sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Panos Tsoukalis: O que vem depois do neoliberalismo?

O capitalismo mudou de tal forma que o rótulo “neoliberalismo” ficou obsoleto. O crescente protagonismo econômico e político das grandes empresas de tecnologia e de gestão de ativos transformou o capitalismo contemporâneo de diversas maneiras. O mais importante é que trouxe o predomínio da renda sobre o lucro, da apropriação sobre a produção. Isto afetou a lógica fundamental da nossa economia política, pondo assim em causa a sobrevivência do capitalismo.

O neoliberalismo está entre nós desde os anos oitenta. Desde então, o capitalismo sofreu múltiplas crises e transformações. Mais recentemente, o capitalismo suportou uma crise financeira global e uma pandemia que paralisou o comércio, trancou as pessoas nas suas casas e devolveu o Estado à primeira linha da política econômica.

Há muitas maneiras de entender o termo neoliberalismo. Utilizo o conceito principalmente para me referir a duas coisas: em primeiro lugar, uma era na história do capitalismo, que começa com as eleições de Margaret Thatcher no Reino Unido e de Ronald Reagan nos Estados Unidos; em segundo lugar, o predomínio de um pacote de políticas econômicas que inclui a liberalização do comércio internacional, a privatização dos serviços públicos e a flexibilização dos mercados de trabalho. Uma característica fundamental do neoliberalismo é que ele alimentou um processo que muitos chamam de “financeirização”, isto é, o crescente domínio do setor financeiro sobre todo o resto da economia. Os estudiosos estão cada vez mais inclinados a sugerir que o termo neoliberalismo saiu de moda. O capitalismo mudou muito desde a década de 1980 e isto requer uma conceitualização diferente da sua articulação contemporânea. Diagnosticar o capitalismo contemporâneo como de “vigilância” (Zuboff, 2020), “rentista” (Christophers, 2020), de “plataforma” (Srnicek, 2017), “gestor de ativos” (Braun, 2022), “canibal” (Fraser, 2024) ou de “precariedade” (Azmanova, 2020), também aponta para diferentes previsões sobre a possibilidade de uma transformação social progressiva. Varoufakis (2023) e Dean (2020) chegam inclusive a nos convidar a nos perguntar se ainda estamos falando de capitalismo.

No caso de termos superado o neoliberalismo, como deveríamos compreender a forma de capitalismo que agora estamos vivendo? Neste artigo defendo que qualquer resposta à pergunta do que vem depois do neoliberalismo deve levar em conta a ascensão das grandes empresas de tecnologia e de gestão de ativos, ou seja, o seu crescente controle sobre as nossas vidas. Basear-me-ei em dois enquadramentos que se centram nestas transformações recentes do capitalismo contemporâneo, a saber: o “tecnofeudalismo” conceitualizado por Yanis Varoufakis e aquilo que Benjamin Braun chamou de “capitalismo de gestão de ativos”. Na verdade, uma chave para entender a mais recente transformação do capitalismo contemporâneo pode ser encontrada na exploração das ligações entre o que Varoufakis chama de “capital na nuvem” e os onipresentes (como Braun argumenta de forma convincente) gestores de ativos. Fazendo um pequeno desvio pela história do pensamento econômico, argumentarei que o que ambos os fenômenos sugerem é o triunfo da renda sobre o lucro, da apropriação sobre a produção, de modo que as dúvidas sobre a sobrevivência do capitalismo podem realmente ser justificadas.

·        Tecnofeudalismo

Em Tecnofeudalismo: o que matou o capitalismo (2023), Varoufakis argumenta que o uso da inteligência artificial e das redes digitais e algorítmicas transformou a natureza e o poder de determinadas bolsas de capital. Ou seja, surgiu uma nova forma de capital – o que ele chama de “capital na nuvem” – que tem o poder de subjugar a produção capitalista às suas próprias necessidades e lógica. A produção segue sendo capitalista, no sentido de que se baseia em meios de produção privados e na exploração do trabalho assalariado, mas está integrada em uma estrutura tecnofeudal (voltarei à parte “feudal” na última seção). Embora o capital tradicional (ou “terrestre”, como Varoufakis o chama) só possa explorar os trabalhadores, o capital na nuvem também pode explorar os consumidores, bem como outros capitalistas que não possuem capital na nuvem. Isto acrescenta uma camada adicional não só à hierarquia de estratificação econômica do capitalismo, mas também à hierarquia social de poder e capacidade de controle.

Como afirma Varoufakis, os consumidores são explorados porque o seu tempo de ócio é explorado pelas grandes empresas de tecnologia para obter lucros. O tempo de ócio gasto fazendo buscas no Google, interagindo com o Alexa, postando no Instagram ou navegando no TikTok foi instrumentalizado para a acumulação de capital na nuvem, sem que os consumidores obtenham qualquer benefício direto de seu “trabalho”. Grande parte dos dados pessoais que compartilhamos nessas plataformas acaba formando o que Shoshana Zuboff (2020) chama de “excedente comportamental” (ou seja, o excedente de dados sobre o comportamento dos consumidores acumulados acima do necessário para melhorar a experiência do consumidor). Este excedente é vendido aos anunciantes na esperança não só de prever, mas também de afetar o nosso comportamento futuro. Varoufakis destaca que cada vez que interagimos com um servidor digital, como o Alexa, estamos na verdade treinando o seu algoritmo para que reconheça os nossos hábitos e preferências e nos ofereça boas recomendações. Mas no final chega um momento, depois de uma inevitável geração de confiança, em que o Alexa começa a explorar o nosso perfil de consumidor para mudar os nossos hábitos e preferências, promovendo produtos que de outra forma não compraríamos. Nesse ponto, não está mais claro quem treina quem, quem é o senhor e quem é o servo. Em suma, a produção de capital na nuvem depende não apenas do trabalho assalariado (das pessoas diretamente empregadas por empresas como Google ou X), mas também do trabalho não assalariado dos consumidores. Consequentemente, enquanto as empresas capitalistas tradicionais como a General Motors e a General Electric gastam cerca de 80% dos seus rendimentos em salários, as grandes empresas de tecnologia acabam gastando apenas cerca de 1%. Essa característica de produzir com trabalho não remunerado é o que guarda semelhança com a ordem feudal.

O capital na nuvem também tem a capacidade de explorar outros capitalistas que não o possuem, substituindo os mercados por feudos na nuvem. Varoufakis afirma que plataformas de comércio eletrônico como a Amazon não são mercados. Para ele, os mercados são instituições públicas que acolhem interações espontâneas e descentralizadas entre consumidores e produtores. Em vez disso, os feudos na nuvem isolam o comprador do comprador, o vendedor do vendedor, de modo que apenas o algoritmo tem o poder de conectá-los. Entrar na Amazon é como entrar em uma cidade onde tudo pertence e é controlado por uma única pessoa, no caso Jeff Bezos. Contrariamente à natureza pública e aberta dos mercados, isto descreve um arranjo institucional privatizado de centralização. Isto permite que os “cloudalistas” (proprietários do capital na nuvem) exijam comissões absurdas (até 40% no caso da Amazon) de outros capitalistas para ter acesso ao seu feudo, o que Varoufakis chama de “rendas da nuvem”. No que diz respeito ao efeito do capital na nuvem sobre os trabalhadores, Varoufakis dá a entender que a sua capacidade de supervisão e controle totais leva a uma exploração ainda maior do trabalhador, mais do que poderia esperar o capitalista tradicional. Isto é exemplificado nos armazéns da Amazon, onde a tecnologia portátil e os algoritmos trabalham incansavelmente para otimizar os objetivos de embalagem, sobrecarregando os trabalhadores do armazém a ponto de colapsarem. Em vez de responder a um chefe, os trabalhadores respondem a um algoritmo que rastreia cada movimento seu. Em consequência, não só são forçados a trabalhar mais, como também a sua capacidade de ação coletiva para salvaguardar condições mínimas de trabalho (como o direito de ir ao banheiro) é consideravelmente diminuída.

No contexto do neoliberalismo, isto equivale a um maior desempoderamento dos trabalhadores, um padrão que tem sido evidente ao longo das últimas décadas. Desde a década de 1980, os aumentos de produtividade beneficiaram quase exclusivamente os empregadores nos EUA, enquanto os trabalhadores viram os seus salários reais estagnarem, quando não diminuírem. Nancy Fraser (2024) chama a este fenômeno de ascensão do “trabalhador híbrido”, um trabalhador que é ao mesmo tempo explorado e expropriado. Seguindo MarxFraser entende que a exploração capitalista ocorre porque o empresário paga um salário que cobre os custos necessários à reprodução do trabalhador, mas fica com a maior parte da mais-valia produzida. No entanto, afirma Fraser (2024), a expansão da dívida permitiu que os empregadores pagassem ainda menos aos trabalhadores. Ou seja, muitos trabalhadores sob o neoliberalismo recebiam menos do que precisavam para sobreviver como trabalhadores ativos, o que os empurrava cada vez mais para o endividamento. Assim, além de explorados, o seu trabalho também era expropriado. A isto Varoufakis (2023) acrescenta que a chegada do capital-nuvem torna as coisas ainda piores devido à sua maior capacidade de vigilância e controle que, juntamente com o endividamento, torna o trabalho dos trabalhadores ainda mais passível de ser expropriado.

Varoufakis afirma que a chegada do capital em nuvem implica a impossibilidade da democracia social, pelo menos da maneira como foi concebida no final do século XX. Não está nada claro como regular as plataformas das grandes empresas de tecnologia. A regulação dos preços é impossível, uma vez que oferecem os seus produtos gratuitamente, enquanto a regulamentação antimonopólio é difícil de aplicar, uma vez que a razão da existência de uma plataforma é a sua capacidade de realizar economias de escala. Quer se trate de uma plataforma de aluguel de apartamentos ou de aluguel de táxis, o principal produto que uma plataforma oferece tanto a compradores como a vendedores é o acesso a uma vasta rede de compradores e vendedores. Na maioria dos casos, ter uma plataforma pequena equivale a oferecer um produto ruim. Além disso, sob o tecnofeudalismo os trabalhadores são monitorados de perto para evitar a sua ação coletiva, enquanto os consumidores estão fisicamente isolados, o que dificulta a organização de boicotes. Ainda assim, o recente sucesso do Amazon Labor Union nos Estados Unidos e os boicotes dos consumidores à Starbucks, à Pizza Hut e ao McDonald's mostram que nem toda a esperança está perdida. Na verdade, Varoufakis argumenta que estes impedimentos podem ser ultrapassados por uma grande coligação de trabalhadores, consumidores e pequenos capitalistas que não possuem capital na nuvem (por exemplo, o restaurante ou o bar do seu bairro, cujos lucros se veem reduzidos por tarifas exorbitantes do Uber Eats). Precisamos pensar além das estratégias tradicionais da política progressista, envolvendo-nos naquilo que ele chama de “mobilização da nuvem”, isto é, utilizando as capacidades da nuvem contra o próprio capital na nuvem.

·        Capitalismo gestor de ativos

Enquanto a análise da atual ordem social como “tecnofeudal” centra a atenção no poder social das plataformas e das grandes empresas de tecnologia, o diagnóstico do “capitalismo de gestão de ativos” nos convida a levar em consideração a fenomenal ascensão das empresas de gestão de ativos. Benjamin Braun e Brett Christophers (2024) começam com alguns fatos estilizados. Os chamados três grandes gestores de ativos (BlackRockVanguard e State Street) detinham cerca de 13,5% de todas as empresas do S&P 500 em 2008, percentual que aumentou para 22% atualmente. Varoufakis (2023) acrescenta que são os maiores acionistas de 90% das empresas da Bolsa de Valores de Nova York. Além disso, os gestores de ativos controlam conjuntamente 126 bilhões de dólares em recursos financeiros, com um total de 526 bilhões de dólares em receitas, enquanto os seus lucros são estimados em cerca de 200 bilhões de dólares ao ano (equivalente ao PIB da Grécia) (Braun; Christophers, 2024). Sem dúvida, os números falam por si. Os gestores de ativos utilizam o seu imenso acesso aos recursos financeiros para influenciar ativamente o comportamento de outros capitalistas. No caso dos gestores de ativos “convencionais” como os Três Grandes, muitos desses ativos provêm de planos de seguros, fundos de pensões e fundos soberanos que procuram alguém para investir as suas enormes somas de capital. Devido à sua enorme dimensão, os gestores de ativos tendem a possuir um capital significativo, o que implica um controle substancial sobre a política da empresa. Isto fez dos gestores de ativos o “sistema nervoso central da sociedade capitalista contemporânea” (Braun & Christophers 2024, p. 553), bem como importantes formadores do capitalismo em geral.

Os Estados também são reféns das preferências políticas dos grandes gestores de ativos. Especialmente no Sul Global, onde os países dependem de obrigações denominadas em divisas para financiar os seus serviços estatais, os gestores de ativos podem afetar diretamente o seu acesso ao mercado de obrigações soberanas. Tornam-se, portanto, árbitros da capacidade de crédito, da solvência e, em última análise, também da soberania de uma série de países. Além disso, muitos Estados dependem cada vez mais dos gestores de ativos para conceber e implementar as suas próprias políticas, por exemplo, no que diz respeito à transição ecológica e até mesmo ao fornecimento de bens públicos básicos. Além disso, a dependência do Estado e o enfraquecimento (ou inexistência) da soberania monetária, juntamente com o imenso acesso aos recursos, significam que os gestores de ativos também têm a capacidade de pressionar diretamente os governos. Isto ocorre com o objetivo de impedir a regulação, ou para promover ativamente a sua agenda política.

Um exemplo de espaço político em que a influência dos gestores de ativos tem sido fundamental é a política monetária. Benjamin Braun (2022) argumenta que a perspectiva moderada que a maioria dos bancos centrais adotou inicialmente em relação à inflação está relacionada com a influência dos gestores de ativos. Tradicionalmente, a política monetária tem sido uma área de conflito de classes. Os bancos, os credores e os poupadores preferem muitas vezes uma inflação baixa e taxas de juro elevadas, mesmo que isso aconteça à custa de algum desemprego. Os trabalhadores e os devedores, pelo contrário, preferem taxas de juro baixas, pois facilitam o investimento e a criação de emprego. Na verdade, os devedores estão muitas vezes dispostos a suportar alguma inflação porque esta come o valor real da sua dívida. Infelizmente, a ascensão dos gestores de ativos alinhou os interesses de Wall Street com os da classe trabalhadora nesta questão. As taxas de juro persistentemente baixas levaram à inflação dos preços dos ativos, o que fez disparar a valorização dos ativos, aumentando as receitas de honorários dos gestores de ativos. Ao tornar os empréstimos mais baratos, as taxas de juro baixas também reduziram os custos de financiamento dos gestores de ativos altamente alavancados. Desta forma, os interesses dos bancos e dos poupadores foram superados pelo poder que os gestores de ativos acumularam.

O que não está claro nesta apresentação do capitalismo dos gestores de ativos é se a ascensão dos gestores de ativos nos apresenta uma ruptura radical com o neoliberalismo ou é se simplesmente o resultado do aprofundamento da financeirização. Uma crítica muito comum ao neoliberalismo é que ele representou o triunfo do capital financeiro sobre o resto da economia. Contudo, este triunfo, em vez de ser produtivo, tornou-se parasitário. As atividades especulativas tornaram-se mais remunerativas do que o investimento produtivo, uma condição que gera instabilidade financeira. Além disso, também sufoca o crescimento da produtividade, uma vez que o capital é progressivamente drenado de outras atividades para o setor financeiro (ver Mazzucato, 2020; Harvey, 2024; Lapavitsas, 2013).

Talvez o primeiro economista a estabelecer uma ligação explícita entre o neoliberalismo e a crescente influência dos investidores institucionais, como os fundos de pensão, tenha sido Hyman Minsky (Whalen 2010). Para Minsky, a década de 1980 marcou o início da era do “capitalismo dos gestores de dinheiro”, em que os gestores do dinheiro e os seus fundos se tornaram os novos senhores da economia. As suas preocupações sobre este fenômeno eram em grande parte semelhantes às discutidas acima, a saber, a natureza propensa a crises do sistema, assim como a sua relutância em financiar investimentos produtivos. Embora pareça que o diagnóstico de Minsky tenha sido prolífico, é duvidoso que pudesse ter imaginado o alcance da propriedade concentrada e do poder que os gestores de ativos acumularam agora. Portanto, se a ascensão dos gestores de ativos representa a culminância do longo processo de financeirização da economia (ou seja, o crescente domínio das finanças sobre todos os outros setores produtivos), então muitas das críticas ao neoliberalismo das últimas décadas ainda podem ser relevantes. Pode ser que estejamos assistindo a novos níveis de concentração de capital, mas o controle das finanças e a garantia de que funcionam para o bem público continuariam a ser uma prioridade política de primeira ordem. No entanto, este não é o caso do diagnóstico proposto por Varoufakis. Como sugerido na seção anterior, aceitar a hipótese do tecnofeudalismo leva a um repensar radical das prioridades políticas, bem como das estratégias para a transformação social progressiva.

·        O que vem depois do neoliberalismo?

É inegável que a ascensão do capital na nuvem e dos gestores de ativos são dois fenômenos fundamentais que estruturam o capitalismo contemporâneo. Talvez sejam estes dois tipos de corporações que moldam, pelo menos até certo ponto, o que virá (ou veio) depois do neoliberalismo. Embora as duas críticas ao capitalismo contemporâneo analisadas direcionem a nossa atenção para fenômenos diferentes, as implicações que se podem extrair delas têm muito em comum. De fato, ambos implicam uma maior concentração de capital e poder nas mãos de poucos, bem como um aumento da desigualdade. Contudo, o que quero sublinhar aqui é que as duas perspectivas sugerem a predominância da renda sobre o lucro, da apropriação sobre a produção.

Muitos consideraram que o advento do neoliberalismo e da financeirização anda de mãos dadas com o retorno da figura do rentista. Por exemplo, Harvey (2024) argumenta que a financeirização e a monopolização libertaram o rentista moderno que não produz nada exceto lucros monetários através da propriedade de ativos ou da especulação financeira. Azmanova (2020) considera que os rentistas têm sido ativamente criados pela política estatal que busca aumentar a competitividade dos “campeões” nacionais ou regionais, em detrimento da concorrência no mercado e da regulação antimonopólio. Parece que o que está em vias de substituir o neoliberalismo está piorando ainda mais as coisas. Cloudalistas e gestores de ativos são rentistas por excelência. Estão no negócio de pegar, não de fazer. Beneficiam-se da propriedade e do controle – e não da produção – em condições de concorrência limitada. Brett Christophers (2020) defende a mesma opinião, sugerindo que as rendas das plataformas desempenham um papel fundamental naquilo que chama de “capitalismo rentista”. No seu livro dedicado às sociedades de gestão de ativos, também conclui que os gestores de ativos são “rentistas puros” (Christophers, 2023, p. 45). Um gestor de ativos pode possuir um parque eólico na Noruega ou um complexo imobiliário na Flórida, mas não tem nada a ver com a operação e a manutenção cotidiana destes ativos, que são terceirizados para outras empresas. Eles não produzem nada, ao passo que o “seu negócio é maximizar e extrair os lucros – a renda – que esse ativo gera” (Christophers, 2023, p. 45).

Estes estudiosos, entre os quais me incluo, consideram que a produção capitalista se baseia simultaneamente no lucro e na renda, na produção e na apropriação, na exploração e na expropriação. Embora o surgimento do capitalismo tenha deixado de lado a renda, a apropriação e a expropriação, nunca conseguiu superá-los completamente. Estas duplas não são equivalentes entre si, mas todas apontam para o fato de que o capitalismo não é um mero sistema de troca contratual em que os mais eficientes, os mais produtivos e os mais inteligentes se beneficiam em conformidade. Por trás da troca contratual esconde-se a morada da renda não merecida, do capital patrimonial, do poder hereditário e da expropriação pura e simples. Para Varoufakis (2023), o triunfo do lucro sobre a renda foi o que em última análise definiu a transição do feudalismo para o capitalismo. Neste sentido, o retorno da renda que o capital na nuvem trouxe significa que devemos nos perguntar se estamos mesmo vivendo sob o capitalismo.

Na economia política marxista, a importância do equilíbrio entre o lucro e a renda foi expressa mais claramente por Rosa Luxemburgo, que argumentou que a acumulação primitiva era uma característica estrutural do capitalismo, e não simplesmente a sua condição facilitadora. Por outro lado, na economia política clássica, David Ricardo considerava os proprietários de terras rentistas como vestígios do feudalismo que impediam o pleno florescimento do modo de produção capitalista. Keynes, de maneira similar, apelou à eutanásia do rentista, referindo-se principalmente aos financiadores parasitas que enriqueceram mantendo o capital artificialmente escasso (Mann, 2019). Mesmo na principal corrente da economia neoclássica, o termo renda de monopólio refere-se aos lucros acumulados acima dos lucros normais alcançáveis num desenho de mercado eficiente e competitivo. Em suma, em muitas escolas de pensamento econômico, bem como em filiações políticas, a procura de rendas, a apropriação e a expropriação são consideradas encargos para uma economia capitalista, quando não totalmente repreensíveis do ponto de vista moral e político. Portanto, se o que estamos vendo agora é uma nova mudança do equilíbrio da balança para a renda e a apropriação, maior inclusive do que aquela provocada pelo neoliberalismo, então temos problemas pela frente.

Varoufakis (2023) localiza a origem dos problemas (ou seja, a procura de renda) nas grandes empresas de tecnologia, enquanto Braun e Christophers (2024) o fazem nas empresas de gestão de ativos. Contudo, o que falta é a relação entre estes dois fenômenos. Uma vez que Blackrock et al. são importantes acionistas de grandes empresas de tecnologia, como isso afeta a nova dinâmica introduzida pelo capital na nuvem? Serão os gestores de ativos os “cloudalistas” definitivos? Como se pode ver na Tabela acima, parece que a resposta é afirmativa (Hyppolite & Michon, 2018). BlackRock, Vanguard, State Street e Fidelity detêm as maiores participações (coletivamente mais de 20%) nas 10 maiores empresas de tecnologia dos Estados Unidos.

Se os mercados públicos e abertos já não forem o principal mecanismo de distribuição de bens e serviços, se a alocação de recursos financeiros estiver sujeita aos caprichos idiossincráticos de algumas corporações gigantescas, se as grandes empresas de tecnologia adquirirem uma parte significativa do seu capital de empresas livres porque os consumidores não são proprietários dos seus dados – isto é, se a renda substituiu o lucro nas nossas economias políticas –, então, de fato, ainda estamos falando de capitalismo? Teorizar o agora costuma ser um desafio.

No entanto, tentar conciliar a ascensão do capital na nuvem com a dos gestores de ativos pode ser a chave para compreender as profundas transformações pelas quais o capitalismo está passando neste momento. O que deve decorrer do acima exposto, aceitando o desafio de Varoufakis, é uma tentativa de ligar teoria e prática. Ou seja, confrontar o fato de que, juntamente com o neoliberalismo, a conhecida caixa de ferramentas da política progressista (por exemplo, a tributação, a regulação e a mobilização), também se tornou ultrapassada, ou pelo menos inadequada para os desafios que temos pela frente. Talvez precisemos pensar e agir de forma mais radical.

 

Fonte: Post-Neoliberalism - tradução do Cepat, em IHU

 

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