de enorme violência na ocupação dos kibutzim,
alguns dos quais ripostaram ao ataque, com ou sem êxito.
Os kibutzim têm o seu
esquema de segurança com várias pessoas armadas, treinadas para a hipótese de
ataque inimigo. As IDF não acorreram a tempo de defender vários kibutzim e os
jovens no festival, uma reclamação generalizada entre os sobreviventes. O que
ficou nas versões oficiais e jornalísticas do 7 de outubro centrou-se na
violência indiscriminada contra os cidadãos israelitas, em particular sobre as
mulheres, algumas violadas segundo denunciaram. Os atacantes receberam o
carimbo de “bárbaros” e “não humanos”. Ainda está por vir a público o inquérito
militar sobre estes acontecimentos, mas o julgamento moral e o apoio político
do mundo ocidental a Israel foi rápido, acrítico e de respaldo ao discurso
inflamado de seu governo e forças armadas. A justificar a enorme operação de
vingança coletiva que se seguiu.
Várias dúvidas
persistem sobre o 7 de outubro. Por que as IDF desprezaram os informes
preocupantes quanto à preparação aberta e visível do Hamas para uma possível
invasão ou ação mais musculada contra os militares fronteiriços? Como pôde o
Hamas ser tão eficaz e invadir com tanta facilidade o território de Israel?
Terá havido alguma facilitismo por parte das IDF e de Netanyahu para promover
um acidente fronteiriço que viesse a ser uma desculpa para a invasão de Gaza?
Por que os militares demoraram tanto em socorrer os kibutzim e os jovens no
festival? Quantos civis israelitas morreram, excluindo-se desta conta os
militares e para-militares? Houve “fogo amigo” na fuga desordenada dos
“festivaleiros”, vindo de helicópteros que buscavam atingir os invasores, como
foi noticiado na imprensa israelita?
A operação militar de
Israel em Gaza, que se seguiu ao 7 de outubro, de uma violência extrema, e que
continua, parece ser bem mais que uma ação de vingança contra o conjunto dos
palestinianos de Gaza. Passado um ano, fica evidente a estratégia de Israel de
tornar quase impossível a sobrevivência dos mesmos e promover uma limpeza
étnica para além da fronteira com o Egito, o que este refuta, naturalmente. O
governo de Israel já deixou claro que Gaza será outra coisa muito diferente,
ocupada militarmente em permanência e ainda muito mais cercada que antes, se é
que isto é possível. “Coabitar não é uma escolha mas uma condição da vida
política. Os eventos posteriores ao 7 de outubro indicam que Israel quer
decidir qual população não deve lhe fazer fronteira, e já está
em curso um movimento que reivindica a remoção a população de Gaza (…) Isso
nada tem a ver com defesa, mas com despossessão.”
A proporção de
cidadãos israelitas mortos para palestinianos mortos, sejam estes uma minoria
de soldados do Hamas, sejam uma maioria de civis, mulheres e crianças
principalmente, é de 1 para 40. De feridos será maior. Isto só desde o 7 de
outubro, mas se contarmos desde 1948, desde a Nakba, os números
serão mais assustadores.
O mais puro ódio
perpassa quotidiamente os corações e mentes de judeus e palestinianos, dentro e
fora de Israel.A lei do mais forte predomina na história sangrenta destes 76
anos, desde 1948. Sequer vige a Lei de Talião, que exige reações proporcionais
a uma atitude violenta. A utopia de uma Palestina/Israel laica e democrática,
com judeus e palestinianos a conviver num só espaço, democraticamente, esbarra
em tanto sofrimento, em tanto desprezo, em tanta violência acumuladas. Bem como
a resolução de 1947 das Nações Unidas, de criação de dois estados, já apontada
antes com pouca convicção pelos ingleses, foi enterrada por muitas pás,
israelitas e árabes, palestinianos, sírios, libaneses, egípcios e ocidentais…
·
Uma palavra sobre o
mundo árabe
A questão palestina
não é uma “pedra no sapato” somente para Israel. Para muitos países árabes, os
palestinianos e suas lideranças são, no mínimo, um incômodo. Em setembro de
1970, o rei Hussein da Jordânia promoveu um massacre de 3000 refugiados palestinianos,
muitos ligados à organização Al-Fatah de Yasser Arafat. Foi o Setembro Negro,
que obrigou os palestinianos lá refugiados depois da Guerra dos 6 Dias de 1967
a fugirem para o Líbano. De registrar que os jordanos são os mais próximos
etnicamente dos palestinianos. Jordânia e Israel têm relações diplomáticas,
econômicas e até militares. É o país árabe mais próximo de Israel, juntamente
com o Egito. As massas árabes são ativas no apoio à causa palestina, mas muitos
países preferem a convivência e o restabelecimento das relações com Israel,
como o Bahrein e os Emiratos Árabes Unidos, que assinaram em setembro de 2020
os Acordos de Abrahão, agora congelados. O Egito tem relações diplomáticas com
Israel há muitos anos, patrocinado com generosa ajuda militar dos Estados
Unidos. A derrota militar do Egito de Nasser em 1967 calou fundo nas lideranças
e em especial nas suas Forças Armadas. A Arábia Saudita também caminhava no
mesmo sentido dos países do Golfo, mas o 7 de outubro congelou esta ofensiva
diplomática israelita. A verdade é que os países árabes são profundamente
desunidos e são os não árabes de religião islamista, como a Turquia e o Irã, a
terem uma atitude mais dura diplomaticamente (Turquia e Indonésia, esta
timidamente) ou mesmo beligerante (Irã). A enfraquecida Síria engole calada as
múltiplas violações violentas de seu espaço aéreo por Israel para bombardeios
específicos, até em Damasco. O Líbano, pobre Líbano, onde ainda lá vivem muitos
refugiados palestinianos e divide o poder com o Hezbollah, amarga duramente ser
vizinho tão próximo do carrasco Israel, que viola suas fronteiras a seu bel
prazer.
Em 1948, na sequência
da declaração de independência de Israel, Egito, Síria, Iraque, Líbano e a
então Transjordânia invadiram o recém-criado Estado de Israel, por não
concordarem com a partição decretada pelas Nações Unidas. Foram derrotados e
humilhados. Israel saiu vitorioso e anexou, no âmbito da Declaração de
Armistício em 1949, algum território anteriormente adscrito aos palestinianos
na partição estabelecida pela Resolução 181 da ONU de novembro de 1947. A ideia
de um “Estado Unido da Palestina”, com judeus e árabes num só país, defendida
pelos países invasores, acabou aí. A história recente demonstrou que os
palestinos de Gaza e da Cisjordânia, bem como os refugiados em países vizinhos
podem contar com alguma ajuda humanitária e diplomática dos países árabes, mas
estes temem Israel e prefeririam algum tipo de relacionamento com este vizinho
não desejado, mas tão forte. Os braços armados do Hezbollah e do Hamas, já
bastante debilitados, contam com o apoio muito ativo do Irão. São qualificados
despectivamente pela imprensa ocidental de “proxys”, ou seja, marionetes.
·
A guerra regional
O outro objetivo
estratégico do Israel de Netanyahu é enfraquecer ou mesmo derrotar militarmente
o Irão, que apoia os braços armados do Hezbollah, Hamas e outros menores na sua
luta anti-Israel. Para atingir este objetivo também o 7 de outubro e o que se
seguiu possibilitaram a evolução das tensões e atos bélicos para um conflito
regional em larga escala, ainda contido, mas que apontam o risco de uma guerra
entre o Irão e Israel/Estados Unidos e outras potências ocidentais, de
imprevisíveis consequências. É bom lembrar que a França também apoia ativamente
Israel na defesa aérea. A OTAN chegará a envolver-se neste vespeiro?
Até que ponto a
escalada militar prosseguirá com a ocupação do sul do Líbano, com o
bombardeamento sistemático de Beirute e outros alvos, não só no Líbano, não
sabemos. Mas está claro que Israel prosseguirá sua ofensiva, sem que ela
neutralize o Hezbollah. Isto porque este partido político, movimento social e
religioso e seu braço armado, está solidamente implantado na sociedade libanesa
como representante dos xiitas. Mas estes não são uma comunidade isolada,
convivem com a manta de retalhos étnica e religiosa libanesa. Tem representação
no Estado libanês, ministros, deputados. São libaneses, queira Israel ou não.
Mesmo sofrendo duros golpes, os disparos de mísseis do Hezbollah sobre Israel
provavelmente continuarão nas próximas semanas, meses, anos. Da mesma maneira o
Hamas ressurgirá, pois é o movimento político-assistencial-militar mais popular
entre os palestinianos. Os sobreviventes em Gaza, que viram suas famílias e
vizinhos serem mortos e feridos, que viram a destruição de suas moradias, hospitais
e escolas, que vivem num território com uma qualidade de vida das piores senão
a pior em todo o mundo, continuarão a gerar militantes dispostos a tudo. E o
problema do “terrorismo” continuará para Israel. E sua população continuará a
viver sob tensão. Não há solução militar para a “guerra de Israel contra o
terrorismo”.
·
A cobertura dos meios
de comunicação ocidentais
Creio que muitos
concordarão que a cobertura dos conflitos no Médio Oriente, por parte da mídia
ocidental, é de um parcialismo revoltante, em especial a seguir ao 7 de
outubro. Em particular por parte de “comentadores convidados”, ex-militares com
pretensões de estrategistas, professores universitários arrogantes, em geral a
repetir de várias formas a narrativa muito bem trabalhada pela mídia
pró-Israel. Falo pela minha experiência em Portugal, onde vivo, mas desconfio
que um pouco por todo o Ocidente alargado, o caso é o mesmo. Apesar dos manuais
de redação indicarem a necessidade de dar a palavra às várias partes em
conflito, tem sido raro o espaço dado a notícias e comentários provenientes
da Al-Jazeera, por exemplo. A proporção entre a reprodução das
mensagens governamentais israelitas e as declarações de seus oponentes, quer da
Hamas, quer da Autoridade Palestiniana e de outros países árabes, é, perdoem a
redundância, completamente desproporcional. Como se sabe, a guerra também é de
informação e neste sentido, o governo de Israel ganha de goleada de seus
inimigos.
É tamanha a carga
informativa da narrativa pró Israel que vai-se criando na opinião pública a
crença nesta versão da realidade. Só quando o número de mortos e a extensão da
destruição em Gaza atingiu proporções enormes é que se começou a ver
entrevistas com os palestinianos residentes, com os médicos dos hospitais
destruídos, com os funcionários da ONU não vitimados pelo fogo das IDF. O que
se viu e se vê na cobertura da invasão e destruição de Gaza por parte de
Israel, com escassa resistência por parte das Brigadas Al-Khassam, merece um
estudo aprofundado por jornalistas isentos e até pela academia.
·
Israel: que futuro
Neste século XXI as
extremas direitas, em suas várias matizes, cresceram enormemente e continuam a
marcar a agenda política de tantos países. No Ocidente e no Oriente, no Sul
Global e no Norte poderoso. E com elas, o ódio aos diferentes, sejam eles imigrantes
nos países ricos, refugiados em todos os quadrantes, muçulmanos na Índia,
minorias em tantos outros. O antissemitismo, a islamofobia, o racismo e outras
fobias várias marcam a atualidade. O populismo e o autoritarismo do Estado
sobre os cidadãos generalizaram-se, e Israel não é exceção. A quem interessa a
manutenção das tensões bélicas mundiais, entre as quais a situação do Médio
Oriente está no topo há muitos decênios? Estados Unidos, (38,8%), Rússia e
França somam 67% das exportações de armas em todo o mundo. Um mundo mais
pacífico interessa a estas empresas, altamente representadas nos respectivos
governos?
Israel tem o direito
de existir, mas as bases de sua existência basearam-se em grande parte no
desrespeito aos direitos inalienáveis dos palestinianos, que lá viviam há
tantos séculos. Há um pecado original, cujas consequências foram negativamente
potencializadas e atualmente estão ao rubro, em matéria de impossibilidade de
convivência. Mas pode um país, uma nação, um Estado sobreviver e evoluir
cercado de inimigos ou pelo menos de países não amigos. Tendo que gerir
autoritariamente territórios ocupados com populações hostis? Um Estado que se
permite declarar como “persona non grata” o secretário-geral da ONU? Por quanto
tempo e a que preço para sua população, para sua economia?
Desejo um futuro de
paz para Israel, um país extraordinário sob vários aspectos. Mas que necessita
de, no imediato, se livrar de Netanyahu e de sua governação da extrema-direita
belicista. E mudar radicalmente de atitude em relação aos palestinianos e a seus
vizinhos e com quase todo o mundo. De abdicar da arrogância e da estratégia de
assentar sua existência num Estado militarizado e numa guerra mais ou menos
permanente contra seus “inimigos”. Infelizmente esta mudança é pouco provável a
curto e médio prazo, a não ser que na sequência de tragédias advindas do
recrudescer do conflito com o Irã. Esperemos que sejam evitadas.
Fonte: A Terra é
Redonda
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