Filhos da Nova República: os partidos
tradicionais e as eleições municipais
As
eleições municipais deste ano apontam para uma tendência clara: o Brasil está
mais conservador. Enquanto a esquerda se mantém avessa às críticas, distante do
povo e com pautas desconectadas da realidade do brasileiro médio, a
centro-direita e a direita se espalham pelo país ao dizer o que o eleitor quer
ouvir
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Sérgio Abranches, um
dos mais relevantes cientistas políticos brasileiros, identificou, em 1988, o
quanto a permissividade com a fragmentação partidária dificulta a formação de
maiorias no Congresso Nacional, gerando a necessidade de articular acordos interpartidários
para manter a governabilidade. À luz desse pensamento, pode-se analisar que os
governos de coalizão, cada vez mais frequentes no Brasil, refletem a cultura
política nacional, imbuída de um forte personalismo e relegando a papéis
secundários a agenda programática e os partidos políticos. Além disso,
destaca-se ainda a incoerência entre os votos para o Executivo e o Legislativo,
um traço fundamental da falta de instrução do brasileiro e do “pecado original”
da pulverização partidária, que leva à necessidade de composição de uma base
parlamentar sólida, quase sempre construída sobre acordos escusos e sem
qualquer coerência ideológica.
No país, essa fórmula
perdurou ao longo de três décadas, tendo no MDB o seu principal ator. A legenda
atuou como fiel da balança em todos os governos, fossem eles de direita, de
centro ou de esquerda. Entretanto, o panorama nacional tem passado por transformações
que colocaram em xeque as principais siglas que atuaram como artífices do
Brasil pós-ditadura: MDB, PSDB, PDT, PP, DEM, PTB, PT, PSB e PL tiveram, em
maior ou menor grau, importância na consolidação do regime construído após a
restauração da democracia. Mas, como será que esses filhos da Nova República
estão performando?
• Transformações
A vitória de Jair
Bolsonaro, em 2018, expôs o desgaste da Nova República. Sua vitória significou
o colapso das certezas no meio político. Membro do baixo clero, filiado a um
partido nanico, com apenas 8 segundos de propaganda na TV, sem o apoio de
grandes nomes e com discurso antissistema, seu sucesso parecia improvável. Os
institutos de pesquisa erraram em suas projeções, e a surpresa geral indicava
uma transformação em curso. De lá para cá, quem não entendeu as mudanças
ocorridas foi deixado para trás, como evidenciam as eleições municipais deste
ano. Os antigos protagonistas da Nova República, especialmente os de esquerda,
parecem ainda não compreender a nova dinâmica política.
As eleições municipais
não devem ser desprezadas. Embora sejam menos prestigiosas que os pleitos para
cargos federais, vale lembrar a máxima do saudoso Ulysses Guimarães: “a
política se faz nos municípios”. As disputas locais são cruciais para entender
embates de âmbito nacional, pois fortalecem as bases locais, com prefeitos e
vereadores atuando como importantes cabos eleitorais. Os resultados também
indicam tendências no humor do eleitorado e ajudam a testar alianças que podem
ser replicadas em embates nacionais. Além disso, o controle de prefeituras
garante recursos, infraestrutura e fôlego para a dinâmica das campanhas à
Presidência e ao Congresso Nacional. Em suma, elas são mais relevantes do que o
senso comum costuma imaginar.
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Balanço da performance dos partidos tradicionais:
• Movimento Democrático Brasileiro (MDB)
Começamos avaliando o
desempenho do MDB, ator central da Nova República. A sigla que carregou durante
décadas o título de maior partido do país foi ultrapassada pelo PSD do
ambidestro Gilberto Kassab, que angariou 878 prefeituras, dentre elas a da
capital carioca com o popular Eduardo Paes. Embora o MDB ainda seja uma força
municipal importante, com 847 municípios e o maior número de vereadores no
Nordeste, a perda de hegemonia acompanha a tendência de declínio nacional,
sendo o número de parlamentares na Câmara dos Deputados um bom termômetro: o
MDB passou de 89 cadeiras, em 2006, para apenas 44.
O MDB sofre do mesmo
mal que afeta outras siglas tradicionais: envolvimento em grandes escândalos de
corrupção e envelhecimento de seus quadros. Além de o partido ter virado
sinônimo do fisiologismo político típico do Centrão, velhos caciques como
Romero Jucá, Renan Calheiros, Sergio Cabral, Moreira Franco, Eduardo Cunha,
Henrique Eduardo Alves e Michel Temer estiveram envolvidos até o pescoço na
operação Lava Jato.
• Partido da Social Democracia Brasileira
(PSDB)
O PSDB, que já venceu
duas eleições presidenciais em primeiro turno com Fernando Henrique Cardoso e
marcou posição de centro gravitacional da centro-direita por mais ou menos duas
décadas, sofre de um duplo problema: a questão etária e a crise de identidade.
Desde a contestação do resultado da eleição de 2014, quando Aécio Neves perdeu
a presidência por pouco mais de 1% dos votos, o partido manchou a sua tradição
democrática e entrou em queda livre, passando pelas mãos do presunçoso João
Dória e chegando ao fundo do poço com a cadeirada de José Luiz Datena, que não
passou dos 2% na capital paulista.
Mais grave: o PSDB não
conseguiu eleger um único vereador sequer para a cidade de São Paulo, um
estratégico reduto tucano. Se em 2016 a legenda teve quase 800 prefeitos, neste
primeiro turno o número foi de apenas 269, uma queda vertiginosa de aproximadamente
65%.
• Partido Democrático Trabalhista (PDT)
O PDT já foi o mais
importante partido de esquerda do país, rivalizando com o PT até o último
minuto nas eleições de 1989. Em 2004, ano da morte de seu fundador, Leonel
Brizola, o partido elegeu prefeitos em capitais como São Luís, Maceió e
Salvador. Nas eleições municipais seguintes, chegou a 351 prefeituras,
garantindo o governo de Macapá e os vices de Porto Alegre e Palmas.
Em 2024, o partido de
Ciro Gomes teve o pior desempenho de sua história, conquistando apenas 148
municípios e fracassando na tentativa de reeleição em Fortaleza. Em comparação
a 2020, o PDT sofreu uma verdadeira sangria, perdendo quase 1/4 de seus
vereadores e enfraquecendo a ala da esquerda trabalhista.
• Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e
Democratas (DEM)
O PTB não existe mais.
Depois de se transformar em um satélite bolsonarista (alguém se lembra do Padre
Kelmon?), tornou-se PRD após sua união com o Patriota, buscando um
reposicionamento menos radical e se acomodando como parte do Centrão. Em sua
primeira eleição, a sigla alcançou 76 prefeituras, muito aquém das 212
alcançadas pelo PTB em 2020.
O DEM, antigo PFL,
também não resistiu à nova conjuntura: depois de um longo declínio no fim dos
anos 2000, o partido que foi um dos mais poderosos na década de 1990, deu
origem ao União Brasil após sua fusão com o PSL. Revigorado e com a
participação de jovens tanto liberais do MBL, o novo partido de direita vai
governar pelo menos 578 municípios.
• Partido Socialista Brasileiro (PSB)
Na esquerda, o maior
destaque é o PSB, que vem se consolidando como importante alternativa neste
campo desde as eleições presidenciais de 2014, quando lançou a candidatura de
Eduardo Campos e Marina Silva. Após uma abrupta queda entre 2016 e 2020, quando
perdeu 150 prefeituras, o partido conseguiu obter um aumento de 23% no número
de municípios neste ano.
Em Recife, a vitória
esmagadora do jovem João Campos – filho de Eduardo Campos e bisneto de Miguel
Arraes, dois ex-governadores de Pernambuco – sinaliza que uma nova liderança da
esquerda democrática pode emergir nos próximos anos, vinda de dentro da lógica
hereditária das elites tradicionais. A partir de 2025, o partido do
vice-presidente Geraldo Alckmin deverá administrar pelo menos 309 cidades,
superando o PT e o decadente PSOL, que perdeu a reeleição de sua única capital,
confirmando a ideia de que a esquerda radical não sabe administrar. Ademais, o
PSB tem uma imagem menos desgastada que seus homólogos de esquerda.
• Progressistas (PP)
O Progressistas,
herdeiro do antigo PDS, vem experimentando gradual crescimento desde as
eleições de 2012, passando de 474 municípios para 743 em 2024, uma variação
positiva de 56%. Ainda que se posicionando como um partido de direita, o PP tem
a seu favor um perfil mais flexível, típico do que se convencionou chamar de
Centrão. Dessa forma, a agremiação pode firmar alianças da esquerda à direita.
Seu presidente, o deputado Ciro Nogueira, e o presidente da Câmara, Arthur
Lira, são grandes raposas da política nacional, sendo os principais
responsáveis pelo avanço eleitoral do PP.
• Partido dos Trabalhadores (PT)
Referência de esquerda
no país, o PT vem se recuperando do enorme tombo que levou entre 2012 e 2020,
em função dos sucessivos escândalos de corrupção com cifras bilionárias e com
os desdobramentos da Operação Lava Jato. Naquele momento, o antipetismo tornou-se
uma verdadeira força política, levando o partido a perder 70% das prefeituras
pelo país.
A recuperação em 2024
foi significativa, com 250 prefeituras (aumento de quase 40%), mas muito longe
de atribuir ao PT a importância de seu passado recente. A partir de 2010, o
partido perdeu expressiva parte de seu eleitorado nas grandes cidades, e muitos
quadros importantes migraram para outras siglas. Além do profundo arranhão à
sua imagem com a prisão de Lula da Silva em 2018, o partido sofre para
apresentar uma renovação programática e de lideranças, sendo extremamente
dependente de um único líder: Lula, que além da alta rejeição, caminha para
seus 80 anos de idade.
• Partido Liberal (PL)
Criado em 1985,
tornou-se PR em 2006 e voltou a ser PL em 2019. Dois anos depois, abrigou o
grupo de Jair Bolsonaro, insatisfeito com a condução do PSL de Luciano Bivar. O
PL, portanto, já existia antes de Bolsonaro e compôs a base dos governos Lula
da Silva e Dilma Rousseff. Com a adesão de Jair Bolsonaro, o PL tem surfado na
onda conservadora e ampliado sua relevância nacional, chegando a 294
prefeituras em 2016, 345 em 2020 e, agora, 510, mais que o dobro do PT. Em
número de votos, a distância entre PL e PT é ainda maior: 15,7 milhões de
eleitores contra 8,9 milhões, respectivamente. Não surpreende que o PL tenha os
vereadores mais votados em 11 das 26 capitais.
É verdade que o
domínio da narrativa mediante o uso das redes sociais e a popularidade de
Bolsonaro foram determinantes para o crescimento acelerado do Partido Liberal.
Contudo, vale lembrar que as bênçãos de Bolsonaro não se restringem aos seus
correligionários, sendo comum o ex-presidente atuar como cabo eleitoral de alta
performance de políticos de diferentes partidos de direita. Apesar de sua
capacidade de transferir votos, a presença de Bolsonaro não é aceita com
submissão dentro do PL. No controle da legenda há quase vinte anos, Valdemar
Costa Neto ora afaga o ex-capitão, ora trava as tentativas da família Bolsonaro
de controlar a sigla.
• Um Brasil conservador
As eleições municipais
deste ano apontam para uma tendência clara: o Brasil está mais conservador.
Novas lideranças de direita conseguiram captar melhor os anseios das ruas,
utilizar as redes sociais de forma eficiente e entender novos fenômenos
culturais, como a ascensão do eleitorado evangélico. O Republicanos, antigo
PRB, é fruto deste contexto: ligado à Igreja Universal, o partido buscou
expandir seu público para além do segmento religioso, abrindo espaço para uma
nova geração de políticos conservadores. Em 2008, sua primeira disputa
municipal, o então PRB foi o mais votado em 54 cidades. Dezesseis anos depois,
o partido cresceu quase 700%, chegando a 430 prefeitos eleitos.
O principal sintoma do
crescimento do movimento conservador foi o reposicionamento da polarização
política a nível nacional: entre 1994 e 2014, PT e PSDB protagonizaram as
disputas presidenciais até o declínio tucano após a derrota de Aécio e a
Operação Lava Jato. Bolsonaro surgiu como uma alternativa a partir do nanico
PSL, retirando do PSDB o poder de gravitação sobre as direitas. Desde então,
Bolsonaro atrai para si o apoio de pequenas siglas satélites. O bolsonarismo se
tornou, portanto, um campo político multipartidário e não apenas um movimento
restrito às eleições de 2018 e 2022, quando rivalizou com o PT.
Nesta nova dinâmica,
não é difícil constatarmos que o PT e boa parte da esquerda tradicional vêm
passando por um processo de desgaste, não só pelo radicalismo de alguns
movimentos identitários, mas também pela falta de resposta a curto prazo aos
problemas urgentes no cotidiano das cidades, a exemplo da violência urbana.
Um fato pouco
comentado, inclusive, é a guinada nordestina para a direita, que já conquistou
capitais como Salvador, Maceió, Teresina, São Luís e disputará Fortaleza,
Natal, Aracaju e João Pessoa no segundo turno. Enquanto a esquerda se mantém
avessa às críticas, distante do povo e com pautas desconectadas da realidade do
brasileiro médio, a centro-direita e a direita se espalham pelo país ao dizer o
que o eleitor quer ouvir.
Fonte: Por Leandro
Gavião e Guilherme Galvão Lopes, no Le Monde
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