sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Filhos da Nova República: os partidos tradicionais e as eleições municipais

As eleições municipais deste ano apontam para uma tendência clara: o Brasil está mais conservador. Enquanto a esquerda se mantém avessa às críticas, distante do povo e com pautas desconectadas da realidade do brasileiro médio, a centro-direita e a direita se espalham pelo país ao dizer o que o eleitor quer ouvir

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Sérgio Abranches, um dos mais relevantes cientistas políticos brasileiros, identificou, em 1988, o quanto a permissividade com a fragmentação partidária dificulta a formação de maiorias no Congresso Nacional, gerando a necessidade de articular acordos interpartidários para manter a governabilidade. À luz desse pensamento, pode-se analisar que os governos de coalizão, cada vez mais frequentes no Brasil, refletem a cultura política nacional, imbuída de um forte personalismo e relegando a papéis secundários a agenda programática e os partidos políticos. Além disso, destaca-se ainda a incoerência entre os votos para o Executivo e o Legislativo, um traço fundamental da falta de instrução do brasileiro e do “pecado original” da pulverização partidária, que leva à necessidade de composição de uma base parlamentar sólida, quase sempre construída sobre acordos escusos e sem qualquer coerência ideológica.

No país, essa fórmula perdurou ao longo de três décadas, tendo no MDB o seu principal ator. A legenda atuou como fiel da balança em todos os governos, fossem eles de direita, de centro ou de esquerda. Entretanto, o panorama nacional tem passado por transformações que colocaram em xeque as principais siglas que atuaram como artífices do Brasil pós-ditadura: MDB, PSDB, PDT, PP, DEM, PTB, PT, PSB e PL tiveram, em maior ou menor grau, importância na consolidação do regime construído após a restauração da democracia. Mas, como será que esses filhos da Nova República estão performando?

•        Transformações

A vitória de Jair Bolsonaro, em 2018, expôs o desgaste da Nova República. Sua vitória significou o colapso das certezas no meio político. Membro do baixo clero, filiado a um partido nanico, com apenas 8 segundos de propaganda na TV, sem o apoio de grandes nomes e com discurso antissistema, seu sucesso parecia improvável. Os institutos de pesquisa erraram em suas projeções, e a surpresa geral indicava uma transformação em curso. De lá para cá, quem não entendeu as mudanças ocorridas foi deixado para trás, como evidenciam as eleições municipais deste ano. Os antigos protagonistas da Nova República, especialmente os de esquerda, parecem ainda não compreender a nova dinâmica política.

As eleições municipais não devem ser desprezadas. Embora sejam menos prestigiosas que os pleitos para cargos federais, vale lembrar a máxima do saudoso Ulysses Guimarães: “a política se faz nos municípios”. As disputas locais são cruciais para entender embates de âmbito nacional, pois fortalecem as bases locais, com prefeitos e vereadores atuando como importantes cabos eleitorais. Os resultados também indicam tendências no humor do eleitorado e ajudam a testar alianças que podem ser replicadas em embates nacionais. Além disso, o controle de prefeituras garante recursos, infraestrutura e fôlego para a dinâmica das campanhas à Presidência e ao Congresso Nacional. Em suma, elas são mais relevantes do que o senso comum costuma imaginar.

<><> Balanço da performance dos partidos tradicionais:

•        Movimento Democrático Brasileiro (MDB)

Começamos avaliando o desempenho do MDB, ator central da Nova República. A sigla que carregou durante décadas o título de maior partido do país foi ultrapassada pelo PSD do ambidestro Gilberto Kassab, que angariou 878 prefeituras, dentre elas a da capital carioca com o popular Eduardo Paes. Embora o MDB ainda seja uma força municipal importante, com 847 municípios e o maior número de vereadores no Nordeste, a perda de hegemonia acompanha a tendência de declínio nacional, sendo o número de parlamentares na Câmara dos Deputados um bom termômetro: o MDB passou de 89 cadeiras, em 2006, para apenas 44.

O MDB sofre do mesmo mal que afeta outras siglas tradicionais: envolvimento em grandes escândalos de corrupção e envelhecimento de seus quadros. Além de o partido ter virado sinônimo do fisiologismo político típico do Centrão, velhos caciques como Romero Jucá, Renan Calheiros, Sergio Cabral, Moreira Franco, Eduardo Cunha, Henrique Eduardo Alves e Michel Temer estiveram envolvidos até o pescoço na operação Lava Jato.

•        Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB)

O PSDB, que já venceu duas eleições presidenciais em primeiro turno com Fernando Henrique Cardoso e marcou posição de centro gravitacional da centro-direita por mais ou menos duas décadas, sofre de um duplo problema: a questão etária e a crise de identidade. Desde a contestação do resultado da eleição de 2014, quando Aécio Neves perdeu a presidência por pouco mais de 1% dos votos, o partido manchou a sua tradição democrática e entrou em queda livre, passando pelas mãos do presunçoso João Dória e chegando ao fundo do poço com a cadeirada de José Luiz Datena, que não passou dos 2% na capital paulista.

Mais grave: o PSDB não conseguiu eleger um único vereador sequer para a cidade de São Paulo, um estratégico reduto tucano. Se em 2016 a legenda teve quase 800 prefeitos, neste primeiro turno o número foi de apenas 269, uma queda vertiginosa de aproximadamente 65%.

•        Partido Democrático Trabalhista (PDT)

O PDT já foi o mais importante partido de esquerda do país, rivalizando com o PT até o último minuto nas eleições de 1989. Em 2004, ano da morte de seu fundador, Leonel Brizola, o partido elegeu prefeitos em capitais como São Luís, Maceió e Salvador. Nas eleições municipais seguintes, chegou a 351 prefeituras, garantindo o governo de Macapá e os vices de Porto Alegre e Palmas.

Em 2024, o partido de Ciro Gomes teve o pior desempenho de sua história, conquistando apenas 148 municípios e fracassando na tentativa de reeleição em Fortaleza. Em comparação a 2020, o PDT sofreu uma verdadeira sangria, perdendo quase 1/4 de seus vereadores e enfraquecendo a ala da esquerda trabalhista.

•        Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e Democratas (DEM)

O PTB não existe mais. Depois de se transformar em um satélite bolsonarista (alguém se lembra do Padre Kelmon?), tornou-se PRD após sua união com o Patriota, buscando um reposicionamento menos radical e se acomodando como parte do Centrão. Em sua primeira eleição, a sigla alcançou 76 prefeituras, muito aquém das 212 alcançadas pelo PTB em 2020.

O DEM, antigo PFL, também não resistiu à nova conjuntura: depois de um longo declínio no fim dos anos 2000, o partido que foi um dos mais poderosos na década de 1990, deu origem ao União Brasil após sua fusão com o PSL. Revigorado e com a participação de jovens tanto liberais do MBL, o novo partido de direita vai governar pelo menos 578 municípios.

•        Partido Socialista Brasileiro (PSB)

Na esquerda, o maior destaque é o PSB, que vem se consolidando como importante alternativa neste campo desde as eleições presidenciais de 2014, quando lançou a candidatura de Eduardo Campos e Marina Silva. Após uma abrupta queda entre 2016 e 2020, quando perdeu 150 prefeituras, o partido conseguiu obter um aumento de 23% no número de municípios neste ano.

Em Recife, a vitória esmagadora do jovem João Campos – filho de Eduardo Campos e bisneto de Miguel Arraes, dois ex-governadores de Pernambuco – sinaliza que uma nova liderança da esquerda democrática pode emergir nos próximos anos, vinda de dentro da lógica hereditária das elites tradicionais. A partir de 2025, o partido do vice-presidente Geraldo Alckmin deverá administrar pelo menos 309 cidades, superando o PT e o decadente PSOL, que perdeu a reeleição de sua única capital, confirmando a ideia de que a esquerda radical não sabe administrar. Ademais, o PSB tem uma imagem menos desgastada que seus homólogos de esquerda.

•        Progressistas (PP)

O Progressistas, herdeiro do antigo PDS, vem experimentando gradual crescimento desde as eleições de 2012, passando de 474 municípios para 743 em 2024, uma variação positiva de 56%. Ainda que se posicionando como um partido de direita, o PP tem a seu favor um perfil mais flexível, típico do que se convencionou chamar de Centrão. Dessa forma, a agremiação pode firmar alianças da esquerda à direita. Seu presidente, o deputado Ciro Nogueira, e o presidente da Câmara, Arthur Lira, são grandes raposas da política nacional, sendo os principais responsáveis pelo avanço eleitoral do PP.

•        Partido dos Trabalhadores (PT)

Referência de esquerda no país, o PT vem se recuperando do enorme tombo que levou entre 2012 e 2020, em função dos sucessivos escândalos de corrupção com cifras bilionárias e com os desdobramentos da Operação Lava Jato. Naquele momento, o antipetismo tornou-se uma verdadeira força política, levando o partido a perder 70% das prefeituras pelo país.

A recuperação em 2024 foi significativa, com 250 prefeituras (aumento de quase 40%), mas muito longe de atribuir ao PT a importância de seu passado recente. A partir de 2010, o partido perdeu expressiva parte de seu eleitorado nas grandes cidades, e muitos quadros importantes migraram para outras siglas. Além do profundo arranhão à sua imagem com a prisão de Lula da Silva em 2018, o partido sofre para apresentar uma renovação programática e de lideranças, sendo extremamente dependente de um único líder: Lula, que além da alta rejeição, caminha para seus 80 anos de idade.

•        Partido Liberal (PL)

Criado em 1985, tornou-se PR em 2006 e voltou a ser PL em 2019. Dois anos depois, abrigou o grupo de Jair Bolsonaro, insatisfeito com a condução do PSL de Luciano Bivar. O PL, portanto, já existia antes de Bolsonaro e compôs a base dos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff. Com a adesão de Jair Bolsonaro, o PL tem surfado na onda conservadora e ampliado sua relevância nacional, chegando a 294 prefeituras em 2016, 345 em 2020 e, agora, 510, mais que o dobro do PT. Em número de votos, a distância entre PL e PT é ainda maior: 15,7 milhões de eleitores contra 8,9 milhões, respectivamente. Não surpreende que o PL tenha os vereadores mais votados em 11 das 26 capitais.

É verdade que o domínio da narrativa mediante o uso das redes sociais e a popularidade de Bolsonaro foram determinantes para o crescimento acelerado do Partido Liberal. Contudo, vale lembrar que as bênçãos de Bolsonaro não se restringem aos seus correligionários, sendo comum o ex-presidente atuar como cabo eleitoral de alta performance de políticos de diferentes partidos de direita. Apesar de sua capacidade de transferir votos, a presença de Bolsonaro não é aceita com submissão dentro do PL. No controle da legenda há quase vinte anos, Valdemar Costa Neto ora afaga o ex-capitão, ora trava as tentativas da família Bolsonaro de controlar a sigla.

•        Um Brasil conservador

As eleições municipais deste ano apontam para uma tendência clara: o Brasil está mais conservador. Novas lideranças de direita conseguiram captar melhor os anseios das ruas, utilizar as redes sociais de forma eficiente e entender novos fenômenos culturais, como a ascensão do eleitorado evangélico. O Republicanos, antigo PRB, é fruto deste contexto: ligado à Igreja Universal, o partido buscou expandir seu público para além do segmento religioso, abrindo espaço para uma nova geração de políticos conservadores. Em 2008, sua primeira disputa municipal, o então PRB foi o mais votado em 54 cidades. Dezesseis anos depois, o partido cresceu quase 700%, chegando a 430 prefeitos eleitos.

O principal sintoma do crescimento do movimento conservador foi o reposicionamento da polarização política a nível nacional: entre 1994 e 2014, PT e PSDB protagonizaram as disputas presidenciais até o declínio tucano após a derrota de Aécio e a Operação Lava Jato. Bolsonaro surgiu como uma alternativa a partir do nanico PSL, retirando do PSDB o poder de gravitação sobre as direitas. Desde então, Bolsonaro atrai para si o apoio de pequenas siglas satélites. O bolsonarismo se tornou, portanto, um campo político multipartidário e não apenas um movimento restrito às eleições de 2018 e 2022, quando rivalizou com o PT.

Nesta nova dinâmica, não é difícil constatarmos que o PT e boa parte da esquerda tradicional vêm passando por um processo de desgaste, não só pelo radicalismo de alguns movimentos identitários, mas também pela falta de resposta a curto prazo aos problemas urgentes no cotidiano das cidades, a exemplo da violência urbana.

Um fato pouco comentado, inclusive, é a guinada nordestina para a direita, que já conquistou capitais como Salvador, Maceió, Teresina, São Luís e disputará Fortaleza, Natal, Aracaju e João Pessoa no segundo turno. Enquanto a esquerda se mantém avessa às críticas, distante do povo e com pautas desconectadas da realidade do brasileiro médio, a centro-direita e a direita se espalham pelo país ao dizer o que o eleitor quer ouvir.

 

Fonte: Por Leandro Gavião e Guilherme Galvão Lopes, no Le Monde

 

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