sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Frei Betto: ‘Ressignificar o socialismo’

Tive a honra de ser convidado a abrir, em 26 de setembro último, na Cidade do México, o XXVI Seminário Internacional “Os partidos e uma nova sociedade”, promovido pelo Partido do Trabalho que, em aliança com os partidos Morena e Verde, elegeram a primeira mulher presidente do México: Claudia Sheinbaum.

Na presença de delegações de partidos progressistas de cinco continentes, iniciei por ressaltar os sete obstáculos à governabilidade:

1) Dificuldades econômicas devido à dependência externa, o que impossibilita implementar políticas de distribuição de renda e combate à pobreza. Em geral, os países em desenvolvimento dependem, historicamente, da exportação de commodities e da exploração de seus recursos naturais. A volatilidade dos preços no mercado internacional e a pressão das instituições financeiras hegemônicas, como o FMI, impedem os governos de manterem, a longo prazo, programas sociais sustentáveis.

2) Governança e corrupção. Em muitos países as forças progressistas se sentem obrigadas, para garantir a governabilidade, a negociar com as forças conservadoras. E as estruturas de governo são contaminadas pela corrupção, o que faz refluir o apoio popular.

3) Avanço da direita. Os setores de direita, respaldados pelas Big Techs e as redes digitais (robôs, algoritmos, Inteligência Artificial), se apropriam da agenda de costumes, tão sensível à população, e manipulam o sentimento religioso. Adotam uma retórica nacionalista, xenófoba, anti-imigração e favorável ao neoliberalismo.

4) Falta unidade das tendências de esquerda de cada país e, portanto, de estratégias comuns.

5) A pressão imperialista, como os bloqueios a Cuba e Venezuela, asfixia a economia dos países progressistas, afetando as condições de vida da população.

6) Falta uma correta gestão da crise climática e dos recursos naturais. Há tensão entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental. A exploração de recursos naturais (minério, petróleo, agronegócio etc.), em geral feita pelo capital privado, desencadeia conflitos com os movimentos indígenas e ambientalistas.

7) São insuficientes os mecanismos para combater a desigualdade social e o racismo estrutural. E as populações indígenas e negras são precariamente incluídas nas esferas de poder.

Ressaltei que ser de esquerda é, sobretudo, uma opção ética, o que exige de seus militantes coerência de ação com os princípios abraçados. Fidel me disse um dia que um revolucionário pode perder tudo: a família e o emprego, porque caiu na clandestinidade; a liberdade, porque foi preso; a vida, porque o assassinaram. Só não pode perder a moral, pois isso compromete, aos olhos do povo, a causa que defende.

Na América Latina, os governos progressistas criaram ferramentas importantes de integração entre os países, como ALBA, CELAC, UNASUR, Fórum Mundial Social e Fórum de São Paulo, todas sem a presença dos EUA. No entanto, nem sempre essas instâncias são devidamente valorizadas.

Muitas lideranças de esquerda se deixam picar pela “mosca azul”, e insistem em se perpetuar no poder, causando ruptura entre os setores progressistas e desgaste popular. E muitos militantes são incorporados às estruturas de governo sem a responsabilidade de dar prosseguimento ao trabalho de base. Em muitos países a capacidade de mobilização popular promovida pela direita supera a da esquerda.

Os fatos comprovam que políticas sociais não são suficientes para mudar a cabeça do povo. Para isso se requer um intenso e sistemático trabalho de educação política, já que toda a população sofre uma deseducação política profunda, capilar, seja pela cultura que se respira, seja pela família, escola, religião e, sobretudo, redes digitais.

É preciso menos palavras de ordem e mais Paulo Freire. Sem valorizar a educação popular, a economia solidária, o cooperativismo, a cultura e a arte populares e os movimentos identitários e ambientalistas, dificilmente surgirá uma nova geração de militantes capaz de formular e lutar por uma sociedade pós-capitalista.

Enfim, precisamos ressignificar o socialismo. E guardar o pessimismo para dias melhores.

 

•        O culto à erudição na esquerda: quando a revolução se torna seminário. Por Diogo Almeida Camargos

Como alguém de esquerda, é inevitável perceber que, em muitos momentos, nos perdemos em um universo “cult” e altamente técnico. Enquanto debatemos teorias profundas e complexidades do mundo, certa parte da juventude e as classes populares – que precisam de mudança – se veem alheios a esses discursos. Pior ainda, a esquerda ainda não acordou para o mundo digital, para a linguagem fácil e para dar respostas sem dar voltas e voltas em teorias complexas.

<><> O fetiche da complexidade: quando a revolução vira monografia

A esquerda com sua bagagem intelectual, muitas vezes trata temas essenciais de maneira tão rebuscada que parece estar mais preocupada em impressionar a si mesma e manter um certo status quo do que em se comunicar com a sociedade. O discurso cheio de referências e temas técnicos pode ser fascinante para acadêmicos, mas para a pessoa comum, que lida com a precariedade todos os dias, simplesmente não tem tempo para uma discussão abstrata.

Enquanto falamos de “contradições sistêmicas”, “luta de classes” e “hegemonias de poder”, a direita aparece com promessas simples: “mais segurança”, “mais emprego”, “menos impostos”. São mensagens diretas, que apesarem de serem fantasiosas, são fáceis de entender e atraentes para quem vive a realidade dura do dia a dia, além de caber em um Tweet.

<><> Promessas vazias, votos cheios: a fórmula do sucesso da direita

A direita tem sido extremamente hábil em se apropriar da linguagem da simplicidade e das soluções fáceis e rápidas. Ela oferece respostas diretas, sem enrolação ou discussões teóricas exaustivas para os problemas que as pessoas enfrentam diariamente. Ainda que tais soluções sejam superficiais ou inviáveis racionalmente, elas tocam diretamente nas preocupações cotidianas de parte da população. A fórmula é certeira: quanto mais fácil e direta a mensagem, maior o apelo junto às massas.

Esse discurso simplista não precisa de teorias ou estudos para ser eficaz. Ela explora o medo e o desejo de mudança imediata de forma eficiente, enquanto a esquerda parece preocupar-se em debater como “descontruir o capitalismo globalizado” em mesas redondas, seminários e grupos de estudos. Na prática, enquanto debatemos entre paredes e portas fechadas, a direita está na rede, conquistando corações e mentes com slogans de promessas, que geram uma identificação na camada mais pobre da sociedade. Pois, ora, quem não quer ouvir aquilo que deseja?

<><> Entre citações e slogans: a revolução não acontece no rodapé

Essa diferença de abordagem entre a esquerda e a direita se reflete nas urnas. A esquerda, com sua mensagem intelectualizada e distante, tem dificuldades de mobilizar jovens e classes populares, os mesmos que sofrem com o sistema que criticamos. Do outro lado, a direita, com sua simplicidade e apelo ao emocional, cresce em popularidade, prometendo mudanças imediatas que, embora sejam meras ilusões, são atraentes para os problemas do cotidiano.

A verdadeira revolução que a esquerda tanto quer, infelizmente não vai começar em seminários, mas sim no diálogo direto com as pessoas, não em debates internos que muitas vezes são inacessíveis a população. Pois não querem saber o que pensaram Marx, Lukács, Florestan, entre tanto outros pensadores que são necessários para entender os reais problemas da sociedade brasileira.

A esquerda precisa se atualizar, falar a linguagem digital, se tornar acessível, se conectar de forma verdadeira ao povo, ela precisa tomar as dores diárias do povo. Isso significa estar presente nas comunidades, escutar as necessidades que afligem cada um e cada uma. A revolução não pode ser apenas uma retórica distante, ela deve ser uma prática viva quer reflete as preocupações cotidianas da população. Contudo, a revolução não pode ser como ocorreu nos séculos passados, mas sim, considerar o mundo digital que vivemos hoje.

 

•        Derrota da esquerda não foi tudo isso. Por Eduardo Guimarães

Parafraseando Mark Twain (1835-1910), as notícias sobre a morte da esquerda, na eleição de domingo, foram exageradas. O clima de desânimo instalou-se nessa região do espectro político e isso é até positivo, pois provoca -- ou deveria provocar -- reflexão.

Há meses venho dizendo aos mais chegados que ocorreria o que ocorreu, mas só recebi sorrisos irônicos e acusações de alarmismo. Não era alarmismo, a esquerda ficou muito aquém do centro e da extrema direita. Todavia, o paciente sobreviveu e passa bem.

Sim, o PT, até agora, não elegeu nenhum prefeito na Grande São Paulo e o PSOL perdeu a única prefeitura que tinha, em Belém . Porém, a eleição não acabou.

Antes de tratar da razão pela qual é possível encontrar alento diante do fato de que o PT elegeu metade dos prefeitos que o PL, vamos entender por que a esquerda não deslancha mesmo tendo chegado à Presidência.

É inevitável tratar da brutal desconexão entre a esquerda e as camadas populares. Estudo inédito do Instituto Locomotiva, pilotado pelo inquieto Renato Meirelles*, ouviu integrantes da classe C pelo país afora e detectou que esse estrato social atravessa profunda transformação.

O mais amplo estrato social do país acalenta a ideia de subir na vida através do que acha que é empreendedorismo, cultua valores tradicionais e se vê aterrorizado pela expansão da violência, o que explica que uma classe social que também é vítima da violência policial se deixe seduzir pelos que a defendem.

Os "remediados" cultuam valores conservadores que lhes orientam o voto. A saber:

- 58% acham que a religião pregada por aproveitadores é vital na educação dos filhos

- 57% se manifestam contra a tão urgente educação sexual nas escolas

- 55% defendem a "família tradicional", esse conceito homofóbico e reacionário

- 65% acreditam que cabe ao Estado proteger as liberdades individuais

- 56% acham que o "empreendedorismo" dos motoristas de aplicativo (entre outros) é o caminho

- 53% acham que as prisões têm muito espaço e querem penas mais longas e severas inclusive para um garoto que carregue um baseado no bolso.

- 51% pregam nada mais, nada menos do que mais violência policial em um país que tem a polícia mais violenta do mundo, especializada em exterminar negros pobres inocentes e culpados.

A maior barreira para a esquerda nesse latifúndio da classe C é o rolo compressor em que se converteu a expansão das igrejas evangélicas, que abrem dezessete novos templos por dia.

Esse exército de fiéis já corresponde a quase um terço da população e é formado, em imensa maioria, por mulheres negras que ganham até 3 mil reais, ultra dependentes de serviços públicos.

O problema é que a esquerda se afastou desse contingente. Tem "nojinho" dos "crentes", em grande maioria, e só os procura no limiar das eleições.

E ainda espera ser recebida com tapete vermelho.

O que dificulta o diálogo são as novas prioridades da esquerda -- ou de sua parcela mais estridente, que, apesar de minoritária, domina os fóruns de debates nas redes.

Fala-se muito de Venezuela, Ucrânia, Gaza, LGBTQIA+, mas pouco da violência que ameaça essa população muito mais do que uma polícia hidrófoba -- até pela quantidade dos desesperados ou deserdados desde o berço que caem na criminalidade e a dos policiais violentos.

Enquanto o discurso fácil da violência polícial e das penas mais duras em presídios onde não não cabe nem mais um palito de fósforo prospera nas bocarras autoproclamadas "conservadoras" dos pastores de fancaria e dos políticos espertalhões, a esquerda está bradando o futuro dos Brics e os insultos ao nazista que governa Israel.

O que essa maioria esmagadora de eleitores pobres e manipulados pensa desses temas? Pensa que a esquerda quer que pobre se dane.

Mas não é só, pensa que quem se preocupa consigo é quem está lá, no dia a dia, envenenando suas mentes infantilizadas pelo fanatismo religioso e embotadas por sistemas educacionais inócuos.

Porém, a esquerda está longe de estar morta. A tão propalada vitória do centro nas eleições municipais é um exagero baseado em números que não dizem o que é preciso sobre o ambiente político e as preferências dos brasileiros.

A blitzrieg do PSD de Gilberto Kassab e o costumeiro forte desempenho do MDB decorrem de máquinas partidárias endinheiradas e estratégias eleitorais realistas, mas picaretas e enganadoras.

A esquerda não perdeu para as direitas, mas para si mesma, para um afastamento da mentalidade, dos anseios e dos medos desses setores da sociedade.

Contudo, o PT aumentou o número de prefeituras vencidas — 251 no primeiro turno de 2024 contra 182 no total de 2020. E em São Paulo, apesar de não ter um candidato, o partido é avalista e divide com o PSOL a chapa do deputado federal Guilherme Boulos, que só não venceu o primeiro turno graças a outra trapaça de Pablo Marçal, que lhe tirou cerca de 50 mil votos espalhando que o número do psolista nas urnas era 13.

Contudo, a situação não poderia ser melhor para Boulos. A vitória antecipada que a campanha de Nunes alardeia não existe. Silas Malafaia e o próprio Marçal garantiram que o prefeito paulistano morra na praia.

E Marçal precisa ajudar a eleger Boulos para poder dizer à Justiça Eleitoral que sua trapaça com o laudo falsário não prejudicou tanto a vítima -- o que não irá funcionar, mas será argumento onde argumento inexistia.

Mas e se a esquerda conquistar o terceiro PIB do país, com seus 12 milhões de habitantes? A vantagem das direitas vira pó. Enquanto isso, os dois maiores extremistas de direita estarão inelegíveis e/ou presos.

 

•        Ainda é cedo para afirmar que o bolsonarismo saiu fortalecido das eleições municipais, diz analista

No dia seguinte do 1° turno das eleições municipais no Brasil, a cientista política Daniela Constanzo, que está em Paris fazendo um pós-doutorado sobre o Centrão, diz que ainda não se pode afirmar, como faz a imprensa francesa nesta segunda-feira (7), que o bolsonarismo saiu fortalecido desse primeiro turno.

Pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), Daniela Constanzo observou a dinâmica e o resultado do primeiro turno das eleições municipais brasileiras de longe. A especialista em política nacional está na França como pesquisadora visitante do Ceri, o Centro de Pesquisa Internacional do Instituto de Ciências Políticas de Paris, desenvolvendo o trabalho intitulado “O Centrão como um desafio para a democracia no Brasil”.

Na esteira da agência de notícias AFP, a imprensa francesa desta segunda-feira afirma que “o campo bolsonarista saiu fortalecido do 1º turno das municipais no Brasil”. Daniela Constanzo relativiza essa afirmação: “O PL sai muito fortalecido, mas a gente não sabe se o bolsonarismo sai fortalecido, porque em capitais que eram chave para o bolsonarismo, ele não foi tão bem assim”, analisa.

Para ela, a dinâmica dessa eleição foi muito diferente da polarização que marcou as últimas eleições presidenciais de 2022, que terminou com a vitória apertada de Lula contra Bolsonaro. A principal evidência da eleição desse domingo (6) é que o Centrão “cresceu e se diversificou (...), mas ele não é um Centrão que está tão próximo do bolsonarismo”.

•        Risco para a democracia

Essa supremacia do bloco político conservador representa, na opinião de Daniela Constanzo, um desafio para a democracia brasileira porque “ele tenta trazer uma ordem que foi estabelecida desde a ditadura para o regime democrático”.

No entanto, esse resultado não deve modificar muito a situação nacional. “O Centrão já era muito forte e o partido do presidente (Lula), o Partido dos Trabalhadores, acabou tendo mais prefeituras do que ele tinha antes. Então, ele cresceu, está com 69 prefeituras a mais e conseguiu alguns segundos turnos nas grandes cidades, o que é bastante importante”, pondera.

Esse primeiro turno confirma avanço da direita no Brasil. “É um resultado bastante conservador (...) reproduzindo a chamada velha política”, salienta.

Muitos analistas políticos apontam as eleições municipais brasileiras como uma prévia das presidenciais de 2026. Mas Daniela Constanzo avalia que essa sinalização “ainda vai depender um pouco do segundo turno e, principalmente, do resultado em São Paulo. “A aliança costurada pelo Tarcísio (de Freitas) junto com o Centrão e com o bolsonarismo para lançar o Nunes em São Paulo, e cuja ideia principal é já ter uma aliança bem fechada para as eleições de 2026, lançando Tarcísio (para presidente), é a principal indicação”, antecipa Daniela Constanzo.

No entanto, ela ressalta que nomes “muito fortes, que podem ter projeção nacional” emergiram neste domingo. “O grande exemplo seria o prefeito de Recife, o João Campos, que se reelegeu no primeiro turno, com uma votação impressionante”.

 

Fonte: Correio da Cidadania/Le Monde/Brasil 247/RFI

 

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