Negar aos palestinos o direito à resistência
é prendê-los na condição de vítimas
A luta da resistência
palestina não é estranha aos filhos do Brasil ou não deveria ser. Ao olhar
para os povos que aqui estavam antes dos colonizadores e os que foram
sequestrados de suas terras ancestrais na África, percebemos que os anseios e
até mesmo estratégias dos povos oprimidos se entrelaçam através do tempo e
superam barreiras intercontinentais.
Estudando o mais
emblemático e relembrado caso de resistência anti-colonial brasileira, o
Quilombo de Palmares, veremos a mesma força incansável na busca pela libertação
contra potências coloniais dos palestinos nas Intifadas, táticas de guerrilha e
emboscadas semelhantes contra os portugueses e holandeses.
Gaza e Palmares foram
cercadas por seus algozes e isso os forçou a resistir, não só militarmente, mas
como centros culturais vibrantes frente a limpeza étnica colonial.
<><> A
estratégia colonial da falsa paz
Vemos também estratégias coloniais se
repetirem nas tentativas de israel e seus agentes de propaganda, de manchar o
legado dos líderes da resistência, narrativa infelizmente adotada pela mídia
hegemônica burguesa.
Assim como vemos até
hoje representantes da direita brasileira espalhando mentiras disseminadas
desde os descendentes dos senhores de escravos e bandeirantes sobre o legado de
Zumbi. Se questiona com inverdades as índoles dos combatentes, mas sabem que mesmo
os vilificando, o povo enxerga através dessa demonização e desumanização.
Relatos da época e a
história recente da Palestina também apontam traições similares, nos ensinando
o perigo dos colaboracionistas coloniais e seu poder de ruir movimentos de
resistência, assim como a Autoridade Palestina trilhou um caminho sangrento a partir
da Conferência de Madrid em 1991.
O líder anterior ao
mártir Zumbi chegou a se sentar com os colonizadores e traçou um acordo de paz
que prometia entregar escravizados fugidos aos senhores, um acordo que, como os
de Oslo, foi feito para o colonizador e não para o benefício da luta dos colonizados.
Esses atos de traição interna, junto com as campanhas militares genocidas,
foram fatores centrais para o fim do quilombo.
O discurso
anti-resistência na região árabe baseia-se em três pressupostos: (i) que não
existem ambições inimigas fora da Palestina; (ii) que uma solução política para
a questão palestina é possível no quadro de alguma “solução de dois Estados”;
(iii) que o discurso sionista que ameaça e atinge um país ou partido na região
não se reflete necessariamente noutros países ou partidos.
É inegável que Israel
é um fator desestabilizador da região, e o apoio do ocidente à sua criação está
intimamente ligado ao cumprimento especificamente desse papel.
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Dividir para colonizar
Estas hipóteses podem
ser refutadas com base em fatos que evidenciam o contexto ofensivo que israel
mantém com o seu entorno, como os numerosos ataques que o Líbano foi submetido
durante a era da sua neutralidade não declarada, a recusa dos sionistas em retirar-se
dos territórios libaneses ocupados em 1982, apesar da saída das forças
palestinas de Beirute,da entrada de forças ocidentais e do cancelamento do
Acordo do Cairo.
Não muito longe disso
estão os ataques a que a Síria tem sido submetida desde 2013, em violação do
cessar-fogo que dura 40 anos desde a assinatura do acordo de desligamento, e os
ataques que israel vem realizando contra a população iemenita.
Os memorandos emitidos
pelo Departamento do Médio Oriente do Ministério dos Negócios Estrangeiros do
regime israelense em junho de 1950 e janeiro de 1951 mostram a importância que
o sionismo atribui à divisão dos países árabes e à dispersão das suas opções.
Estes memorandos
incluíam, segundo Reuven Erlich (um agente do serviço de espionagem de israel)
em seu livro “The Lebanese Maze”(O Labirinto Libanês), cinco princípios
fundamentais sobre os quais se baseia a política externa israelense, e o que
nele se destaca é: confrontar qualquer manifestação de unidade árabe com base
em suas repercussões negativas sobre israel e no equilíbrio de poder com o
mundo árabe.
Não por acaso, os
Estados Unidos vêm operando para promover acordos de normalização e construir
acordos com regimes colaboracionistas, como Egito, Jordânia, Emirados Árabes,
Arábia Saudita etc. A fragmentação do mundo árabe e o enfraquecimento de
projetos de libertação nacional na região integram a estratégia sionista.
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Quando as palavras falham em evitar a morte, só as armas resistem
O intelectual
palestino Ghassan Kanafani percebeu desde cedo as palavras e declarações que,
por mais fortes e capazes que sejam na formulação de uma posição teórica,
permanecem incompletas e frágeis se não forem apoiadas pela resistência armada
e por uma ação política clara.
Certa vez, retornando
justamente de uma viagem a Gaza em 1966, escreveu: “mais do que em qualquer
outro momento no passado, o único valor das minhas palavras é que elas são uma
substituição pobre e insuficiente para a ausência de armas, e agora empalidecem
diante do surgimento de verdadeiros homens que morrem todos os dias em busca de
algo que eu respeito.”
Apenas o racismo e o
orientalismo podem levar o leitor desavisado a interpretar essas palavras como
a compreensão da violência como um fim em si mesmo. A escolha pela resistência
armada vem de uma compreensão profunda sobre quem é o inimigo, o que ele pretende
e como ele exerce sua opressão.
Perante um poderoso
inimigo sionista, organicamente ligado aos interesses do imperialismo e do
grande capital, Kanafani viu que o povo palestino só poderia libertar-se
recorrendo ao mais relevante dos elementos do poder: as armas.
Ele viu que a ausência
de armas e a fragilidade da preparação e do treinamento foram os principais
motivos da perda da pátria, e que um dos motivos da derrota da Grande Revolta
na Palestina (1936-1939) foi a falta de armas e a incapacidade de empregá-las
adequadamente na batalha.
A geração de Kanafani
na resistência foi vítima de múltiplos assassinatos que visavam decapitar
política e estrategicamente a OLP. A brutalidade do regime sionista nunca
arrefeceu.
A Primeira Intifada,
iniciada a partir de Gaza, começou como um levante popular e atos de
desobediência civil em 1987 contra as agressões, execuções, demolições de
casas, destruição de plantações e todas as agruras que vêm de uma ocupação que
invade todos os aspectos da vida.
A conferência de
Madrid 1991 é até hoje uma das traições mais marcantes ocorrida no interior do
movimento palestino. Pela primeira vez desde os anos 70, palestinos e
israelenses sentavam à mesa de negociação para tentar construir um acordo de
paz, com marcante participação dos movimentos de mulheres na formulação
política.
Após 20 meses de
negociações, 9 rodadas de encontros e ampla participação de movimentos sociais
e populares, a iniciativa foi traída pelos acordos de Oslo, negociados, pelas
costas dos atores envolvidos nas tratativas de Madrid, por setores à direita e
colaboracionistas que viriam a compor a Autoridade Nacional Palestina.
Oslo representou uma
capitulação: enquanto o lado palestino reconheceu o “direito do Estado de
Israel de existir”, os israelenses apenas reconheceram a Autoridade Palestina
como “representante do povo palestino”. A insatisfação com os termos de Oslo
causou uma grande cisão política na OLP e entre toda a população
Palestina.
Os assentamentos
israelenses em Gaza não foram desmobilizados por benevolência de israel, e sim
porque sua manutenção tornou-se insustentável, especialmente a partir da
Segunda Intifada, pelas ações da resistência que se proliferavam mesmo sob
forte repressão, encarceramento em massa, execuções e torturas.
O apoio popular que o
Hamas angariou e que culminou com sua vitória nas eleições legislativas de 2005
estava profundamente relacionado com o grupo ter como principais bandeiras a
resistência à ocupação israelense e a crítica à corrupção que contaminava a
Autoridade Palestina sob os setores mais colaboracionistas do Fatah.
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‘Cortar a grama’: eufemismo para genocídio
Com a desmobilização
dos assentamentos, veio o bloqueio e o cerco à Gaza, uma forma de ocupação à
distância. Gaza passou a ser objeto da política que os israelenses sadicamente
apelidaram de “cortar a grama”.
Ou seja, na
alternância entre “guerras quentes” com ataques aéreos e invasões terrestres e
períodos de incremento do cerco e assassinatos de lideranças promovidos pelos
serviços de espionagem Shin Bet e Mossad nas épocas de “baixa intensidade”.
Nessa lógica,
observamos operações militares israelenses que causaram enorme destruição de
infraestrutura e perda de milhares de vidas em 2002, 2004, 2008, 2012, 2014 e
2021, com ataques aéreos esporádicos atingindo a população civil em todos os
anos de “intervalo”.
As crianças que na
Segunda Intifada jogavam pedras nos tanques israelenses são hoje os combatentes
da resistência em Gaza. Esses combatentes, quando romperam os muros do campo de
concentração de Gaza na manhã de 7 de outubro, colocaram pela primeira vez os
pés sobre as terras das quais seus avós foram expulsos na Nakba em 1948.
Talvez um dos aspectos
mais emblemáticos da resistência de Gaza seja sua inventividade ante extrema
escassez de recursos, cerco e constantes ataques militares de israel.
Esse exército composto
por filhos, netos e irmãos de mártires construiu seu próprio arsenal indígena
de armamentos, como, por exemplo, a munição Yasin 105 especialmente para
atingir os hipertecnológicos tanques Merkava, e talvez no exemplo mais concreto
que se possa conceber como legítima defesa, têm sua carga explosiva
produzida a partir de bombas israelenses e americanas que caem sobre Gaza, não
explodem e são recicladas.
Ao fim e ao cabo, a
questão da resistência não é sobre se você, leitor brasileiro, adere
politicamente ao programa político-ideológico do Hamas ou de alguma das outras
organizações que compõem, neste momento, a resistência à ocupação genocida de
israel, até porque essas organizações vêm mantendo diálogos entre si e buscando
construir um programa político comum, já tendo sido realizadas duas rodadas de
negociação, sediadas respectivamente pela Rússia e pela China, e vêm afirmando
sua unidade programática.
Contribuir com a
criminalização e estigmatização desses movimentos mediante a reprodução de
categorias recheadas de racismo e esvaziadas de sentido como “terrorista”
significa, na prática, relegar o povo palestino exclusivamente à condição de
vítima.
A resistência armada
ocorre dentro de um contexto, é capitaneada por organizações que têm seus
programas políticos devidamente escondidos do ocidente e da imprensa hegemônica
por fake news, propaganda sionista e interdição do debate.
Entretanto,
instituições que nada têm de revolucionário, como a Organização das Nações
Unidas, já enunciaram em múltiplas oportunidades que a resistência à ocupação
estrangeira, inclusive por meio das armas, é um direito reconhecido de todos os
povos e que decorre do direito à autodeterminação.
E autodeterminação
significa que cabe aos povos originários definirem suas próprias táticas e
estratégia sobre os rumos do próprio território. O genocídio na Palestina e a
escalada contra os libaneses e iemenitas nos coloca uma pergunta necessária:
iremos nos aliar com os invasores, senhores de escravos e traidores ou
ficaremos ao lado daqueles que ousam lutar e vencer?
¨ O Oriente Médio (e o mundo) à caminho do Inferno. Por Ronaldo
Lima Lins
A decisão do governo
de Israel no sentido de tornar António Guterres, o Secretário-Geral da
ONU, persona non grata explicita o que já se sabia. Tel Aviv
imagina que, cometa os crimes que cometer, continuará impune. Não bastava o
genocídio em Gaza e repete coisa semelhante no Líbano, colocando em risco
populações civis sob a obsessão de eliminar inimigos. É certo que, no direito
internacional, leis têm dificuldades de se implantar.
Decisões de tribunais,
envolvendo dirigentes de relevo, não pegam e palpitam escandalosamente num
círculo pequeno de pessoas. Nos casos gritantes, como o dos massacres contra
palestinos, repercutem na política interna dos países, vide as passeatas estudantis
nos EUA e no resto do mundo, incluindo organizações judaicas.
Dificilmente, Benjamin Netanyahu disporia de um nome da grandeza de um
António Guterres para fazer valer o fel das suas frustrações.
O Secretário-Geral não
chegou onde se encontra por obra do acaso. Ostenta um currículo para ninguém
botar defeito. É um humanista que não pode se calar frente a atrocidades
escandalosas. Antes de agir (ou falar), enumera reflexões que os culpados
utilizam à sua maneira, na maioria das vezes ignorando-as. Além disso, preside
uma assembleia integrada por um conjunto de nações que, de fato, e em sua
maioria, não suportam a perpetuação de abusos como se estivéssemos de passagem
comprada para o Inferno. A decisão de Israel, no caso, cai num vazio gritante.
Ninguém em sã consciência, a não ser movido por interesses confessos, possui
meios frente a isso de se fingir de surdo. A História lhes reserva um lugar
respeitável na galaria dos criminosos dignos de nota. Como ocorreu no Vietnã,
manifestações se fizeram ouvir e se materializaram na retirada às pressas dos
soldados norte-americanos. Parece evidente que se tornar persona non
grata por iniciativa de Netanyahu representa, para António Guterres,
um galardão entre os muitos que figuram no seu peito.
No entanto, não há
como desconhecer o potencial de tragédia que se irradia do Oriente Médio,
ameaçando romper fronteiras, além dos envolvidos nos conflitos. Mesmo sem o
perigo nuclear, não obstante permaneça possível, guerras totais, já o sabemos,
ferem a raiz da condição humana na dimensão de seus estragos e no rol das
vítimas. Nos Estados Unidos, em plena fase de um período eleitoral,
acumulando-se com os temas internos, as anomalias de Israel começam a se tornar
incômodas.
A ironia contamina o
universo das responsabilidades numa sociedade que se dá ao luxo de financiar
conflitos e fechar os olhos para a pobreza. Nas contradições do sistema, as
verbas para o belicismo não dispõem de contrapesos com programas sociais. Eles
imaginam que a miséria deve desenvolver seus próprios recursos para se
transformar em riqueza. Pobres só seriam pobres por atributos pessoais e não
porque os condenaram a sê-lo. Lógica esquisita saída de mentes doentias, é
claro. O caminho para o inferno comporta estas aberrações.
Fonte: Por Rawa Alsagheer e Maíra Pinheiro, em The
Intercept/Brasil 247
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